Comissão independente ouviu mais de 500 vítimas e concluiu que pelo menos 4.815 crianças sofreram abuso sexual nos últimos 70 anos. Padres são 77% dos perpetradores.

A reportagem foi publicada por Deutsche Welle, 13-02-2023.

Quase 5 mil crianças foram abusadas sexualmente por membros da Igreja Católica em Portugal – a maioria por padres – nos últimos 70 anos, informou nesta segunda-feira (13/02) o relatório final de uma comissão independente que investiga o assunto e ouviu mais de 500 vítimas.

"Este testemunho permite-nos estabelecer uma rede muito maior de vítimas, pelo menos 4.815", disse o chefe da comissão, o psiquiatra infantil Pedro Strecht, em uma coletiva de imprensa em Lisboa que contou com a presença de altos funcionários da Igreja Católica.

"[Queremos] prestar uma homenagem sincera aos que foram vítimas de abuso na infância e ousaram dar voz ao silêncio", disse Strecht. "Elas [as vítimas] são muito mais do que uma estatística".

A maioria dos perpetradores (77%) eram padres. Entre as vítimas, a maioria era do sexo masculino, disse Strecht. Os abusos ocorreram em escolas católicas, casas paroquiais e confessionários, entre outros locais.

Diante de uma infinidade de casos de abuso sexual do clero que vieram à tona em todo o mundo e as acusações de encobrimento, o papa Francisco prometeu, em 2019, acabar com a pedofilia dentro da Igreja Católica.

A comissão portuguesa iniciou os trabalhos em janeiro do ano passado, depois que um relatório na França revelou que cerca de 3 mil padres e autoridades religiosas abusaram sexualmente de mais de 200 mil crianças. A Igreja Católica na Alemanha também promoveu apurações nesse sentido, e identificou 3.677 vítimas de abuso infantil de 1946 a 2014.

As denúncias de abuso em Portugal partiram de pessoas de várias origens, de todas as regiões do país e, também, de portugueses que vivem no exterior.

Comissão independente

A comissão é independente, mas foi financiada pela Igreja Católica. Questionado pela agência de notícias Reuters em dezembro de 2021 se isso poderia ser uma ameaça à independência dos trabalhos, Strecht disse que seria o primeiro a sair e denunciar se a igreja interviesse no processo.

O prazo para apresentar acusações já expirou para a grande maioria dos crimes registrados pela comissão, composta por seis membros, mas 25 casos foram encaminhados ao Ministério Público de Portugal.

Um deles diz respeito a Alexandra, hoje uma mulher de 43 anos. Ela alega que foi estuprada por um padre quanto tinha 17 anos e era uma freira noviça. O crime ocorreu durante uma confissão.

"É muito difícil falar destas coisas em Portugal", disse Alexandra, que hoje é mãe e trabalha como ajudante de cozinha. No país, 80% das pessoas se dizem católicas.

"Mantive isso em segredo por muitos anos, mas tornou-se cada vez mais difícil lidar com isso sozinha", disse à agência de notícias AFP.

Três anos atrás, ela criou coragem para denunciar seu agressor às autoridades da Igreja, mas foi ignorada. Segundo ela, o bispo responsável não fez nada, apenas encaminhou a reclamação ao Vaticano, que ainda não a respondeu.

Foi então que, no ano passado, a comissão independente lhe deu ouvidos e apoio psicológico. Segundo ela, foi "um bom primeiro passo" para as vítimas que queriam "quebrar o muro de silêncio" que as cercava.

Leia mais

• Jesuítas portugueses admitem que oito religiosos, já falecidos, abusaram de menores durante décadas
• “Um padre pedófilo é doente ou criminoso e deve ser expulso”, diz o papa Francisco em entrevista à CNN Portugal
• “Cuidar das vítimas é o coração do nosso ministério”, afirma o jesuíta Hans Zollner
• Não é adultério, é pedofilia: O Vaticano incluirá um delito específico sobre abuso de menores no Direito Canônico
• Vaticano: Reforma do Direito Canônico é “sinal importante” para proteção dos menores – padre Hans Zollner
• “Com o coração triste”: o escândalo dos padres abusadores. Artigo de Tomáš Halík
• “Minha alma dilacerada”. Nas mãos do Papa, a carta de uma vítima de abusos
• Papa pede apoio às vítimas de abuso sexual
• Pedofilia, Papa Francisco: “Prestar justiça às vítimas dos abuso”
• Uma Igreja em crise. Entrevista com Georg Bätzing, presidente dos bispos alemães
• Menos de 50% dos alemães agora são católicos ou protestantes
• As Igrejas Católica e Evangélica na Alemanha estão perdendo paroquianos em ritmo acelerado
• Cardeal Kasper contra o Sínodo alemão
• Padre acusado de assédio comete suicídio: choque na Alemanha. Quem era Christof May, o padre que pregava em favor dos homossexuais
• Alemanha: Münster - “Estudo sobre os abusos na diocese lança uma luz assustadora sobre os fatores institucionais e sistêmicos do abuso sexual”
• Sínodo na Alemanha: a situação da Igreja Católica
• Alemanha. Há esperança nos católicos alemães, mas também incertezas sobre conseguir mudanças
• Alemanha: Igreja e sinodalidade. Artigo de Jesús Martínez Gordo
• Alemanha. Caminho Sinodal se torna a próxima batalha proxy sobre o papado de Francisco
• Presidente da Conferência dos bispos alemães responde a carta alertando sobre risco de cisma no caminho sinodal
• Bätzing: respostas sobre o Caminho Sinodal alemão. Artigo de Marcello Neri
• Alemanha: Cardeal de Colônia chama papa de "velho"
• Alemanha: “Não somos revolucionários. Queremos superar a crise da Igreja”
• Padre Zollner fala sobre o relatório alemão dos abusos sexuais, Bento XVI e o futuro da Igreja
• Os escândalos dos abusos sexuais não acabaram. A cultura hierárquica ainda precisa de transformação
• Abusos sexuais e confissão: o confessor deve denunciar um abusador? A reflexão e a proposta do Pe. Zollner
• Uma teologia da memória em tempos de abusos sexuais cometidos pelo clero
• Abusos sexuais na Igreja católica: o balanço avassalador da comissão Sauvé
• Violência sexual atinge uma em cada dez meninas, diz ONU
• “O abuso sexual deve ser visto sob a perspectiva do abuso de poder”, afirma jesuíta que espera uma posição do Sínodo sobre o tema
• O cisma ortodoxo, fala Constantinopla. Chryssavgis: "Um cisma criado por abuso de poder"
• Superioras religiosas abordam a questão do abuso de poder com um seminário via web
• Felipe Berríos, jesuíta, sobre Karadima: A Igreja deve desprender-se desse abuso de poder