18 Janeiro 2024
"A perda de APPs nas áreas urbanas comprometerá, portanto, os serviços ambientais nas áreas rurais a jusante", escrevem Valter M. Azevedo-Santos, Vanessa S. Daga, Lívia H. Tonella, Renata Ruaro, Marlene S. Arcifa, Philip M. Fearnside e Tommaso Giarrizzo, em artigo publicado por Amazônia Real, 16-01-2024.
Confira o primeiro e o segundo artigo da série.
Valter M. Azevedo-Santos possui graduação em ciências biológicas pela Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) e mestrado e doutorado em ciências biológicas (zoologia) pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Tem interesse em conservação da biodiversidade aquática. Ele é professor na Faculdade Eduvale de Avaré e docente permanente na Universidade Federal do Tocantins-Porto Nacional.
Vanessa S. Daga possui graduação em ciências biológicas pela Universidade Paranaense, especialização em desenvolvimento e meio ambiente e mestrado em recursos pesqueiros e engenharia de pesca pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná, e doutorado em ciências biológicas – zoologia pela Universidade Federal do Paraná. Ela estuda ictiofauna, espécies introduzidas, reservatórios e homogeneização biótica.
Lívia H. Tonella possui doutorado pelo Programa de Pós-graduação em Ecologia de Ambientes Aquáticos Continentais, Universidade Estadual de Maringá, Maringá, PR. É professora de Direito da Universidade Federal do Tocantins e da Faculdade Serra do Carmo, Palmas, TO.
Renata Ruaro é professora da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, campus de Curitiba, atuando no Departamento de Química e Biologia. É doutora em Ecologia de Ambientes Aquáticos Continentais pela Universidade Estadual de Maringá. Possui interesse em conservação e manejo de recursos naturais em bacias hidrográficas, especialmente no desenvolvimento e aplicação de ferramentas de biomonitoramento.
Marlene S. Arcifa possui graduação em história natural e mestrado e e doutorado em ciências biológicas (zoologia) pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente é professor sênior no Departamento de Biologia da USP, Ribeirão Preto. Tem experiência na área de ecologia, com ênfase em ecologia de ecossistemas. Estuda cladocera, ciclomorfose e eutrofização.
Philip M. Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 750 publicações científicas e mais de 700 textos de divulgação de sua autoria que estão disponíveis aqui.
Tommaso Giarrizzo possui graduação em ciência agrária tropical e subtropical pela Universidade de Firenze (Itália) e doutorado em biologia marinha pela Universidade de Bremen (Alemanha). Ele é professor visitante no Instituto de Ciências do Mar, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza e professor colaborador na Universidade Federal do Pará, Belém e Altamira. É pesquisador do CNPq Nível 1D. Estuda a dinâmica nos ecossistemas aquáticos, inclusive peixes em mangues na costa do Pará e o acúmulo de microplástico em peixes de água doce na Amazônia.
A redução ou eliminação das Áreas de Preservação Permanente (APPs) pela Lei 14.285/2021 geraria ainda mais impactos sociais e ecológicos. Por exemplo, a permissão para construir casas perto de cursos de água resultará em perdas materiais após cheias [1]. Isso geraria custos tanto para a população humana quanto para os governos municipais. As inundações no Estado de São Paulo causadas pelas chuvas torrenciais em 2023 ilustram bem a situação [2, 3]. Os impactos negativos nos ecossistemas aquáticos urbanos podem ser numerosos e incluem a introdução de espécies não nativas, a poluição de corpos d’água [1] e a destruição intencional de zonas úmidas e corpos d’água por aterros para permitir a construção. Além disso, as intervenções em APPs têm alto potencial para gerar assoreamento direto e indireto [1, 4, 5] (Figura 1).
Figura 1. Um riacho assoreado: (a) durante; e (b) após intervenção em suas APPs.
A ocupação ou outras atividades em APPs afetam a biodiversidade porque espécies nativas habitam ambientes urbanos (Figura 2a-c), incluindo corpos d’água que já estão impactados (por exemplo, [6, 7]). Em uma pesquisa em bases de dados bibliográficos ([8], Métodos no Material Suplementar 4), descobrimos que numerosos estudos documentaram comunidades de peixes nativos nos ecossistemas aquáticos urbanos do Brasil (Figura 3a-b). Os ecossistemas aquáticos urbanos contêm espécies que só foram descritas na última década (por exemplo, [9, 10]), e também contêm espécies ameaçadas (Figura 2b) ou consideradas endémicas (Tabela 1). O assoreamento causado por intervenções em APPs pode ter impactos altamente negativos na diversidade de peixes nesses ecossistemas [11]. As APPs urbanas também contêm fauna terrestre (por exemplo, Figura 2d-f), e a própria vegetação é importante para a conservação desses componentes biológicos.
Figura 2. Fotografias exemplificando grupos de animais que ocorrem em áreas urbanas brasileiras: (a) Ucides cordatus (Linnaeus, 1763) em um estuário urbano em Belém, Pará; (b) Leptopanchax splendens (Myers, 1942), espécie de peixe considerada altamente ameaçada de extinção (sensu [12]) ocorrendo no município de Duque de Caxias, Rio de Janeiro [13]; (c) Tartaruga de água doce (Chelidae) em um pequeno curso de água urbano no município de Frutal, Minas Gerais; (d) Iguana iguana (Linnaeus, 1758) em APP de Belém, Pará; (e) Sicalis flaveola (Linnaeus, 1766), em APP remanescente no município de Frutal, Minas Gerais; (f) Bradypus variegatus (Schinz, 1825) em uma APP de Belém, Pará.)
Figura 3. Número de estudos sobre cursos d’água urbanos por (a) tipo de ambiente (b) bacia hidrográfica (com base no [8], Material Suplementar 4).
Podem ocorrer impactos negativos a nível regional, além dos impactos locais. Os eventos de poluição devidos à maior densidade populacional perto dos cursos de água terão impacto nas áreas a jusante (ver [18]). Por exemplo, mais de 50% da extensão do rio Tietê passa pela área rural após sair da área urbana de São Paulo. Esta porção a jusante do rio tem parte do seu caudal desviado para irrigação de culturas agrícolas [19], e o rio é utilizado para pesca (e.g., [20]) e para outros fins. A perda de APPs nas áreas urbanas comprometerá, portanto, os serviços ambientais nas áreas rurais a jusante. [21]
[1] Thomaz, S. M., Rosado, A., Pires, A. P. F., Padial, A. A., Alves, G. H. Z, Ortega, J. C. G., Silva, J., Dacol, K. C., Lacerda, N., Tófoli, R., Cionek, V., 2021. Nota técnica da Associação Brasileira de Limnologia para subsidiar as discussões sobre alterações das Áreas de Proteção Permanentes (APPs) urbanas propostas pelo PL 2.510/2019 (Câmara dos Deputados) e PL 1.869/2021 (Senado). Associação Brasileira de Limnologia (ABLimno). Grupo de Trabalho em Conservação e Políticas Públicas de Águas Continentais.
[2] g1. 2023. Justiça determina demolição de restaurante e remoção de famílias em área de preservação no Ceará. g1, 18/02/2023.
[3] g1. 2023. Córregos transbordam e água invade vias durante forte chuva em Franca, SP. g1, 31/01/2023.
[4] Araújo, S. M. V. G., 2002. As áreas de preservação permanente e a questão urbana. 12 pp. Biblioteca Digital da Câmara dos Deputados, Agosto/2002.
[5] Ottoni, F. P., South, J., Azevedo-Santos, V. M., Henschel, E., Braganca, P., 2023. Freshwater biodiversity crisis: Multidisciplinary approaches as tools for conservation. Frontiers in Environmental Science 11: art. 246.
[6] Moreno, P., Callisto, M., 2006. Benthic macroinvertebrates in the watershed of an urban reservoir in southeastern Brazil. Hydrobiologia 560(1): 311-321.
[7] Cunico, A. M., Allan, J. D., Agostinho, A. A., 2011. Functional convergence of fish assemblages in urban streams of Brazil and the United States. Ecological Indicators 11(5): 1354-1359. https://doi.org/10.1016/j.ecolind.2011.02.009
[8] Azevedo-Santos, V. M., Daga, V. S., Tonella, L. H., Ruaro, R., Arcifa, M. S., Fearnside, P. M., Giarrizzo, T. 2023. Brazil’s urban ecosystems threatened by law. Land Use Policy 131: art. 106721.
[9] Reis, R. E., Pereira, E. H., Lehmann, A. P., 2012. A new genus and species of Hypoptopomatine catfish (Siluriformes: Loricariidae) from the upper Rio São Francisco basin, Brazil. Copeia 2012(1): 6-11.
[10] Costa, W. J. E. M., Feltrin, C. R., Katz, A. M., 2021. Filling distribution gaps: Two new species of the catfish genus Cambeva from southern Brazilian Atlantic Forest (Siluriformes, Trichomycteridae). Zoosystematics and Evolution 97(1): 147-159.
[11] Azevedo-Santos, V. M., Arcifa, M. S., Brito, M. F., Agostinho, A. A., Hughes, R. M., Vitule, J. R. S., Simberloff, D., Olden, J. D., Pelicice, F. M., 2021. Negative impacts of mining on Neotropical freshwater fishes. Neotropical Ichthyology 19(3): art. e210001.
[12] Pavanelli, C. S., Bock, C. L., Nogueira, C. C., Nielsen, D. T. B., Di Dario, F., Vieira, F., Neo, F. A., Gallão, J. E. et al., 2018. Leptolebias splendens (Myers, 1942). pp. 107-109. In: Livro Vermelho da Fauna Brasileira Ameaçada de Extinção: Volume VI – Peixes. ICMBio/MMA, Brasília, DF.
[13] Costa, W. J. E. M., Mattos, J. L. O., Amorim, P. F., 2019. Rediscovery of Leptopanchax splendens (Cyprinodontiformes: Aplocheilidae): A seasonal killifish from the Atlantic Forest of south-eastern Brazil that was recently considered extinct. Journal of Fish Biology 94(2): 345–347.
[14] Akama, A., Netto-Ferreira, A. L., Zanata, A. M., Calegari, B. B., de Figueiredo, C. A. A. ,Alves, C. B. M., Cramer, C. A., Zawadzki, C. H. et al., 2018. Glandulocauda caerulea Menezes, Weitzman, 2009. pp. 107-109. In: Livro Vermelho da Fauna Brasileira Ameaçada de Extinção: Volume VI – Peixes. ICMBio/MMA, Brasília, DF.
[15] Santos, A. C. A., da Silva, A. T., Zanata, A. M., Chamon, C. C., Pavanelli, C. S., Oliveira, C. A. M., Vieira, F., de Carvalho, F. R. et al., 2018. Apareiodon davisi Fowler, 1941. pp. 107-109. In: Livro Vermelho da Fauna Brasileira Ameaçada de Extinção: Volume VI – Peixes. ICMBio/MMA, Brasília, DF.
[16] Zanata, A. M., Calegari, B. B., Pavanelli, C. S., Oliveira, C. A. M., Moreira, C. R., Bastos, D. A., Di Dario, F., Vieira, F. et al., 2018. Ossubtus xinguense Jégu, 1992. pp. 107-109. In: Livro Vermelho da Fauna Brasileira Ameaçada de Extinção: Volume VI – Peixes. ICMBio/MMA, Brasília, DF.
[17] Zawadzki, C. H., Penido, I. D. S., de Oliveira, J. C., Pessali, T. C., 2019. Rediscovery and redescription of the endangered Hypostomus subcarinatus Castelnau, 1855 (Siluriformes: Loricariidae) from the Rio São Francisco basin in Brazil. PLoS One 14(3): art. e0207328.
[18] Azevedo-Santos, V. M., Frederico, R. G., Fagundes, C. K., Pompeu, P. S., Pelicice, F. M., Padial, A. A., Nogueira, M. G., Fearnside, P. M., Lima, L. B., Daga, V. S., Oliveira, F. J . M., Vitule, J. R. S., Callisto, M., Agostinho, A. A., Esteves, F. A., Lima-Junior, D. P., Magalhães, A. L. B., Sabino, J., Mormul, R. P., Grasel, D., Zuanon, J., Vilella, F. S., Henry, R., 2019. Protected areas: A focus on Brazilian freshwater biodiversity. Diversity and Distributions 25(3): 442-448.
[19] Tundisi, J. G., Tundisi, T. M., Calijuri, M. C., Novo, E. M. L., 1991. Comparative limnology of five reservoirs in the middle Tietê River, S. Paulo State. Internationale Vereinigung für Theoretische und Angewandte Limnologie: Verhandlungen 24(3): 1489-1496.
[20] Novaes, J. L. C., Carvalho, E. D., 2011. Artisanal fisheries in a Brazilian hypereutrophic reservoir: Barra Bonita reservoir, middle Tietê river. Brazilian Journal of Biology 71: 821-832.
[21] Esta é uma tradução parcial de Azevedo-Santos, V.M., V.S. Daga, L.H. Tonella, R. Ruaro, M.S. Arcifa, P.M. Fearnside & T. Giarrizzo. 2023. Brazil’s urban ecosystems threatened by law. Land Use Policy 131: art. 106721.
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Os ecossistemas urbanos do Brasil ameaçados por lei-3: ecossistemas urbanos em jogo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU