04 Agosto 2023
Por décadas, uma expressão popular em Portugal se referiu aos três F's do país.
Futebol. Fado. Fátima.
A reportagem é de Brian Fraga e Christopher White, publicada por National Catholic Reporter, 03-08-2023.
Futebol e fado, um gênero musical folclórico com apelo intergeracional, estão mais populares do que nunca em Portugal. E mais de 100 anos após os eventos relatados na Cova da Iria, Fátima continua sendo uma característica distintiva da cultura portuguesa e do catolicismo. Por essa razão, parecia inevitável que uma parada no sempre popular santuário mariano fizesse parte da visita de cinco dias do Papa Francisco ao país nesta semana para as festividades da Jornada Mundial da Juventude.
Milhões de peregrinos viajam para Fátima todos os anos, onde se diz que a Virgem Maria apareceu a três pastorinhos ao longo de seis meses em 1917, culminando com o Milagre do Sol, um fenômeno solar supostamente testemunhado por cerca de 70.000 pessoas.
A partir dessas aparições relatadas e dos escritos posteriores da carmelita Irmã Lúcia dos Santos – a única "pastorinha" que chegou à idade adulta – Fátima, ao longo das décadas, tem estado entrelaçada com o sentimento anticomunista, ênfase na piedade pessoal e penitência pelo pecado, tensões intermitentes entre a hierarquia e a religiosidade popular, profecias de guerras, bem como espiritualidade apocalíptica e teorias de conspiração relacionadas a revelações privadas secretas suprimidas.
Enquanto os papas João Paulo II, Bento XVI e Francisco mostraram devoção a Fátima, também o fizeram teóricos da conspiração do QAnon e figuras como o arcebispo desacreditado D. Carlo Maria Viganò – o que torna a mensagem e o significado de Fátima às vezes difíceis de decifrar.
"Fátima é incomum entre as aparições marianas porque reúne uma combinação intrigante de ingredientes: experiências místicas, política global e tensões internas na Igreja", disse o veterano analista do Vaticano John Thavis ao National Catholic Reporter por e-mail. "Isso oferece terreno fértil para interpretações imaginativas".
"Os segredos de Fátima há muito tempo geram especulações, e o Vaticano, em algumas ocasiões, tentou conter teorias de conspiração e cenários de fim do mundo associados a essas mensagens", disse Thavis, autor de The Vatican Prophecies (As profecias do Vaticano, em tradução livre).
Quando Francisco visitou Fátima pela primeira vez em 2017 para marcar o centenário das aparições, ele fez um apelo pelo fim de uma cultura de conflito, lembrando que quando Maria apareceu pela primeira vez lá foi para pedir paz no meio da Primeira Guerra Mundial.
Com a guerra novamente em curso na Europa, Francisco, sem dúvida, redobrará seus esforços para pedir o fim da invasão da Ucrânia pela Rússia – embora seja impossível isto acontecer sem gerar polêmicas e sem alimentar ainda mais as teorias de conspiração.
Logo após o início da guerra, a pedido dos bispos da Ucrânia, Francisco consagrou tanto a Rússia quanto a Ucrânia ao Imaculado Coração de Maria. O evento estava impregnado de história.
Papa Francisco faz o sinal da cruz em frente a uma estátua mariana depois de consagrar o mundo e, em particular, a Ucrânia e a Rússia ao Imaculado Coração de Maria em 2022 (Foto: Paul Hering | CNS)
Em 1941, Lúcia dos Santos escreveu um relato completo dos "segredos" que Maria deu em Fátima, incluindo uma visão do inferno com um apelo para que a Rússia fosse consagrada em nome de seu Imaculado Coração, para que o regime ateu e comunista pudesse se converter.
Para Thavis, o pedido de Fátima, de consagrar a Rússia a Maria, tem se mostrado problemático.
"O Papa João Paulo II o fez mais de uma vez, mas críticos reclamaram que esses rituais eram muito genéricos e careciam de um apelo direto para que a Rússia 'se convertesse'", disse ele. "No ano passado, o Papa Francisco realizou uma cerimônia semelhante para consagrar a Rússia, a Ucrânia e toda a humanidade a Maria. Previsivelmente, isso também foi considerado muito abrangente por alguns devotos de Fátima".
"Além dessas objeções técnicas", acrescentou Thavis, "acredito que os teóricos da conspiração de Fátima são motivados por uma desconfiança em relação à direção geral da Igreja pós-Concílio Vaticano II, incluindo as políticas progressistas do Papa Francisco".
O frei franciscano Stefano Cecchin, presidente da Pontifícia Academia Mariana Internacional, disse, ao National Catholic Reporter, que houve várias manipulações das mensagens de Fátima, muitas das quais foram direcionadas ao papa.
"Infelizmente, hoje existem grupos que se autodenominam católicos, mas que adoram procurar tudo o que possa condenar o papa", disse ele.
Cecchin acredita que a motivação do papa para retornar a Fátima neste momento é direta: orar pela paz.
"O Papa está ciente de que o mundo está em perigo de autodestruição com um conflito nuclear", disse ele. "Somente através da oração à Virgem Maria é possível encontrar um caminho para a paz".
Embora possa parecer apocalíptico, como muitas mensagens relacionadas a Fátima, Cecchin afirmou que Fátima é, em última análise, uma mensagem de esperança e de triunfo sobre o mal.
Para muitos católicos portugueses, isso também ajuda a explicar o apelo duradouro de Fátima, mesmo entre pessoas comuns que não praticam regularmente a fé.
"Quase todos os portugueses já estiveram em Fátima, que visitam frequentemente para orar. Muitas vezes me pergunto como seria a Igreja e até mesmo Portugal como país sem Fátima", disse frei Anselmo Borges, membro da Sociedade Missionária da Boa Nova e professor de filosofia na Universidade de Coimbra, em Portugal.
Embora alguns católicos conservadores, especialmente no mundo anglófono, vejam Nossa Senhora de Fátima através de uma lente escatológica, Borges falou que a nação portuguesa a vê como conectada a um Deus consolador.
Maria Conceição Mendes, que vive na ilha de Corvo, nos Açores, disse ao National Catholic Reporter que visitou Fátima em novembro de 2019 após uma cirurgia na coluna.
"Pedi sua ajuda quando saí daqui para fazer a operação e ela me concedeu a graça de estar em paz naquele momento", disse Mendes.
Mas quando o Papa Francisco retornar a Fátima em 5 de agosto, sem dúvida haverá mais debates e controvérsias, mas é provável que a simples mensagem de paz seja seu foco também.
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Política, conspiração e paz: a visita do Papa Francisco a Fátima é complicada - Instituto Humanitas Unisinos - IHU