28 Novembro 2023
O anti-humanismo do Antropoceno e o trans-humanismo não envolvem apenas uma “revolta contra a humanidade”, mas também uma revolta contra a responsabilidade. Combinados, eles fazem com que os CEOs das empresas de tecnologia pareçam os nossos salvadores, e não os nossos destruidores.
A opinião é do filósofo Nolen Gertz, professor da Universidade de Twente, na Nova Zelândia. O artigo foi publicado por Commonweal, 09-11-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O novo livro de Adam Kirsch, intitulado “The Revolt Against Humanity” [A revolta contra a humanidade], é um volume muito curto, preocupado com uma ideia muito simples, mas “aparentemente inconcebível”: “O fim do reinado da humanidade sobre a Terra é iminente, e (...) devemos acolhê-lo”.
A ideia, segundo Kirsch, une dois campos que, de outra forma, pareceriam estar em desacordo. Por um lado, existem os “anti-humanistas do Antropoceno”, que veem as mudanças climáticas como uma prova dos crimes da humanidade contra a natureza, que só podem ser expiados pela nossa extinção.
“The Revolt Against Humanity” (Foto: Divulgação)
Por outro lado, estão os “trans-humanistas”, que veem no progresso tecnológico provas dos crimes da natureza contra a humanidade e da nossa capacidade de transcendê-los. Ou seja, os desenvolvimentos na engenharia genética, na nanotecnologia e na robótica mostram que as nossas limitações inatas não são partes da nossa natureza a serem valorizadas, mas sim meros obstáculos a serem superados no caminho para uma espécie nova e superior.
Kirsch cataloga os pontos de vista centrais defendidos por cada campo, não para apoiá-los ou criticá-los, mas porque acredita que suas profecias podem ser suficientemente influentes a ponto de se tornarem autorrealizáveis. Ou seja, a ideia de que a extinção da humanidade deve ser acolhida pode motivar as pessoas a acelerarem a morte da nossa espécie de uma forma ou de outra. As mudanças climáticas já estão sendo citadas como uma razão para renunciar a ter filhos, por exemplo, e uma fixação na tecnologia que nos liberta dos limites humanos pode ocorrer à custa de projetos que tornem viável a vida cotidiana neste planeta.
A preocupação de Kirsch, então, não é se as previsões dos anti-humanistas do Antropoceno ou dos trans-humanistas estão corretas, mas sim se são convincentes.
E, então, elas são convincentes? Para começar com os primeiros, certamente é difícil negar que as mudanças climáticas estão em curso e que a ação humana é a culpada por elas (embora isso não impeça algumas pessoas de as negarem). Inundações, incêndios e todos os tipos de eventos climáticos devastadores estão se tornando cada vez mais comuns.
Ao mesmo tempo, os apelos à redução das emissões, do desperdício e do consumo parecem ser recebidos com escárnio e derrotismo, e as soluções políticas ficam muito aquém do que é necessário.
Consequentemente, não deveria ser nenhuma surpresa que os ativistas do clima veem a humanidade tanto em perigo quanto como uma fonte de perigo. Estamos destruindo a nós mesmos e ao planeta, e não apenas estamos fazendo pouco para impedir isso, como também aparentemente só estamos piorando as coisas. Então, por que tentar salvar o planeta para a humanidade? Por que não tentar salvar o planeta da humanidade?
Um grande problema com esse ponto de vista – que Kirsch negligencia – é que ele confunde a destrutividade de humanos em particular com a destrutividade da humanidade em geral. Reconhecer que as mudanças climáticas são impulsionadas pela atividade humana não deve nos impedir de identificar com precisão quais são os seres humanos e as atividades a serem culpabilizadas. Muitas pessoas estão preocupadas com as mudanças climáticas e mudaram seu comportamento, por exemplo, usando o transporte público, reciclando ou sendo mais conscientes sobre o que compram. No entanto, essa mudança de comportamento individual não é suficiente, porque as mudanças climáticas são impulsionadas pelo comportamento em grande escala das empresas e dos governos.
Em outras palavras, é enganador dizer que entramos no “Antropoceno”, porque o antropos não é, em seu conjunto, culpado pelas mudanças climáticas. Em vez disso, a fim de pôr a culpa em quem realmente se deve, seria mais apropriado – como argumentaram Jason W. Moore, Donna J. Haraway e outros – dizer que entramos no “Capitaloceno”. Culpar a humanidade em geral pelas mudanças climáticas desculpa esses indivíduos e grupos específicos realmente responsáveis.
Dito de outra forma, ver todos como responsáveis é não ver ninguém como responsável. O anti-humanismo do Antropoceno, portanto, é uma vitória das relações públicas para as corporações e os governos que estão destruindo o planeta. Eles podem manter seus negócios como sempre, sob o pretexto de que a própria natureza humana é a culpada pelas mudanças climáticas e de que há pouco ou nada que as empresas ou os governos possam ou devam fazer para as impedir, uma vez que, afinal de contas, eles são apenas humanos.
Kirsch não aborda essas críticas diretas ao anti-humanismo do Antropoceno. Isso põe em dúvida sua afirmação de que ele está catalogando os pontos de vista deles para julgar se são convincentes e para explorar seu provável impacto. Kirsch menciona brevemente a ativista Greta Thunberg como uma potencial opositora dos anti-humanistas niilistas, mas não considera o desafio dela em profundidade. Ele simplesmente escreve:
“Os discursos de Thunberg são apelos à ação, o que implica que existem ações corretivas a serem feitas e que as pessoas são capazes de as fazer. Mas, para os anti-humanistas do Antropoceno mais empenhados, a corrupção da nossa espécie é mais profunda do que os governos e as corporações irresponsáveis de hoje. O estado do planeta revela que a humanidade é essencialmente uma destruidora e assim tem sido desde o início de sua aparição no planeta.”
Certamente, o objetivo do livro de Kirsch é introduzir, e não refutar, o anti-humanismo do Antropoceno, mas uma introdução mais completa poderia ter apresentado e avaliado as críticas básicas e explorado que recursos, se é que existem, o anti-humanismo poderia ter para lhes responder. Na ausência desse trabalho crítico, Kirsch faz com que esses pontos de vista pareçam mais convincentes do que realmente são.
Esse ponto de vista de que “a humanidade é essencialmente uma destruidora” leva do anti-humanismo do Antropoceno ao outro tópico principal de Kirsch: o trans-humanismo. A “corrupção da nossa espécie” que torna inevitável a nossa destruição como resultado das mudanças climáticas anda de mãos dadas com a visão trans-humanista de que a espécie humana deve ser substituída.
Em sua análise do trans-humanismo, a apresentação de Kirsch vai ainda mais longe ao fazer com que seus adeptos pareçam mais convincentes do que realmente são. Alguns leitores podem se sentir atraídos pela ideia anti-humanista de que a nossa corrupção inerente nos levou à beira do desastre, mas repelidos pela sua aceitação da extinção.
O trans-humanismo parece oferecer uma opção mais esperançosa. Em vez de simplesmente deixar a humanidade ir embora, os trans-humanistas propõem que sejamos substituídos por algo melhor. Sua adoção da tecnologia que pode criar uma nova espécie “pós-humana” faz com que eles pareçam salvadores em comparação com os anti-humanistas do Antropoceno.
Como escreve Kirsch, de acordo com os trans-humanistas, “é verdade que a humanidade atingiu um ponto em que o nosso poder tecnológico ameaça nos destruir. Mas, se esse poder continuar crescendo no mesmo ritmo que tem registado ao longo dos últimos 200 anos, ele se tornará o meio da nossa salvação”.
Há duas grandes suposições envolvidas aqui, que Kirsch, de forma útil – para o trans-humanismo –, não consegue desvendar. A primeira é de que o progresso tecnológico do passado para o presente pode ser projetado para o futuro. Isso faz com que as previsões do “pós-humano” pareçam mais lógicas do que ideológicas.
A segunda é que a substituição é “a nossa salvação”. Os trans-humanistas assumem que o progresso tecnológico culminará em um novo passo na evolução humana, em que o “pós-humano” não nos substituirá realmente, mas, ao invés disso, nos melhorará e ampliará a nossa existência em uma forma nova e melhor. Em outras palavras, o trans-humanismo exige que possamos remover as nossas identidades, concebidas basicamente como um “software”, dos nossos corpos e simplesmente movê-las para um novo “hardware”.
Kirsch salienta que “o trans-humanismo tem uma tendência inata a fazer promessas demais” e que “os grandes avanços parecem estar sempre e simplesmente no horizonte”. Mas ele imediatamente defende os prognósticos dos trans-humanistas, afirmando que “eles estão extrapolando a partir de desenvolvimentos que são inegavelmente reais”.
Muitos desses “desenvolvimentos”, no entanto, são negáveis e não reais. Por exemplo, sem citar provas, Kirsch ecoa afirmações trans-humanistas de que “sabemos que a mente humana tem uma base completamente material” e que “o próprio cérebro é um computador”. Isso significa que podemos ter “uma mente uplodeada” na realidade virtual do “metaverso”, onde “precisaremos de nossos corpos físicos apenas como substrato para os nossos corpos virtuais”.
Alternativamente, por meio da “portabilidade a laser”, podemos “liberar a nossa consciência para explorar a galáxia ou mesmo o universo à velocidade da luz”. Kirsch não trata essas afirmações com um ceticismo suficiente.
Há muito tempo, os filósofos têm tentado superar esse tipo de dualismo cartesiano simplista entre mente e corpo. Até mesmo Descartes não pensava que a mente poderia realmente ser separada do corpo. Ele negava que a relação entre mente e corpo seja comparável àquela entre um marinheiro e um navio.
As nossas mentes não podem ser reduzidas aos nossos cérebros, e os nossos cérebros não podem ser reduzidos a computadores. O que veio a ser conhecido como “o difícil problema da consciência” (explicando como algo inteiramente físico pode possivelmente ser consciente) permanece sem solução. E pode continuar assim, apesar da confiança de alguns cientistas e filósofos.
Da mesma forma, os “problemas difíceis” do metaverso – onde ninguém tem pernas, por exemplo, ou onde ninguém parece querer usá-las – também podem permanecer sem solução. Parece que Mark Zuckerberg já ficou entediado e passou para outra coisa.
No entanto, deve se reconhecer que o fato de esses “desenvolvimentos” serem ou não atualmente reais, ou mesmo possíveis, é menos importante do que saber se eles parecem plausíveis aos investidores. Ainda mais tentadora e persistente do que o dualismo mente-corpo é a ideia da imortalidade. E talvez não haja ninguém para quem isso seja mais tentador do que os idosos bilionários que nem sequer terminaram de gastar seu dinheiro e de desfrutar de seu estilo de vida.
As empresas tecnológicas trans-humanistas que prometem a imortalidade digital, portanto, são investimentos atraentes. É claro que, se esse upload da mente se tornasse possível, apenas os mais ricos poderiam pagar por ele.
Mesmo assim, o investimento em imortalidade digital poderá eventualmente começar a parecer razoável, especialmente se o anti-humanismo do Antropoceno tiver feito parecer inútil usar esse dinheiro para combater as mudanças climáticas.
O anti-humanismo do Antropoceno e o trans-humanismo não envolvem apenas uma “revolta contra a humanidade”, mas também uma revolta contra a responsabilidade. Combinados, eles fazem com que os CEOs das empresas de tecnologia pareçam os nossos salvadores, e não os nossos destruidores. Aqueles que enriqueceram ao destruírem o planeta em nome do progresso tecnológico podem usar essa destruição para justificar sua busca por mais progresso tecnológico, que agora aparece como a única solução para a crise que eles ajudaram a causar.
Kirsch sugere que, “em última análise, os trans-humanistas e os anti-humanistas poderiam convergir para um ideal de extinção, com a humanidade voraz abrindo caminho para seres virtuais mais sábios que pisam com mais leveza no planeta”, mas essa visão reforça a fantasia de que as empresas de tecnologia são uma solução para as mudanças climáticas, e não um de seus impulsionadores.
A criação de “seres virtuais” requer enormes centros de dados e enormes quantidades de eletricidade, e, assim, a busca do trans-humanismo reforça o anti-humanismo do Antropoceno, tal como o anti-humanismo do Antropoceno reforça o trans-humanismo.
Apropriadamente, dado o niilismo por trás do anti-humanismo do Antropoceno e também do trans-humanismo, Kirsch conclui discutindo Nietzsche. Nietzsche criticou os “padres ascetas” que ele achava que não ofereciam nada além de curas para as doenças que eles mesmos espalhavam. Da mesma forma, ele teria rejeitado tanto o anti-humanismo do Antropoceno quanto o trans-humanismo, não só por verem a humanidade como fundamentalmente doente, mas também por oferecerem soluções que só podem servir para adoecer ainda mais a humanidade.
Kirsch se preocupa com o fato de esses pontos de vista serem suficientemente convincentes a ponto de terem um impacto na sociedade, quer sejam corretos ou não, mas muitas vezes não está disposto a apontar falhas básicas nesses pontos de vista ou nos interesses a que servem.
O anti-humanismo do Antropoceno e o trans-humanismo são perigosos não só porque podem impedir as pessoas de se preocuparem com a destruição do planeta, mas também porque encorajam as pessoas que realmente o estão destruindo.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A revolta do pós-humanismo contra a responsabilidade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU