06 Novembro 2023
"O rosto da Igreja se transforma, tornando-se mais samaritana, mais capaz de se indignar e se comover. Uma Igreja que não consegue ficar indiferente, “perita em humanidade”, confiante no Pai e pronta, sempre, a recomeçar", escreve Dário Bossi, religioso comboniano no Brasil. Depois de passar dez anos no Maranhão – estado afetado por intensa mineração – está empenhado na defesa dos direitos ambientais dos povos. Atua na Rede eclesial pan-amazônica (REPAM) e na pastoral social da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
Cinquenta grupos empresariais no Brasil têm direito a usar 5,2 trilhões de litros de água por ano. São gigantes do agronegócio, do setor sucroalcooleiro e do papel e celulose. Toda esta água seria suficiente para abastecer, por um ano, 94 milhões de pessoas, quase a metade do país.
Ao oposto deste projeto de concentração, temos no Brasil o projeto de convivência com o semiárido, que se destacou pelo programa “Um milhão de cisternas”. Este programa fomenta a cultura do estoque (de água, alimento e sementes). Em vez de grandes açudes em terras particulares, as cisternas estocam um volume de água para uso de cada família; o princípio fundante da cultura de convivência com o semiárido é a descentralização e a democratização da água. As famílias que o adotam passam de dependentes a gestoras de sua própria água.
Este contraste é um exemplo dos diversos projetos que moldam as relações de vida entre as pessoas, e delas com o meio ambiente, em nosso país. Um projeto popular precisa responder com consciência e criatividade às ameaças que estão destruindo o tecido destas relações.
Papa Francisco denuncia, em sua exortação apostólica Laudate Deum, o “pragmatismo homicida” que nos deixa tranquilamente conviver com este sistema de morte. “Corremos o perigo de ficarmos presos na lógica de corrigir, colocar remendos, amarrar com arame, enquanto sob a superfície avança um processo de deterioração que continuamos alimentando. (...) É como chutar uma bola de neve para frente”.
Para consolidar propostas capazes de uma mudança radical, precisamos dar nome às doenças deste sistema.
A primeira é o extrativismo predatório, adotado tanto à direita como à esquerda, como solução econômica para nossos países, considerados “subdesenvolvidos”. Este modelo extrativista garante a concentração de bens para as elites econômicas, que precisam de cada vez mais proteção para permanecer nas “áreas vip” do Planeta, enquanto a maioria vive nas cada vez mais amplas “zonas de sacrifício”. Além disso, este modelo homogeneíza as produções e as pessoas, pois o mercado lida mais facilmente com as massas homogêneas de consumidores e tende a reduzir ao máximo as diversidades, que podem representar elementos de resistência.
A segunda é a colonialidade, condição necessária para o capitalismo. Este, por definição, tem valor e conveniência só na medida em que crescer e se expandir continuamente. Daí, a necessidade de conquistar, de avançar sempre para além dos limites e por cima dos projetos dos outros.
O racismo, terceira doença, é o antiprojeto da fraternidade universal. Não se trata simplesmente de um desvio descontrolado de grupos humanos que radicalizaram sua intolerância. É um verdadeiro projeto, uma arquitetura necessária e constantemente alimentada para preservar os privilégios de alguns. Hoje ficou explícito, nas atitudes e escolhas políticas das elites, que não há mais mundo para todo mundo: a única solução para garantir a superabundância de alguns é descartar ou marginalizar muitos outros. Assim, o racismo é a justificação (anti)ética da colonialidade, oferece razões e narrativas que agregam as pessoas ao redor do discurso de ódio.
O patriarcado, da mesma forma, é o antiprojeto da igualdade de gênero, tida como ameaça pelo perigo da afirmação de novas categorias de relação e inclusão, num mundo moldado pelos padrões machistas. Esta doença atravessa a sociedade, descontrolando-se em muitas famílias onde se naturalizou a violência doméstica, até o feminicídio, hierarquizando as relações de trabalho e atrapalhando em muitos casos os caminhos de conversão de nossa própria Igreja.
O diagnóstico simplificado que apresentamos acima demonstra que as graves contradições da miséria, da desigualdade, da guerra entre pessoas e contra a Mãe Terra não são simplesmente erros de percursos de uma humanidade que perdeu seu rumo, mas efeito previsto e organizado por uma arquitetura de exclusão e de privilégios. Fruto amargo de projetos de poder, frente aos quais, hoje, nos interrogamos como Igreja: é possível desenhar novos projetos populares, capazes de “esperançar”?
A Igreja é parte integrante desta sociedade estruturalmente adoecida. Assim, o Espírito de Vida que ela deveria trazer à sociedade, renovando-a à luz do Evangelho, frequentemente fica sendo sufocado. Também porque crescem, dentro da Igreja, algumas doenças próprias, que acenamos a seguir.
A primeira é a dissociação entre o indivíduo e a comunidade, que leva à autogestão religiosa. Já era uma tendência típica de nosso tempo pós-moderno, mas ficou ainda mais acentuada no longo tempo da pandemia, que transformou profundamente o sentido de pertença e a rede de relações religiosas de muitas pessoas, famílias e comunidades.
Outra dissociação é aquela entre a fé e a transformação social que o Evangelho recomenda. Muitas pessoas separam drasticamente estas duas dimensões e consideram que podem viver plenamente sua experiência de fé de modo totalmente desvinculado do compromisso social. Aliás, há diversos grupos fundamentalistas e arrogantes que atacam a Igreja quando ela propuser esta conexão, rotulando-a e condenando-a por estar, supostamente, se desviando da fé.
Estes ataques à dimensão libertadora da religião, na verdade, disfarçam outros interesses: os interesses financeiros e de controle do poder de grupos que financiam e amparam os “profetas da desgraça” de hoje, condenadores da CNBB, do Sínodo, do Ensino Social da Igreja e de tudo que possa minimamente ameaçar os projetos de concentração de que falávamos acima.
Uma última doença, plenamente humana e compreensível nos tempos de hoje, é o desânimo e a resignação. Nestes anos, deparamo-nos com desafios muito maiores que nossas forças e com problemáticas absolutamente desproporcionais, como a emergência climática, a desigualdade crescente, a perda de governança global e a incapacidade política de evitar novas guerras e construir soluções diplomáticas para aquelas já em curso. As pessoas de fé, que deveriam anunciar esperança, acabam retirando-se na esfera mais íntima do autocuidado e da busca de consolação, porque nas condições de hoje não conseguem imaginar outros horizontes.
Toda esta longa introdução contextual serviu, espero, para mostrar a urgência de outro projeto, entrelaçando iniciativas das igrejas e da sociedade civil organizada, que voltem a abrir perspectivas de protagonismo para muitas pessoas que se sentem, hoje, cansadas e abatidas.
Quais as principais características de um projeto popular? Por ser popular, ele reconhece os verdadeiros protagonistas da história: “o povo fiel de Deus”, como disse Papa Francisco na Assembleia para uma Igreja Sinodal em Roma, em outubro; as comunidades, as pessoas “de a pé”, os grupos que ainda hoje são capazes de auto-organização, como os comitês populares (na linguagem dos movimentos), ou os círculos bíblicos e as CEBs (na linguagem eclesial). A Igreja tem uma rica e longa experiência em promover a reflexão popular sobre a fé, reunindo pessoas ao redor da Palavra de Deus e em constante conexão com os sinais e os desafios dos tempos. Por exemplo, no caso da atual Campanha da Fraternidade para a superação da fome, uma coisa seria uma Igreja assistencialista e preocupada só com as soluções emergenciais; outra coisa é uma rede de comunidades que, ao promover a solidariedade, provoque também reflexão e compromisso sobre as causas da fome e o compromisso sociotransformador da fé.
Por ser popular, o projeto nos provoca a respeito de seus alcances: quanto realmente estamos conseguindo “popularizar” nosso chamado à ação? De que formas a oportunidade de construir este projeto está nos aproximando mais aos territórios dos quais a Igreja vem progressivamente se retirando, especialmente as periferias urbanas?
Uma outra característica do projeto é sua radicação nos territórios. É neste nível que acontecem as mudanças mais “radicais”, como é obvio compreender. Portanto, cabe à Igreja uma postura de firme oposição a todos os projetos que agridem os territórios ou impedem às comunidades definirem neles seus planos de vida. Ao mesmo tempo, por suas características, a Igreja tem a preciosa oportunidade de “escalar” os processos de denúncia ou de incidência política, nas diversas esferas a que a Igreja tem acesso, em nível local, regional, nacional e mundial. O projeto que queremos construir, então, parte dos territórios e prioriza ações locais, mas se organiza de forma multiescalar para potencializar, em todos os níveis, as reivindicações dos excluídos/as.
Para isso, é indispensável o diálogo entre a Igreja, com seus organismos e pastorais sociais, e os movimentos populares. Papa Francisco os chama de “poetas sociais”. Realmente, como foi dito, “a beleza salvará o mundo”: também a beleza da práxis criativa, da arte que se associa à militância, da espiritualidade que fecunda a luta.
Outra dimensão característica de um projeto popular é a superação da democracia representativa, aquela que distribui cargos e encargos e acaba por separar os “especialistas” do jogo político dos cidadãos inertes. Acreditar na democracia participativa significa rejeitar a busca de soluções que venham “de cima” e exigir, ao contrário, que as instituições políticas repliquem e estruturem modelos socioeconômicos experimentados “nas bases” por sua eficácia. Uma reconstrução em chave local daquilo que Papa Francisco vem chamando de “multilateralismo a partir de baixo”.
Isto requer escuta, contato com as comunidades, “cheiro de ovelhas”; comporta também um exercício de formação permanente, monitoramento e controle social, que dinamiza as comunidades e as mantém vinculadas ao projeto que apresentaram. Gera-se uma dinâmica de pertença: o projeto não é entrega de um produto a outras instituições que o administrem, mas algo “nosso”, que precisamos fazer crescer, dentro do qual também crescemos. “Ninguém solta as mãos de ninguém”: cria-se um pacto social que devolve sentido, mesmo nestes tempos de desesperança.
O rosto da Igreja se transforma, tornando-se mais samaritana, mais capaz de se indignar e se comover. Uma Igreja que não consegue ficar indiferente, “perita em humanidade”, confiante no Pai e pronta, sempre, a recomeçar.
Obs.: a 6ª Semana Social Brasileira realizou uma longa jornada de diagnósticos e análise do “Brasil que temos” e encontra-se, agora, exatamente na etapa de construção de um projeto popular: “O Brasil que queremos – o Bem Viver dos povos”. Este projeto, construído de forma descentralizada nos diversos regionais do país, terá sua convergência em março de 2024, quando se celebrará o mutirão de encerramento e encaminhamentos da 6ª Semana.
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Semana Social Brasileira: tempo de um projeto popular. Artigo de Dário Bossi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU