15 Janeiro 2024
"A primeira interpretação vê historiadores e juristas venezuelanos afirmarem que, com o Acordo de Genebra, a decisão do laudo de Paris foi anulada, portanto, a disputa sobre o território de Essequibo permaneceu não resolvida. Uma segunda interpretação não considera a assinatura do Acordo de Genebra como uma suspensão do laudo de Paris, mas sim como a necessidade de continuar o diálogo para alcançar um acordo mais justo. De qualquer forma, todos reconhecem que a decisão do laudo protegeu os interesses políticos do Reino Unido em detrimento da Venezuela", escreve Antonio Teixeira, historiador, em artigo publicado por Settimana News, 13-01-2024.
Recentemente, um território localizado na parte norte da América do Sul, até pouco tempo desconhecido pelo resto do mundo, começou a ganhar destaque nos telejornais, portais e jornais mais importantes do nosso planeta. Estamos falando do Essequibo, um território situado a leste da Venezuela e a oeste da República Cooperativa da Guiana, ambos os países reivindicando como seu.
Para compreender a razão desse conflito, voltando à história, vamos ao cerne do problema. A reivindicação desse território tem raízes na era colonial, quando nem a Venezuela nem a Guiana existiam como países, mas eram territórios colonizados respectivamente pelos espanhóis e holandeses. O território em questão fazia parte da chamada Capitania Geral da Venezuela, criada em 1777.
Em 1840, Agustín Codazzi, geógrafo e cartógrafo italiano, desenhou o mapa político da Venezuela de 1810, composta por 8 províncias, uma das quais - a Guiana - incluía o que hoje conhecemos como Bolívar, Delta Amacuro, Amazonas e o território disputado, ou seja, o Essequibo.
O que Codazzi desenhou no mapa eram os territórios que a coroa espanhola havia declarado como seus e que seriam reconhecidos como parte da Venezuela independente a partir da assinatura do Independence Act em 1811. A independência não levou as novas nações a lutas territoriais, mas cada uma reconhecia como seu território o que a coroa espanhola havia conquistado.
Enquanto as colônias espanholas administravam sua independência, os navegadores holandeses, que haviam chegado à parte norte da América do Sul no final do século XVI, exploraram e tomaram posse dos territórios a leste da atual Venezuela. Para evitar conflitos, em 1648 a Espanha cedeu a margem direita do rio Essequibo para os Países Baixos, renomeando-a como Guiana Holandesa. Em 1666, os ingleses desembarcaram na nova colônia holandesa e começaram a disputar esses territórios com os holandeses. Após 150 anos de disputas, em 1814, os Países Baixos venderam à Grã-Bretanha parte de sua colônia, precisamente 20.000 metros quadrados, pelo valor de 3.000.000 de libras. A partir desse momento, os territórios de Demerara, Berbice e Essequibo, localizados a leste do rio Essequibo, foram renomeados como Guiana Inglesa.
Em 1822, José Rafael Revenga, ministro plenipotenciário da Gran Colômbia (nação que Simon Bolívar sonhava após a independência e que seria composta por Venezuela, Colômbia, Equador e a atual Panamá), relatou a presença de colonos holandeses vindos de Demerara e Berbice em território venezuelano, uma vez que estavam a oeste do rio Essequibo. Segundo Rafael Revenga, esses colonos deveriam obedecer e respeitar as leis e a jurisdição da Gran Colômbia, como se estivessem vivendo em território venezuelano.
Essas incursões não eram esporádicas nem inofensivas. Na verdade, o Reino Unido ultrapassou o território comprado dos Países Baixos e começou a penetrar no território atualmente contestado, aproveitando-se do cansaço do exército que havia lutado pela independência e da inexperiência política dos líderes venezuelanos. A coroa britânica afirmou seus direitos territoriais em relação ao governo da nova nação, argumentando que a Espanha não havia reconhecido cartograficamente os limites da Capitania Geral da Venezuela. No entanto, é importante observar que já em 1799 (antes da declaração de independência), a fronteira do Essequibo aparece nos mapas de Cruz Cano e Olmedilla, publicados por Francisco de Miranda com o patrocínio da coroa inglesa, para mostrar ao mundo a configuração do novo país.
O Reino Unido, ignorando os avisos e reclamações da Venezuela, contratou, em 1835, Robert Hermann Schomburgk, um explorador prussiano, que propôs uma demarcação da fronteira que alcançava os territórios de Guasipati e Tumeremo, ao sul do estado de Bolívar, na Venezuela. A razão para essa extensão da fronteira, que abrangia uma área de 203.310 km², era o interesse britânico nas ricas minas de ouro em Callao e El Dorado, assentamentos localizados ao sul do estado de Bolívar. Como a coroa britânica reivindicou essa configuração territorial enquanto a Venezuela exigia o respeito à fronteira estabelecida em 1810, ambos os governos optaram por um arbitramento a nível internacional. A Venezuela, sem advogados, contratou alguns da América do Norte, enquanto a Inglaterra propôs os seus. Em 1899, foi proferida a sentença da disputa territorial. O laudo arbitral pronunciado em Paris concedeu 90% do território ao Reino Unido sem explicar as razões dessa decisão.
A Venezuela ignorou a sentença, alegando que carecia de fundamento histórico e político, denunciando o veredicto como resultado de jogos de poder e não de razões históricas. Os governos da Venezuela continuaram a ignorar a sentença. Apenas em 17 de fevereiro de 1966, a Grã-Bretanha concordou em assinar o chamado Acordo de Genebra, no qual a coroa inglesa reconheceu, pela primeira vez, que existia uma disputa territorial não resolvida sobre o território do Essequibo. Meses depois, a Guiana tornou-se um território independente do Reino Unido. A assinatura do Acordo de Genebra abriu caminho para uma nova controvérsia jurídica interpretada de duas maneiras.
A primeira interpretação vê historiadores e juristas venezuelanos afirmarem que, com o Acordo de Genebra, a decisão do laudo de Paris foi anulada, portanto, a disputa sobre o território de Essequibo permaneceu não resolvida. Uma segunda interpretação não considera a assinatura do Acordo de Genebra como uma suspensão do laudo de Paris, mas sim como a necessidade de continuar o diálogo para alcançar um acordo mais justo. De qualquer forma, todos reconhecem que a decisão do laudo protegeu os interesses políticos do Reino Unido em detrimento da Venezuela. Naquela ocasião, de fato, foram concedidos ao Reino Unido 159.500 km² de território onde estavam localizadas importantes minas de ouro. Também é sabido que os advogados que representavam os Estados Unidos da Venezuela (nome que o país assumiu no final do século XIX) acabaram por aceitar a decisão do tribunal de Paris, pois, se recusassem, a Venezuela correria o risco de perder não apenas o Essequibo, mas também a foz do rio Orinoco.
O que aconteceu entre 1899 e 1966 para que os ingleses acabassem assinando o Acordo de Genebra? Em minha opinião, a região então disputada havia perdido interesse estratégico, econômico e político. De fato, alguns meses após a assinatura do tratado, o Reino Unido concedeu à Guiana sua independência. Isso indica que a Grã-Bretanha não estava mais interessada em manter sua hegemonia sobre o território conquistado no laudo arbitral. A região deixara de ser importante, e as minas já haviam sido exploradas. O Reino Unido, ao abrir a possibilidade de uma nova discussão sobre a questão, perdeu a soberania territorial, mas ganhou um aliado importante, já que a Venezuela, com sua produção de petróleo, tornara-se um parceiro estratégico significativo. Também deve ser mencionado o crescente peso político que a Venezuela tinha na América do Sul. Em 1966, era membro do Comitê Especial das Nações Unidas para a Descolonização e era membro não permanente do Conselho de Segurança da mesma Organização.
De 1966 a 2015, a disputa foi esquecida por ambos os países. Na verdade, em 2004, o próprio Hugo Chávez permitiu à República da Guiana "atribuir unilateralmente concessões e contratos a empresas multinacionais, contanto que isso beneficiasse o desenvolvimento da região". Chávez não cedia território, mas buscava consolidar sua liderança no Caribe. Tudo mudou em 2015, quando foi descoberto um grande depósito de petróleo na plataforma continental diante do território reivindicado por ambos os países. A Exxon Mobil encontrou uma reserva estimada em 13,6 bilhões de barris. Desde então, a Guiana, com base nas declarações de Hugo Chávez, concedeu concessões a empresas transnacionais nas áreas e águas territoriais contestadas.
A descoberta de petróleo reacendeu o conflito. No momento, o foco está na plataforma continental, onde se encontram os grandes depósitos de petróleo. Além da solução territorial, Venezuela e Trinidad e Tobago pedem que, antes que as reservas de petróleo sejam exploradas, sejam estabelecidas fronteiras marítimas de acordo com os tratados internacionais. Esses tratados concedem à Venezuela o direito de explorar a plataforma devido à extensão do Delta do Orinoco.
A Guiana, por outro lado, propõe uma divisão que não leva em conta o Delta e traça uma linha favorável a seus interesses, removendo a plataforma continental pertencente ao Delta do Orinoco. Desde 2015, a ameaça de guerra está latente. Em 2018, a Venezuela apreendeu duas embarcações com bandeira da Guiana pertencentes à Exxon Mobil, alegando que violavam as águas territoriais venezuelanas. No último ano, ambos os países aumentaram sua presença militar na região. Em 3 de dezembro passado, a Venezuela realizou um referendo de apoio ao governo para se apossar do território.
O aspecto lamentável de tudo isso é que nenhum dos dois países se destaca por sua riqueza cultural ou pelo que podem dar ou receber. Por trás das disputas e ameaças de guerra, escondem-se interesses energéticos e comerciais que, mais uma vez, acabarão por desestabilizar os habitantes da região e saquear as riquezas de ambos os países.
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Guiana e Venezuela à beira de um conflito? Artigo de Antonio Teixeira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU