03 Agosto 2023
Francisco volta a priorizar sua agenda social durante a Jornada Mundial da Juventude em Lisboa e planeja um encontro com os atingidos pelos abusos da Igreja. O gasto público, de cerca de 80 milhões, tem sido criticado pela esquerda. Cerca de 70% da população do país se declara católica.
A reportagem é de Tereixa Constenla, publicada por El País e republicada por Il Sismógrafo, 02-08-2023.
Que Jorge Mario Bergoglio seria um papa diferente de seu predecessor, Bento XVI, ficou claro desde o momento em que escolheu seu nome oficial em 2013. Ele escolheu Francisco, um dos santos mais humildes e compassivos do catolicismo. Todas as decisões posteriores se aprofundaram nesse caminho a ponto de chegarem a rotulá-lo de Papa anticapitalista por suas críticas aos excessos do neoliberalismo econômico.
Ela também atua na defesa do clima desde antes mesmo de Greta Thunberg entrar em cena, mas a transformação mais radical é a que ela está promovendo dentro da própria Igreja, o que está lhe custando críticas abertas dos setores mais conservadores com seu esforço para mudar dogmas que pareciam imutáveis como o celibato dos padres, a marginalização das mulheres ou a condenação dos homossexuais. “Quem sou eu para julgar?”, questionou-se retoricamente após retornar de uma viagem ao Brasil para a Jornada Mundial da Juventude em 2013. No início deste ano, ele insistiu em entrevista: “Ser homossexual não é crime”. Tudo isto estará presente na sua viagem de cinco dias a Portugal, que começa hoje e inclui um encontro com vítimas de abusos sexuais da Igreja portuguesa.
A permanência prolongada do Papa em Portugal permitirá verificar a sua recuperação física após a operação a uma hérnia abdominal que o obrigou a ficar internado durante nove dias em junho. Na sua agenda está uma deslocação ao santuário de Fátima de helicóptero no sábado e outra deslocação a Cascais para conhecer uma escola que desenvolve um programa educativo que iniciou em Buenos Aires em 2001.
Sua idade (86 anos) e as recentes internações hospitalares levam alguns a pensar que ele está testemunhando o ciclo final de seu papado. Bento XVI renunciou aos 85 anos, depois de quase oito anos à frente da Santa Sé. Esta Jornada Mundial da Juventude, que poderá receber mais de um milhão de peregrinos, é também a primeira a ser celebrada após a pandemia do coronavírus. A anterior, na Cidade do Panamá, contou com a presença de cerca de 800.000 pessoas.
Três semanas antes de viajar para Lisboa, Francisco anunciou surpreendentemente a nomeação de 21 novos cardeais que, segundo ele, "expressam a universalidade do planeta". Mais uma vez, reforçou a presença de cardeais latinos (três deles espanhóis) para fugir do eurocentrismo que tradicionalmente caracteriza o Vaticano. Os novos cardeais serão nomeados em uma cerimônia em 30 de setembro. Entre eles está o português Américo Aguiar, que tem sido o chefe visível da organização da Jornada Mundial da Juventude em Lisboa.
Dois terços do colégio de cardeais, órgão que elege os papas, já foi proposto por Francisco, que reforçou o poder daqueles prelados considerados mais progressistas e reformistas, entre eles o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa e bispo de Fátima-Leiria, D. José Ornelas.
O pontífice deverá ter um encontro com as vítimas de abusos sexuais da Igreja portuguesa durante a sua estada em Lisboa, embora não tenha sido oficialmente anunciado. Em junho, D. Américo Aguiar confirmou que a entrevista aconteceria, mas se recusou a dar detalhes. "Respeitamos as pessoas convidadas a participar que não se sentiriam confortáveis com a presença da imprensa. Não é um tabu ou esconder informações. É um acordo de cavalheiros", disse Aguiar.
Em fevereiro, foi apresentado o relatório da comissão independente criada pela Conferência Episcopal Portuguesa para investigar a pedofilia em instituições ou durante atividades ligadas à Igreja Católica entre 1950 e 2022. A comissão estimou que pelo menos 4.815 menores sofreram abuso sexual. Os locais onde mais ocorreram os ataques foram o seminário, a igreja, o confessionário e a reitoria. A idade média do início do abuso foi de 11,2 anos.
A Igreja portuguesa pediu desculpa às vítimas e criou uma estrutura permanente para canalizar todas as novas denúncias que possam surgir e facilitar o seu tratamento psicológico, se necessário. Apesar de se recusarem a estabelecer uma indenização geral, o presidente da Conferência Episcopal, D. José Ornelas, manifestou a sua disponibilidade para ajudar financeiramente as vítimas caso necessitem.
Além dos jovens, a quem vai dedicar boa parte da sua agenda pública, Francisco prevê realizar encontros com reclusos e doentes em Fátima e visitar um centro paroquial no bairro da Libertad, a que alguns chamam a “favela” de Lisboa. A agenda da Jornada Mundial da Juventude em Lisboa revela a atenção do Pontífice para com os mais desfavorecidos.
Embora o evento não tenha perdido a sua identidade religiosa, nas últimas edições também cultivou um espírito macrofestival onde se exalta o multiculturalismo. Peregrinos de todo o mundo marcaram presença no evento, com exceção das Maldivas. Até ontem, 354 mil jovens haviam se registrado oficialmente. Os espanhóis são quase 22%.
Tradicionalmente, Portugal tem sido um dos países europeus onde o catolicismo mais peso tem tido, a par de Itália, Irlanda e Espanha. Cerca de sete milhões de portugueses declaram-se católicos (cerca de 70% da população), segundo os últimos dados do censo do Instituto Nacional de Estatística. Está entre os 10 países mais católicos da Europa, embora também existam outros sinais contraditórios que mostram o avanço da secularização da sociedade, como pessoas vivendo em uniões de fato (passaram de 380.000 para mais de um milhão entre 2001 e 2021) ou casamentos não católicos registrados, que foram 73% em 2022.
A despesa pública consagrada à Jornada (cerca de 80 milhões de euros) tem sido um dos aspetos mais criticados pelas formações de esquerda. Nem o Bloco de Esquerda nem o deputado do Livre, Rui Tavares, vão participar nos atos institucionais de acolhimento ao Papa, que decorrerão hoje.
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O Papa, entre multidões e vítimas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU