10 Outubro 2023
"Israel, liderado pelo governo mais extremista da sua história, foi decididamente 'distraído' no ano passado. Para o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, focado internamente na subversão da ordem judicial e internacionalmente na aproximação com a Arábia Saudita, a questão palestina era praticamente inexistente", escreve Nathalie Tocci, diretora do Instituto de Assuntos Internacionais, na Itália, professora honorária da Universidade de Tübingen, e que foi assessora da chefe da Diplomacia da União Europeia, Federica Mogherini, encarregada de elaborar a estratégia global europeia no campo da segurança e a defesa, em artigo publicado por La Stampa, 09-10-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
A palavra mais ouvida nas primeiras horas dramáticas do brutal ataque do Hamas no sul de Israel foi “surpresa”. Mas pode ser considerado uma surpresa esse recrudescimento do conflito, em que já se contam centenas de vítimas civis israelenses e palestinas e que estão destinadas a se tornarem milhares com o passar dos dias? Que verdade está por trás do choque e do espanto? Implícita num ataque de tamanha escala e complexidade é uma preparação que durou meses. As milícias do Hamas, apoiadas pelo Irã, não improvisaram uma agressão como esta; no mínimo, a prepararam nos detalhes militares, políticos, de inteligência, propaganda e terror. No entanto, Israel ostenta serviços militares e de dissuasão entre os mais avançados do mundo. Da vigilância tecnológica aos informantes políticos, do bloqueio total a Gaza - onde dois milhões e trezentos mil palestinos vivem numa prisão ao ar livre desde 2005 - à colaboração com os países árabes, começando por Egito, Jordânia e Emirados, mas como é possível que tamanha organização tenha passado desapercebida sob os radares? Debruçar-se sobre as falhas de inteligência e militares desvia a atenção do verdadeiro fracasso, que é político. E é um fracasso de todos: Israel, a Autoridade Palestina, os países árabes e o Ocidente.
Israel, liderado pelo governo mais extremista da sua história, foi decididamente “distraído” no ano passado. Para o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, focado internamente na subversão da ordem judicial e internacionalmente na aproximação com a Arábia Saudita, a questão palestina era praticamente inexistente. E isso apesar da violência em Jerusalém, na Cisjordânia e em Gaza já estivesse em crescimento: de janeiro até anteontem, mais de 200 palestinos e 30 israelenses já tinham sido mortos em 2023 durante manifestações, confrontos e operações militares, um claro aumento em relação ao ano passado. Mas não só não se falava a respeito; havia até mesmo a ilusão de que o conflito entre os dois países estava adormecido, se não mesmo próximo à estabilização por meio de generosos financiamentos sauditas no contexto de uma normalização das relações com Israel.
E aí está o despreparo de um governo e de um estado iludidos de que a esmagadora força, auxiliada pela subserviência de uma Autoridade Palestina moral e financeiramente corrupta, que há anos vem agindo como braço armado de Israel na Cisjordânia, fosse suficiente para esquecer os direitos espezinhados dos palestinos. Aí está o choque da sociedade israelense, convencida da segurança garantida pelas suas Forças Armadas. Um choque que deflagra e reacende o trauma do outubro de exatamente cinquenta anos atrás, quando o Egito e a Síria pegaram Israel em uma guerra surpresa, aquela do Yom Kippur. É difícil imaginar que a raiva e a dor da sociedade israelense não terão, a longo prazo, consequências para o Primeiro-Ministro Netanyahu e o seu executivo.
Mas o espanto expõe uma ilusão. Citando as palavras de um colega israelense: como é possível acreditar que se pode viver no paraíso quando ao nosso redor há o inferno?
Analisando bem, a surpresa e a absurda cegueira não foram prerrogativa exclusiva de Israel e do seu governo, mas também dos países árabes. Durante meses, as discussões sobre o Médio Oriente giraram em torno das negociações sobre a normalização das relações entre Israel e a Arábia Saudita, mediadas pelos Estados Unidos, que, por sua vez, recompensariam Riad com uma parceria de segurança reforçada, aproximando-se daquela de que Israel desfruta há décadas. Relevante, claro, mas tratando-se de uma oficialização das relações entre dois estados que não estão em guerra, a distensão entre Israel e Arábia sempre foi, no máximo, uma questão secundária. As verdadeiras questões no Médio Oriente dizem respeito aos conflitos abertos, a começar pelo mais importante, ou seja, justamente aquele entre Israel e a Palestina, passando pelo Líbano e a Síria, até chegar ao gigantesco nó regional com o Irã.
Isso não quer dizer que houve uma orquestração iraniana por detrás do ataque de Gaza. Houve um evidente apoio iraniano de tipo político, financeiro, tecnológico e militar, reivindicado abertamente pelo Hamas, e um claro interesse de Teerã em sabotar a normalização entre Israel e a Arábia Saudita, que teria retardado ou mesmo comprometido a aproximação com Riad, sancionada no último outono, com o restabelecimento das relações diplomáticas entre os dois principais rivais do Golfo. Mas, pelo contrário, toda a atenção mediática e o capital político, econômico e de segurança não foram empregados para curar as feridas abertas, mas para colocar um simples curativo onde não havia uma ferida, iludindo-se que os verdadeiros problemas permaneceriam adormecidos.
As responsabilidades cabem sim à região, mas também ao Ocidente. Apenas oito dias atrás, o conselheiro de segurança nacional da administração Biden, Jake Sullivan, havia declarado que o Médio Oriente não vivia um período tão tranquilo há décadas. Deixando de lado as palavras grotescas vistas em retrospectiva, o fato mais marcante diz respeito à gigantesca miopia e hipocrisia que escondem, tanto estadunidenses como europeias. Porque se os Estados Unidos fizeram pouco de bom no Médio Oriente nos últimos anos, a Europa fez menos ainda.
Na Ucrânia sabemos que não há paz sem justiça e que a estabilização não virá com o “congelamento” do conflito, deixando com que a Rússia continue a ocupar territórios e reprimir populações ucranianas: é por isso que apoiamos Kiev. No entanto, no Médio Oriente iludimo-nos de que uma solução semelhante fosse possível, abandonamos os “dois estados para dois povos”, deixamos que aquela solução nascida há trinta anos com um aperto de mão entre Yitzhak Rabin e Yasser Arafat no gramado da Casa Branca, morresse na arrogância de Israel, na fraqueza e corrupção moral da Autoridade Palestina, no cinismo dos regimes do Médio Oriente e na hipocrisia ocidental. A solução morreu no esquecimento, mas o problema, como fica evidente nestes dias de dramática violência, continua bem vivo.
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Não se vive no paraíso se ao redor há o inferno. Artigo de Nathalie Tocci - Instituto Humanitas Unisinos - IHU