23 Setembro 2023
James Carney, que desapareceu enquanto servia de capelão autodesignado para rebeldes hondurenhos em 1983, nunca foi do tipo que amenizava os sentimentos, como as palavras de abertura de sua autobiografia atestam: "Meus queridos amigos americanos, jesuítas e não jesuítas: eu amo todos vocês, e acho que vocês são pessoas maravilhosas e amorosas, mas não suporto viver com nenhum de vocês".
A reportagem é de Jeremy Zipple, publicada por America, 20-09-2023.
Muitos membros da comunidade jesuíta do Pe. Carney provavelmente teriam dito o mesmo sobre ele. Quando ele chegou em Honduras Britânicas (hoje Belize) em 1955 como um jovem missionário em treinamento, o Pe. Carney resmungou que a residência dos jesuítas, bastante modesta pelos padrões americanos, era escandalosamente suntuosa. O superior retrucou que se o Pe. Carney não gostasse, ele o enviaria felizmente de volta para os Estados Unidos no próximo barco.
Em outra ocasião, vivendo em St. Louis, o Pe. Carney avistou um quiosque de jornais vendendo revistas pornográficas perto do campus da Universidade de St. Louis. Ele se apressou até o quiosque, derrubando-o e fazendo com que as revistas voassem, à semelhança de Jesus no Templo.
Mesmo quando era estudante na Escola Preparatória São Luís, dirigida pelos jesuítas, no fim da década de 1930, o futuro jesuíta estava desiludido com o consumismo americano e o catolicismo dócil que ele cultivava. Para ele, a educação em uma escola preparatória jesuíta não era mais do que um meio de garantir carreiras de alto rendimento e estilos de vida confortáveis para jovens brancos bem-sucedidos.
"Eu fui criado como todos vocês, como um americano branco católico de classe média", escreveu em sua autobiografia, Ser um revolucionário. "Mas desde a minha adolescência, eu tenho uma profunda convicção de que a maioria dos católicos de classe média são cristãos falsos, tão materialistas e egoístas quanto qualquer não cristão e muitas vezes mais propensos a seguir os outros".
Imagem: Divulgação
Como a maioria dos profetas, o Pe. Carney possuía uma autoconfiança extrema que tendia a simplificar o mundo em preto e branco, do meu jeito ou da estrada. Mas que o Pe. Carney era um profeta não é questionado por centenas que se reuniram recentemente para lembrá-lo em El Progreso, Honduras, durante uma confraternização de fim de semana do 40º aniversário de sua morte em 16-09-1983. Para aqueles que se encontraram em El Progreso, incluindo vários camponeses hondurenhos que haviam conhecido o Pe. Carney pessoalmente, ele é lembrado como um mártir que entregou sua vida em nome dos pobres da América Central.
Missa em memória de James Carney, 16 de setembro, em El Progreso, Honduras. (Foto: Jeremy Zipple, SJ)
O caminho improvável do Pe. Carney ao martírio em Honduras começou em 1943, quando ele foi convocado para o Exército dos Estados Unidos e prontamente recusou uma comissão de oficial, sem se importar com os privilégios concedidos aos oficiais. Como ele explicou em sua autobiografia, ele queria estar entre as tropas. Eventualmente, ele fez um voto pessoal a Cristo de que nunca mataria ninguém, nem mesmo para se defender. Ele planejava atirar para o ar e se deixar ser morto se algum dia se encontrasse frente a frente com um inimigo.
O Pe. Carney estava em desacordo com o exército em relação a outros aspectos do ensinamento católico também. Os soldados eram obrigados a carregar contraceptivos sempre que deixassem o acampamento de licença. O Pe. Carney se opôs, dizendo que isso ia contra sua religião, não apenas usar contraceptivos, mas até mesmo possuí-los. Seu capitão aconselhou-o a simplesmente aceitar os contraceptivos e não fazer alarde. Em vez disso, o Pe. Carney ameaçou denunciar a prática ao bispo militar, que certamente faria barulho em Washington. O capitão cedeu.
Ao fim da guerra, o Pe. Carney entrou para a Companhia de Jesus (jesuítas), e após vários anos de estudo, voluntariou-se para a missão em Honduras após sua ordenação. Os jesuítas de Missouri haviam começado a prestar serviço nessa missão nos anos 1940, após um pedido de um bispo local por jesuítas que falassem inglês, em parte para atender executivos da United Fruit Company dos Estados Unidos. A importadora de bananas americana possuía vastas áreas de terras em Honduras e, com a ajuda da CIA e do exército dos EUA, frequentemente interferia na política hondurenha para garantir sua manutenção. (Em 1910, outra empresa de bananas dos EUA, que eventualmente se fundiu com a United Fruit, orquestrou um golpe e colocou seu próprio escolhido para a presidência no poder, que prontamente concedeu terras e concessões fiscais à empresa que seu antecessor havia recusado.)
Quando o Pe. Carney chegou a Honduras em 1961, a maioria da população vivia em extrema pobreza. Ele achou a situação intolerável. Os camponeses miseráveis eram impedidos de possuir terras e mal sobreviviam à beira da fome, sem acesso a cuidados de saúde ou educação.
Ele dedicou sua vida à causa deles, vivendo e trabalhando entre eles como padre paroquial e organizando cooperativas de camponeses locais e nacionais para lutar pela reforma agrária e pelos direitos humanos. Enquanto isso, ele repreendia seus irmãos jesuítas da Província de Missouri por sua proximidade com os executivos da banana que causavam tanta miséria aos pobres de Honduras.
Ele era motivado por um profundo amor por Cristo e Seu povo, juntamente com uma raiva que muitos de nós do Norte Global já experimentaram ao chegar em uma zona de extrema pobreza pela primeira vez. Ele escreve em sua autobiografia:
"Eu odeio o estilo de vida burguês americano, a corrida para acompanhar os outros, as sofisticadas festas de coquetéis, o Playboy Club, a 'Grande Sociedade' em busca de conforto. Eu odeio a forma como os negros, índios e estrangeiros de pele escura são tratados e mantidos à margem. Eu odeio a maneira como os Estados Unidos tentam controlar todos os países do mundo e o comércio mundial em benefício próprio, tentando exportar nosso estilo de vida materialista para outros países. Eu odeio e ressinto a maneira como os americanos ricos e de classe média, assim como os hondurenhos, podem viver em casas grandes e confortáveis, ter carros, terras e educação, enquanto meus irmãos e irmãs, os pobres, são forçados a viver como vivem."
Essa raiva também motivou o Pe. Carney a se comprometer com uma forma radical de pobreza pessoal. Ele possuía pouco mais do que a camisa de algodão branco desgastada, calças caqui e sapatos de trabalho pretos com meias brancas que ele usava diariamente, escrevendo: "Amar a Cristo de verdade é tentar viver como Ele viveu. Se eu amo os pobres como Cristo amou, eu também escolho livremente me tornar um deles, viver com eles, compartilhar suas vidas, além de tentar usar meus talentos para ajudá-los e ensiná-los".
O ascetismo do Pe. Carney era igualado apenas por sua destemor. Em uma ocasião, no fim da década de 1970, ele concordou em celebrar a missa para a festa patronal de uma cidade que havia sido abandonada por outro jesuíta que havia brigado com os moradores devido ao alcoolismo e comportamento lascivo. Quando o Pe. Carney chegou, foi abordado por um empresário local de má reputação, dono de várias casas de prostituição. Parecendo um fora da lei do oeste, com um cinto de balas em volta da cintura e um revólver enfiado no cinto, o homem ofereceu: "Padre, com a sua permissão, eu gostaria de fazer uma doação para a igreja para pagar pelas celebrações da festa".
"Olha, eu não sou um ladrão, nem um explorador de mulheres, como você", retrucou o Pe. Carney. "Você é sem vergonha! Você é um mau cristão! Você está indo para o inferno!"
O homem assustado sacou sua pistola e rosnou: "Não fale comigo assim, Padre!"
"Eu não tenho escolha a não ser falar a verdade!" gritou de volta o Pe. Carney.
Um jovem jesuíta espanhol, Chema Tojeira (que mais tarde se tornou provincial da América Central), acompanhou o Pe. Carney até a vila e testemunhou a troca de palavras, lembrando mais tarde para si mesmo: "Esse cara realmente quer se tornar um mártir, talvez até hoje! Eu não tenho tanta certeza se eu quero!"
Em 1973, após mais de uma década entre os camponeses, o Pe. Carney renunciou à sua cidadania americana para se tornar hondurenho, também mudando oficialmente seu nome para "Guadalupe" em homenagem à padroeira das Américas. Ele havia desenvolvido uma devoção ao longo da vida depois de visitar sua basílica na Cidade do México como um jovem jesuíta.
O Pe. Lupe, como seu rebanho começou a chamá-lo, continuou a se manifestar contra os interesses comerciais alinhados aos EUA e a elite hondurenha proprietária de terras, que conspiravam conjuntamente para manter os camponeses em uma prisão de pobreza. Em novembro de 1979, a franqueza do Pe. Carney e suas simpatias pela Teologia da Libertação levaram à sua prisão, tortura, perda de sua cidadania e expulsão de Honduras pela junta militar que governava o país.
O Pe. Carney foi parar na vizinha Nicarágua, onde passou o tempo escrevendo suas memórias e se preparando para um martírio que passou a ver como inevitável. Acreditando que as atividades revolucionárias em que se envolveu poderiam envergonhar a Companhia de Jesus, ele também decidiu buscar a sua dispensa para com a ordem religiosa, o que foi aprovado apenas alguns meses antes de sua morte em 06-06-1983.
O Pe. Carney se juntou a seguir a um grupo desorganizado de camponeses insurgentes mal armados e mal treinados para servir como capelão. Ele se persuadiu de que se exércitos poderosos que protegiam os interesses dos ricos podiam ter capelães, também poderiam aqueles que buscavam um modo de vida melhor para seu povo.
Com a coluna de insurgentes, o Pe. Lupe cruzou de volta para Honduras vindo da Nicarágua no início de setembro de 1983. Dias depois, em 16 de setembro, a notícia se espalhou de que ele havia sido capturado e morto.
Seu corpo nunca foi encontrado, mas o Departamento de Estado americano acabou entregando alguns pertences pessoais que o Pe. Carney tinha consigo em sua morte – um cálice, um kit de missa e sua Bíblia pessoal. Durante esse tempo, a CIA, com o exército hondurenho, manteve uma base militar e prisão conjunta secreta em Olancho, Honduras. É possível que a CIA tenha concordado com o desaparecimento forçado do Pe. Carney.
Alguns prisioneiros encarcerados na instalação relataram mais tarde ter visto a assinatura do Pe. Carney gravada na parede de uma cela. Cinco anos após seu desaparecimento, um ex-sargento do exército hondurenho, Florencio Caballero, disse ao New York Times que ele pessoalmente tinha interrogado o Pe. Carney e que o padre havia sido torturado e executado – talvez jogado de um helicóptero.
Nos últimos anos, milhares de páginas de documentos "desclassificados" [isto é, não mais sigilosos] foram divulgadas pelo governo dos EUA, mas cerca da metade do material foi censurada. A CIA declarou que não pode descartar a possibilidade de que o Pe. Carney tenha sido capturado e morto pelo exército hondurenho.
Na Bíblia do Pe. Carney, recuperada pelo Departamento de Estado, uma seção de Jeremias 38 está vigorosamente destacada. É a passagem onde os adversários do profeta tentam silenciá-lo capturando-o e deixando-o morrer no fundo de um poço.
Outros relatos descrevem uma morte menos dramática, embora ainda sacrificial – que o Pe. Carney pereceu na selva de fome e exposição após implorar aos rebeldes hondurenhos em dificuldades que o deixassem para trás.
John Donald, SJ, um missionário vitalício em Honduras, agora na casa dos 80 anos, trabalhou e viveu em comunidade por muitos anos com o Pe. Carney. Perguntei-lhe o que lembrava sobre o "verdadeiro" Pe. Carney, além da hagiografia.
Padre Donald respondeu: "Bem, ele provavelmente era bastante ingênuo e idealista ao imaginar que camponeses simples poderiam derrotar um poderoso exército".
"É justo. Muitos santos são idealistas. Então ele era o 'incomparável'?", insisti.
O Pe. Donald assentiu suavemente com a cabeça: "Sim, um santo. Sem dúvida".
Em 16 de setembro, 40 anos após seu desaparecimento, amigos, companheiros jesuítas, as pessoas que ele tentou ajudar e seus filhos e netos lembraram o "Padre Lupe" em El Progreso, em uma comemoração organizada pela Radio Progreso, apoiada pelos jesuítas.
Honduras hoje continua a lutar com muitos dos mesmos problemas que o Pe. Carney enfrentou durante sua vida – extrema pobreza e a exploração dos pobres por poderosos interesses comerciais multinacionais. Como na época do Pe. Carney, aqueles que hoje denunciam a injustiça muitas vezes pagam com suas vidas.
Um momento particularmente comovente durante a missa em 16 de setembro, celebrada pelo recém-nomeado dom Jenri Ruiz, bispo da Diocese de Trujillo, ocorreu durante a oração eucarística. No momento em que os mortos costumam ser lembrados, a congregação foi convidada a pronunciar em voz alta os nomes daqueles que foram assassinados recentemente na luta pela justiça. Um por um, os camponeses gritaram nomes de pessoas que eles conheciam e amavam. As vozes tremiam, as emoções estavam à flor da pele. Esses não eram casos abstratos, mas membros próximos da família e amigos.
Dois dos nomes mencionados foram dos irmãos Ali e Oqueli Dominguez, assassinados no início deste ano. A empresa de mineração Las Pinares, de propriedade de oligarcas hondurenhos com investimento da corporação siderúrgica americana Nucor, havia se instalado em terras próximas à aldeia deles, Guapinol, na costa norte de Honduras. Com a ajuda do legislativo hondurenho, a empresa de mineração confiscou terras protegidas pertencentes a um parque nacional para construir uma mina de minério de ferro. O projeto dependeria da água da única fonte de água de Guapinol, contaminando e secando o rio Guapinol, do qual a aldeia depende há gerações para irrigar suas culturas e sustentar a vida.
É uma história contada repetidamente nos últimos anos em Honduras – o projeto Guapinol é um dos cerca de 150 projetos de mineração semelhantes que ameaçam as terras e a água dos camponeses. Mas desta vez os irmãos Dominguez e outros moradores decidiram que já haviam suportado o bastante. Eles começaram a protestar e, em breve, a empresa de mineração retaliou, assassinando Ali e outro líder da aldeia em janeiro deste ano, e depois, em um segundo ataque em 15 de junho, matando seu irmão Oqueli enquanto ele estava em casa com sua mãe idosa, que ficou ferida na perna durante o assassinato de seu filho.
Eu falei com o irmão sobrevivente dos Dominguez, Reynaldo, que vive escondido com sua mãe e outros 42 moradores que fugiram de Guapinol após o ataque de junho. Outros 60 moradores fugiram com medo para os Estados Unidos, entre os milhões de refugiados vulneráveis que chegaram à fronteira sul este ano.
Reynaldo Dominguez. (Foto: Jeremy Zipple, S.J.)
Reynaldo é um agricultor pobre que possui pouco mais do que as roupas que veste. Mas, por enquanto, apesar de temer por sua vida, ele escolheu permanecer em Honduras para continuar o trabalho de seus irmãos falecidos, lutando pelos direitos de seu povo.
"A luta que o padre Lupe travou há 40 anos é a nossa luta hoje em 2023", ele me disse. "Em todas as comunidades que ele visitou, ele falou sobre organização: temos que nos organizar. Nas situações em que nossos direitos são pisoteados, só podemos enfrentar a situação quando estamos organizados. 'Um povo desorganizado não vai a lugar algum', como o Padre Guadalupe nos disse". Para Reynaldo Dominguez, o testemunho de Carney se mostrou um guia poderoso para a luta atual de seu povo. Sua ambição é simples – uma vida em que ele possa sustentar sua família com sua própria terra.
"Há pessoas dedicadas ao salvador do capitalismo, e isso é ruim", ele disse. "Temos que viver tudo como um presente de Deus: compartilhar tudo – comida, bens, sustento". O Pe. Carney "era tão simples", lembrou o Dominguez. "Ele se sentava no chão com as crianças para comer. Essa é a humildade que pedimos. Pedimos a Deus que nos dê essa humildade e que vivamos bem este Evangelho que o padre Lupe pregava".
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Relembrando o “Padre Lupe”: um jesuíta radical, exércitos rebeldes, a CIA e um misterioso desaparecimento - Instituto Humanitas Unisinos - IHU