18 Agosto 2020
"Precisamos de uma espécie de reencantamento: precisamos desenvolver a sensibilidade de que todos os seres humanos têm uma dignidade ou sacralidade inerente igual, o que muitas vezes alcançamos não por meio de argumentos, mas pela nossa própria experiência engajada e também pelo exemplo do amor incondicional", opina David McPherson, professor de filosofia, autor de Virtue and Meaning: A Neo-Aristotelian Perspective.
David McPherson leciona filosofia na Universidade de Creighton, em Omaha, no estado americano do Nebraska, onde vive com a esposa e seus quatro filhos. É autor de Virtue and Meaning: A Neo-Aristotelian Perspective (Cambridge University Press, 2020), e o organizador de Spirituality and the Good Life: Philosophical Approaches (Cambridge University Press, 2017). Atualmente, McPherson trabalha em um segundo livro, intitulado The Virtues of Limits.
A entrevista é de Charles C. Camosy, publicada por Crux, 17-08-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Muitos provavelmente ouviram falar de um encantamento, desencantamento e mesmo de um reencantamento. Em poucas palavras, pode nos falar do que se trata estes debates e o que acha que está em jogo?
Grande parte desses debates concentram-se no problema do desencantamento, o qual, conforme compreendo, tem a ver principalmente com uma perda de sentido ou valor, ou, no mínimo, com uma ameaça percebida de uma tal perda.
O termo “desencantamento” foi usado pela primeira vez pelo sociólogo alemão Max Weber, no ensaio A ciência como vocação, e foi usado por muitos pensadores subsequentes, incluindo, de modo notável, o conhecido filósofo católico Charles Taylor, no influente livro de 2007, intitulado Uma era secular (São Leopoldo, Editora Unisinos, 2010, 930 pp).
O problema do desencantamento é um problema marcadamente moderno, pois as questões de sentido e valor passaram a ser mais problemáticas com a ascensão da ciência moderna. Em particular, a ciência moderna tem a tendência de deixar de lado explicações teológicas das coisas (incluindo os seres humanos), onde elas são compreendidas em termos se finalidade (telos, em grego), em que a realização desta finalidade significa alcançar o bem delas como o tipo de coisa que elas são. Este afastamento da teologia levou ao que se chamou de “problema fato-valor” (ou o problema do ser x dever ser), em que há o problema de como podemos derivar um valor a partir dos fatos sobre o mundo. Esta questão dá forma a abordagens subjetivistas sobre o valor, como a visão de que as nossas experiências de valor são apenas projeções dos nossos sentimentos sobre o mundo. Em contraste, uma explicação objetivista do valor recorre a valores intrínsecos (por exemplo, a dignidade humana, a nobreza da virtude, etc.), onde eles são tomados como existentes, independentemente se somos responsivos ou não a eles.
Uma forma mais extrema do desencantamento combina o subjetivismo valorativo com uma compreensão reducionista da vida humana, na qual as nossas experiências de sentido ou valor são entendidas como o simples produto dos nossos genes, ou da “fiação” do nosso cérebro, ou um mecanismo de estímulo e resposta, ou algo mais nesse sentido. Em grande parte, o problema do desencantamento, penso eu, surge por causa da prevalência das várias formas de cientificismo da vida intelectual moderna, que privilegiam uma cosmovisão sem engajamento (ou em terceira pessoa, ou ainda observacional) que prescinde das nossas experiências com engajamento (ou em primeira pessoa, ou participativas) da significação da vida e dos seres ao redor.
Devo observar que aqueles que abraçam o desencantamento muitas vezes abraçam uma visão impessoal ou ateísta do universo. Por exemplo, vemos isso na seguinte declaração feita por Richard Dawkins em seu livro O rio que saía do Éden: Uma visão darwiniana da vida: “O universo que observamos tem exatamente as propriedades que esperamos que tenha se não houver, no fundo, nenhum desígnio, nenhum propósito, nenhum bem ou mal, nada senão indiferença cega e impiedosa”.
Qual a sua posição diante desses debates? Onde se situa?
Definitivamente, fico do lado do reencantamento. No entanto, como discuto no livro Virtue and Meaning (Virtude e significado), o termo “reencantamento” pode levar a equívocos. Aparentemente, ele sugere que estamos tentando voltar a uma cosmovisão pré-moderna, porém isso não é viável. Aparentemente, ele sugere também que o mundo está completamente desencantando (isto é, desprovido de sentido e valor) e, portanto, devemos criar, outorgar ou, de alguma forma, atribuir à existência algum sentido ou “encantamento”.
Como entendo, o reencantamento tem mais a ver com uma redescoberta (ou recuperação) de algo que já está aí para ser descoberto no mundo, a saber: valores objetivos aos quais devemos ser responsivos. O mundo está precisamente, completamente, desencantado, e a busca, portanto, de um reencantamento tem a ver com a defesa da validade dos valores objetivos contra essa visão do desencantamento.
Parte dessa tarefa é a de superar os modos nos quais os valores objetivos foram negligenciados ou obstruídos pelas formas dominantes do cientificismo que privilegiam um ponto de vista sem engajamento. A meu ver, o que precisamos é de uma abordagem engajada que seja adequadamente responsiva ao valor objetivo, ou aquilo que chamo de “sentido avaliativo forte”, ou seja, o sentido ou valor que envolve uma distinção qualitativa e que especifica aquilo com o qual devemos nos preocupar e em direção ao qual devemos orientar nossa vida: por exemplo, o mais elevado, o mais nobre e o sagrado.
Entretanto, também acho que precisamos de uma visão de mundo à luz da qual estes sentidos avaliativos fortes podem fazer sentido. Sustento que isso exige uma visão de mundo teleológica, especificamente, e busco mostrar que não há incompatibilidade entre uma tal visão de mundo e a ciência moderna e que, na verdade, podemos encontrar apoio para ela nos debates a respeito do aparente ajuste fino do universo para a vida e os seres inteligentes conscientes, como nós mesmos.
Por fim, nos últimos dois capítulos do livro, procuro argumentar no sentido da perspectiva mais reencantada que permanece uma opção viva, a saber, uma cosmovisão teísta.
Você destaca como demasiadamente “plana” a abordagem dominante à ética aristotélica contemporânea, para qual vários importantes filósofos católicos recentes – a saber, Elizabeth Anscombe e Alasdair MacIntyre – contribuíram. Essencialmente, você acha que esta abordagem serve como forte sustentação aos defensores do desencantamento. Pode nos falar mais sobre essa crítica?
Fui levado à tradição aristotélica da “ética da virtude” e encontrei muitas coisas que são compatíveis com o renascimento desta tradição nos últimos cinquenta anos aproximadamente. No entanto, também me decepcionei com certa uniformidade na abordagem dominante. Embora os aristotélicos contemporâneos têm buscado responder ao problema fato-valor e defender a objetividade ética (e, portanto, buscam uma espécie de reencantamento), penso que a abordagem que hoje predomina cedeu muito ao cientificismo prevalecente na vida intelectual moderna.
Esta abordagem enfatiza uma cosmovisão observacional (ou sem engajamento) e não um ponto de vista participativo (ou engajado), como se vê na ênfase que ela põe na analogia entre o florescimento humano (o que a virtude nos ajuda a alcançar) e o florescimento dos outros seres vivos e, assim, ignora muitos dos sentidos pelos quais vivemos e muitas vezes buscamos, inclusive aquilo que chamo de sentidos avaliativos fortes. Em outras palavras, a abordagem dominante não consegue explicar adequadamente a nossa natureza distintiva enquanto animal buscador de sentido. Deste modo, essa abordagem apresenta uma compreensão exageradamente desencantada da nossa forma humana de vida.
Eu busco propor um tipo mais pleno de reencantamento através da compreensão da nossa natureza como animal buscador de sentido. Também tento trazer à tona a maneira como o próprio Aristóteles não compartilha da visão desencantada presente na abordagem dominante, como vemos, por exemplo, na forma como a categoria avaliativa forte do nobre opera neste seu pensamento ético, onde realizamos variados atos virtuosos em vista do nobre como constitutivos da nossa realização humana, o que podemos entender, sustento eu, também em termos de uma vida significativa.
Igualmente, mostro que, na verdade, Anscombe, quem primeiro recomendou a abordagem aristotélica desencantada aos filósofos seculares, rejeita, em última análise, essa abordagem, como se vê, por exemplo, no fato de a autora recorrer, mais adiante em sua obra, àquilo que chama de “atitude religiosa” da reverência pela vida humana, a qual ela considera estar disponível a todos.
De que forma essa compreensão dos seres humanos como animais buscadores de sentido se conecta à sua ideia provocativa que considera os seres humanos como homo religiosus? Pode explicar o que entende por este termo?
A afirmação de que os seres humanos são homo religiosus é provocativa em certo sentido, visto que claramente há pessoas que não se consideram religiosas sob nenhuma das formas tradicionais. No entanto, a religião teve um lugar centralmente importante na vida humana ao longo da história, e a maioria de nós reconhecerá algo como “necessidades espirituais” além das necessidades materiais, onde podemos entendê-los em termos de uma necessidade de orientação da vida à luz de sentidos avaliativos fortes (por exemplo, o mais elevado, o nobre, o sagrado, etc.).
Hoje, muitos dizem ter uma espiritualidade consigo, mas também dizem que não são pessoas religiosas, onde não ser religioso significa não participar de uma religião organizada. Entretanto, não creio que podemos traçar alguma distinção clara entre espiritualidade e religião, pois, quando a pessoa leva a sério a questão da vida espiritual – isto é, buscando alinhar a sua vida à luz de fontes autotranscendentes de valor –, naturalmente ela será levada a práticas “organizadas”.
Penso também que uma preocupação pelo sentido na vida e por uma vida significativa conduz a uma preocupação pelo sentido da vida, em outras palavras, uma preocupação em torno de como a vida que levamos se encaixa no grande conjunto das coisas e sobre se existe uma fonte cósmica ou ulterior de sentido ao qual devemos alinhar a vida que vivemos. Então, aqui podemos ver como a compreensão que tenho de nós sendo animal buscador de sentido se conecta com a afirmação de que somos homo religiosus.
A questão do lugar da espiritualidade na vida boa fica fora das reflexões feitas pela maioria dos aristotélicos contemporâneos. Todavia, o próprio Aristóteles reconhecia a dimensão espiritual da existência humana em sua abordagem da vida contemplativa. A maioria dos aristotélicos contemporâneos ignorara o tópico do lugar da contemplação na vida boa. Eu sustento a importância fundamental da contemplação na vida humana e, especialmente, para a resolução do que chamo de o problema da cosmodiceia, que é o problema de se justificar a vida no mundo como digna em face do mal e do sofrimento.
Igualmente busco mostrar os contornos de uma forma especificamente teísta de espiritualidade, a qual nos capacita a enxergar a vida como um dom e reafirmar que a realidade está do lado do bem e a tragédia não tem a palavra final, em outras palavras, permite-nos dizer aquilo que o meu amigo e companheiro filósofo católico John Cottingham chama de “a flutuabilidade do bem”.
Um dos capítulos de seu livro que me chamaram a atenção é aquele que recorre à dignidade humana, especialmente as pessoas profundamente incapacitadas que não podem, em certo sentido, “buscar sentido”, pelo menos na forma como podemos detectar. Como devemos pensar o estatuto moral e o valor destes seres humanos? Precisamos recorrer a um conjunto mais encantado de ideias para explicar aquilo que, espero, nós ainda acreditamos: a saber, que essas pessoas são nossos iguais?
Eis uma área que considero que a abordagem dominante à ética da virtude aristotélica contemporânea se mostra particularmente carente, exatamente porque ignora o apelo à dignidade humana. Consideremos o livro Animais racionais e dependentes, de Alasdair MacIntyre. Ele sustenta que, a fim de alcançar o nosso próprio bem – como criaturas dependentes, vulneráveis que somos –, temos que participar de uma “rede de relações de dar e receber”.
Para MacIntyre, isso inclui mostrar cuidado pelos profundamente incapacitados. Aqui, o autor recorre a uma expectativa de reciprocidade assimétrica, na qual incorremos em dívida em virtude do cuidado que recebemos, e que frequentemente temos de quitar essa dívida não pagando a quem nos deu, mas aos outros que estão necessitados de nossa ajuda. MacIntyre também recorre à identificação empática, onde pensamos que o infortúnio dos outros poderia ser o nosso próprio caso. Estes dois exemplos se justificam dentro da compreensão do autor a respeito do florescimento humano através de redes de relacionamentos de dar e receber.
Essas ideias são importantes, mas o que se destaca no pensamento de MacIntyre é que não há lugar para a afirmação avaliativa forte da dignidade humana, ou da santidade da vida humana, e sem isso há o perigo de não se conseguir enxergar as pessoas profundamente incapacitadas como iguais. Trago isso à tona recorrendo à discussão do filósofo Raimond Gaita sobre a experiência que teve de observação do amor incondicional dado por uma freira a pacientes em um corredor psiquiátrico no qual ele trabalhou quando tinha 17 anos.
Segundo ele, através da conduta amorosa para com os pacientes, a religiosa revelava que estes eram “os iguais àqueles que queriam ajudá-los; mas também relevava que, em nosso coração, não acreditamos nisso”. Mais tarde, ao refletir sobre o exemplo da freira, Gaita escreve: “Passei a acreditar que uma ética centrada no conceito do florescimento humano não tem os recursos conceituais para se manter pleno entre nós, na forma como a freira revelou ser possível, pessoas afligidas de um modo severo e inexorável” (A Common Humanity, p. 19).
Em outras palavras, se o nosso recurso conceitual primordial para a vida ética é a ideia do florescimento humano, então não está claro que ele garante que aqueles que não podem florescer serão considerados nossos iguais.
Precisamos de uma espécie de reencantamento: precisamos desenvolver a sensibilidade de que todos os seres humanos têm uma dignidade ou sacralidade inerente igual, o que muitas vezes alcançamos não por meio de argumentos, mas pela nossa própria experiência engajada e também pelo exemplo do amor incondicional. Curiosamente, o próprio Gaita não é uma pessoa religiosa; ele pensa que somente alguém religioso pode falar com seriedade do sagrado, mas, dado que o autor reafirma a realidade daquilo que revelava o amor da freira a respeito da dignidade profunda de toda vida humana, ele acha que uma pessoa não religiosa precisa tentar encontrar um substituto não plenamente adequado ao modo religioso de falar, como que todos os seres humanos são “preciosos de modo inestimável”.
Isto faz surgir a questão sobre qual cosmovisão consegue melhor sustentar uma maneira de considerar todos os seres humanos plenamente entre nós, e aqui penso que uma perspectiva católica tem algo importante a oferecer, com sua crença de que todos os seres humanos são feitos à imagem e semelhança de Deus.
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A sociedade moderna, o ‘desencantamento’ e a fé. Entrevista com David McPherson - Instituto Humanitas Unisinos - IHU