21 Outubro 2023
"O que atua como catalisador dos diversos aspectos do desconforto é sobretudo a condição de solidão que os adolescentes e jovens vivenciam", escreve Giannino Piana, ex-professor das universidades de Urbino e de Turim, na Itália, e ex-presidente da Associação Italiana dos Teólogos Moralistas, em artigo publicado por Alternativa, n. 3, setembro de 2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
O desconforto juvenil atingiu proporções alarmantes nos últimos anos, com o não infrequente aparecimento de situações patológicas. As causas desse fenômeno são muitas e diferentes, e ele se tornou objeto de profundas investigações sociológicas e análises psicológicas que têm evidenciado as diversas facetas, remontando às suas origens e fornecendo informações valiosas para poder abordá-lo adequadamente. Um papel decisivo na causa do aumento do desconforto é desempenhado certamente pelas mudanças profundas e rápidas que ocorreram em nível sociocultural com a afirmação do paradigma tecnológico e a dificuldade em combiná-lo com uma adaptação paralela da consciência. A influência exercida pelas redes sociais com risco de pesado condicionamentos, a ausência de sérias perspectivas para o futuro - basta pensar na questão do trabalho - e o impacto limitado sobre o tecido social (também em decorrência da redução do número de jovens devido à diminuição da natalidade), com a consequente hegemonia de modelos culturais que expressam os valores de um mundo de adultos e de idosos, são outros tantos fatores que contribuem para alimentar o desconforto, que assume cada vez mais as conotações de um verdadeiro mal-estar ontológico.
Mas, para além desses aspectos, que, contudo, merecem grande atenção, na origem desse estado de desorientação e de medo, existe sem dúvida uma profunda crise dos valores morais e civis, que no passado serviam de alicerce para o processo de formação da personalidade, conferindo-lhe solidez e segurança. As breves notas que aqui propomos são dedicadas a esse aspecto ético-cultural.
A crise dos valores tem as suas raízes no processo de secularização, cujos primórdios coincidem com o nascimento da sociedade moderna, mas que se torna um fenômeno de massa a partir do final do século passado, transformando-se gradualmente em secularismo, com efeitos que vão além da crítica (por vezes justificada) do “sagrado” até assumir um valor ético, colocando em discussão, ou pior colocando de lado como anacrônicas, as grandes questões do sentido e do fundamento. Ao desvanecimento da demanda religiosa associa-se, portanto, (e com ela interage) a ausência de perspectivas de valor para a afirmação daquele “politeísmo de valores” (ou “sistemas de valores”) – como Max Weber o define – consequência do “desencantamento do mundo”.
A queda das grandes narrativas religiosas, do pensamento metafísico e dos projetos ideológicos retiram da ética as bases tradicionais sobre as quais se alicerçar, deixando o lugar da avaliação e orientação do agir para critérios meramente utilitaristas. O que dá conteúdo a tais critérios é a lógica do “mercado”, que se tornou “pensamento único”, que tem como o objetivo a busca da eficiência produtiva e o consumo. Em outras palavras, o que conta é o “fazer” e o “ter”, portanto não o “ser”, ou seja, o crescimento interior da pessoa e a busca da sua verdadeira identidade. A isso se associa o avanço de uma cultura individualista, que reage à tensão sócio-política dos anos 1970; uma cultura em que prevalece a busca pela autorrealização, que acentua impulsos de natureza privada, individual ou corporativa - o neocorporativismo é um dos traços identitários da cultura hoje dominante - que tem como efeito a ruptura do tecido social.
A essa situação, já por si alarmante, acrescenta-se a ausência de figuras parentais que saibam (e possam) exercer seu papel com autoridade. E isso tanto por fragilidade da própria personalidade, pois eles também vítimas do relativismo cultural e ético imperante, quanto pelo aprofundamento do fosso entre as gerações devido ao ritmo acelerado das mudanças em curso. A relação dos filhos com as suas figuras maternas e paternas corre o risco de se reduzir a um nível utilitário: a satisfação das necessidades materiais e a necessidade de proteção são as razões para a manutenção da relação, sem uma verdadeira comunicação devido à distância, intransponível, das respectivas concepções da vida e do universo de valores. Os pais tendem então, para manter a relação, a considerar e tratar os filhos como amigos, defendendo-os em todas as circunstâncias, mesmo quando cometem erros com a consequente dificuldade de intervenção dos outros órgãos educacionais - a escola em primeiro lugar – exercendo o seu papel formativo. Prova disso é a repetição de casos de verdadeira violência de alunos contra seus professores; casos que permanecem sem ações punitivas adequadas devido às ameaças muitas vezes apresentadas pelos pais que sempre e inquestionavelmente assumem uma posição defensiva em relação aos filhos.
Por sua vez, a escola vive numa condição de particular sofrimento. E não apenas pelo motivo já mencionado – a dificuldade de relação entre pais e professores – mas por razões mais profundas que podem ser atribuídas ao modelo cultural que continua a propor e que não corresponde à sensibilidade dos jovens de hoje, filhos de uma sociedade digital, onde a tecnologia em constante evolução não pode ser reduzida a simples instrumento, do qual é necessário avaliar, a cada oportunidade, o uso que dela se faz, mas que tem impacto, por sua invasividade, na consciência causando uma verdadeira mutação antropológica. O risco é, portanto, que o que é ensinado não seja assimilado, exceto superficialmente e de forma nocional, e que se sobreponham entre si dois mundos sem possibilidade de reconciliação, com o resultado de não conseguir evidenciar os riscos envolvidos na adoção do paradigma tecnológico e não propor respostas plausíveis às demandas de sentido; respostas que só podem ser fornecidas recorrendo ao patrimônio da tradição humanística.
Mas isso não é o suficiente. A fragilidade da escola também é motivada por um progressivo desinteresse do corpo docente - a má remuneração econômica é uma das causas - e, em alguns casos (não infrequentes), também pelo rebaixamento do nível cultural, sendo a escola considerada por muitos deles como um quebra-galho para garantir um salário, mesmo que, como foi dito, bastante restrito e dedicando-se principalmente a outras atividades menos frustrantes e mais remunerativas. Eu sempre fui contrário à meritocracia - Dom Milani não deixou de nos alertar a esse respeito - mas estou convencido de que, da mesma forma que é injusto tratar de forma diferente funções iguais, também é igualmente injusto tratar serviços diferentes de forma igual. A homologação que hoje se constata com juízos e votos cada vez mais altos – e essa é também uma das consequências do temor das reações dos pais – denuncia um estado de relaxamento que prejudica para a seriedade do empenho escolar, com repercussões negativas também no campo educacional. Se antigamente havia excesso de severidade nos juízos, hoje caímos no excesso oposto com uma desvalorização efetiva do valor da escola!
O que atua como catalisador dos diversos aspectos do desconforto é sobretudo a condição de solidão que os adolescentes e jovens vivenciam. As relações com a família e a escola, quando existem, são puramente formais: situação que acentua o estado de isolamento, que os leva a fechar-se em si mesmos impelindo-os para um uso cada vez mais imoderado do computador, que reduz os espaços de socialização com seus pares e favorece o recurso a relações puramente virtuais. A recente pandemia de Covid-19 agravou seriamente a situação: adolescentes e jovens encontraram-se por cerca de dois anos com um espaço bastante limitado de possibilidades de socialização e sofreram particularmente para essa situação com um estado geral de forte insatisfação – foram de fato as maiores vítimas em nível psicológico - e com o crescimento das patologias.
Diante dessa situação o que fazer? Limito-me a sugerir três considerações. A primeira chama em causa a questão dos valores. Mesmo no pleno respeito do pluralismo dos sistemas de valores, ainda é necessário encontrar hoje um terreno comum em torno do qual convergir na busca de um ethos civil. Acredito que a possibilidade existe, embora as dificuldades para atingir esse objetivo sejam grandes. O método a seguir é aquele proporcionado pela ética da comunicação delineada por Habermas, que pressupõe o respeito mútuo pelas posições dos vários grupos sociais e a séria vontade de cooperar entre si em vista de uma possível convergência. Um modelo exemplar é representado, nesse sentido, pelo trabalho realizado na época pelos Constituintes – por exemplo, nos doze primeiros artigos da Constituição - que elaboraram um ethos civil, ainda atual, embora hoje nos encontremos numa situação diferente pelo desparecimento daquelas “evidências éticas” que no passado garantiam a existência de uma plataforma comum como base da qual começar. A esperança é que isso se concretize rapidamente, proporcionando aos adolescentes e aos jovens um ponto de referência indispensável em que confiar.
A segunda consideração tem a família como objeto. É importante que os pais exerçam a sua função educativa, sem ter medo de recorrer ao princípio da autoridade.
A educação comporta, de fato, também a capacidade de dizer “não” a alguns pedidos do filho ou de corrigir alguns dos seus comportamentos errados, só assim se poderá ajudá-lo a crescer. Mas comporta também (e sobretudo) a transmissão de valores aos quais os jovens possam conformar as suas escolhas existenciais. Aqui entra em jogo a credibilidade dos pais, que devem se tornar o modelo de referência com sua conduta: não se educa pelo que se fala, mas pelo que se faz. Tudo isso sem esquecer que o objetivo do processo educativo é colocar em condições a criança para agir de forma autônoma; o que significa que o educador deve gradativamente recuar, até desaparecer, possibilitando ao filho adquirir sua própria liberdade de decisão.
A terceira consideração refere-se ao processo educativo da escola. Uma condição fundamental nesse sentido é a proposta de um modelo cultural, que saiba partir das instâncias próprias do modo de perceber a realidade daquele que somos chamados a educar - instâncias ligadas à dependência do paradigma tecnocrático - e saiba ao mesmo tempo fornecer as ferramentas para sua leitura crítica. Para alcançar esse objetivo torna-se necessário dar vida a um modelo cultural em que a cultura científica e a cultura humanística se integrem, evitando tanto a queda numa forma de cientificismo árido como numa forma de humanismo ideológico. Isso também deve ser acompanhado pela superação da atual situação de laxismo para transformar a escola numa instituição empenhada em fornecer os instrumentos essenciais para o crescimento da pessoa, fazendo da educação um momento essencial da atividade educativa.
Nessas condições, e somente nessas, é possível ajudar adolescentes e jovens a sair do atual estado de desconforto, devolvendo-lhes a esperança num futuro promissor e dando-lhes a possibilidades de se tornarem os artífices do seu próprio destino e daquele de toda a humanidade.
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O desconforto juvenil e a crise de valores. Artigo de Giannino Piana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU