14 Agosto 2023
O pastor presbiteriano Claudio Carvalhaes é teólogo, liturgista e artista plástico. Brasileiro residente nos Estados Unidos, é doutor em Liturgia e Teologia pelo Union Theological Seminary, em Nova York, onde leciona. Palestrante, autor de vários livros, performer e consultor, Carvalhaes publicou Eucharist and Globalization: Redrawing the Borders of Eucharistic Hospitality (Wipf&Stock, 2013) e é o editor de Liturgy in Postcolonial Perspectives – Only One is Holy (Nova York: Palgrave Macmillan; Post-Colonialism and Religions Series, 2015).
Vinculado à Teologia da Libertação, o presbiteriano tem apresentado reflexões provocadoras acerca da Teologia Litúrgica da Libertação (cf. aqui). Membro da Academia Americana de Religião, Carvalhaes compõe a Comissão de Educação Teológica e o conselho do Grupo de Teologia da Libertação. Ele também é membro da Academia Norte-Americana de Liturgia, Academia de Homilética e Academia Internacional de Teologia Prática. Devido às suas reflexões pioneiras que interseccionam Liturgia e decolonialidade, apresentamos a ele algumas questões referentes à proposta do Sínodo para a Amazônia de criar um rito litúrgico católico próprio para a região pan-amazônica.
Claudio Carvalhaes (Foto: Reprodução | Youtube)
A seguir estão as contribuições do referido pastor e pensador.
A entrevista é de Daniel Carvalho da Silva, doutorando em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás, enviada pelo autor ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Em nível de doutorado, Daniel pesquisa o presente tema e compõe um dos Grupos de Trabalho da comissão em vista da criação de um rito amazônico.
Pastor Claudio, o sr. tem pesquisado há algum tempo as intersecções entre Liturgia e pós-colonialismo. Poderia explicar como estes dois temas se entrelaçaram em seu percurso religioso e acadêmico?
Eu nasci na igreja e a igreja foi para mim uma mãe, assim como falava Santo Agostinho. O leite, meu primeiro brinquedo, foram dados pela igreja. Depois da escola, a igreja pagou pelos meus estudos teológicos. E nesse caminho fui recebendo um evangelho multicultural, como todo evangelho vivido é. Não existe uma fé pura de uma cultura, mas uma bricolagem de formas de viver pensar e sentir a vida.
No meu caso, cresci na Igreja Presbiteriana Independente do Brasil que tinha uma ligação profunda com a igreja dos Estados Unidos que foi a mãe da igreja brasileira. Mas essa mesma igreja quebrou seus vínculos com a igreja estadunidense porque queria ser brasileira. Mas em termos de liturgia, essa igreja trazia uma forma genebrina-escocesa-estadunidense. Assim, cresci em uma liturgia genebrina, cantando hinos escoceses, mas também norte-americanos que celebravam a neve. Mas, veja, eu cresci em São Paulo e nunca vi neve na vida. Mesmo assim, em casa a gente colocava algodão nas árvores de Natal para ser um Natal “de verdade!”
Foi mais tarde quando entrei no seminário que abandonei uma teologia evangelical, avivalista (fruto de minhas caminhadas para-eclesiásticas norte-americanas) e mais conservadora para aprender a Teologia da Libertação. Ali tudo mudou. Se antes eu queria salvar as pessoas do inferno, eu agora queria que o evangelho fosse pleno para os mais pobres. A Teologia da Libertação começava a me falar da cultura latino-americana, das formas brasileiras de se viver, cantar, pensar, agir.
Jaci Maraschin foi um padre-teólogo anglicano que me influenciou profundamente. Ele foi o editor do hinário O Novo Canto da Terra, que era uma hinódia composta de letra, música e ritmos brasileiros e latino-americanos. Absolutamente transformador! No meu seminário, o professor Odair Pedroso Mateus lançou um livro de recursos litúrgicos feitos no Brasil chamado Vida na Terra, e ali minha ideia de liturgia começava a mudar completamente.
Entretanto, foi ainda mais tarde que a conscientização da descolonização se fez mais presente e de forma mais profunda no meu pensamento e na minha prática. Vivendo em diversas comunidades, aprendi a multiplicidade das formas litúrgicas e isso para mim era o mais rico de tudo.
Como um pensador brasileiro, vivo da antropofagia, e vou fazendo bricolagens de pensamentos e formas de viver que possam renovar, refazer e transformar comunidades locais. Entretanto, a sabedoria das margens, dos povos que lutam e sobrevivem, é o que me interessa. O resto de igrejas classe média e alta não me interessa muito.
O interesse de nossa entrevista centra-se, mormente, sobre o projeto de inculturação da liturgia católica na região pan-amazônica. Esta foi uma sugestão do Documento Final do Sínodo para a Amazônia, realizado em 2019, e está em vias de ser concretizada por meio do laborioso trabalho da chamada Comissão para o Rito Amazônico, que é vinculada à Conferência Eclesial da Amazônia (Ceama), criada pelo Papa Francisco em 2021. Os acentos impulsionados pelo Papa e pela Ceama parecem compor um grande projeto eclesiológico. Ao que tudo indica, o pontífice vislumbra uma igreja sinodal, com ênfase na colegialidade, na diversidade ministerial e na inculturação, sensível às diferentes realidades culturais e à possibilidade de diferentes povos celebrarem o Mistério Pascal de Cristo no contexto de seus próprios costumes e ritos. Considerando esse contexto, certamente não desconhecido pelo senhor, gostaríamos de conhecer sua opinião sobre o seguinte: como os estudos decoloniais podem ou devem lançar luz sobre os trabalho da Comissão para o Rito Amazônico?
Uma coisa que acredito não se deva esperar desses movimentos litúrgicos “decoloniais”, ou seja, imaginar que a estrutura dos ritos irá mudar de acordo com seu contexto de vida e proclamação. No geral, a inculturação da liturgia tem sido basicamente a manutenção da estrutura do rito de acordo com os cânones da igreja e uma certa composição cultural no que é não essencial. É o que poderíamos chamar adiáfora. Muda-se o não essencial, como, por exemplo, de levar das ofertas com danças locais, adicionam-se algumas leituras ou cantos da tradição local, mas o resto da liturgia, no que ela tem de “essencial”, não muda. Nesse sentido estrito, inculturação não é outra coisa senão uma recolonização da liturgia, uma apropriação da sabedoria popular com nome de decolonizacao.
Assim, como o Mistério Pascal de Cristo se relaciona com a devastação da Amazônia? Qual o lugar da igreja em relação às populações da floresta e ribeirinhas? É o de orientar o povo ou de ser orientada por eles e elas? É a igreja que caminha com o povo, como dom Pedro Casaldáliga, dom Helder Câmera e o cardeal [dom Paulo Evaristo] Arns caminharam com o povo? Se esse é o ministério litúrgico da igreja, aí sim eu acredito na decolonização das práticas religiosas.
Como, de modo geral, a Liturgia conserva aspectos coloniais ou neocoloniais?
Acho que minha resposta acima já responde a essa questão. É muito difícil fazer esses movimentos litúrgicos somente como “expressões” decoloniais. No fundo, toda Liturgia é uma teologia. No campo litúrgico, chamamos isso de teologia litúrgica, que é uma maneira de fazer teologia a partir dos ritos, práticas e liturgias. Lê-se toda a tradição teológica da igreja a partir de seus movimentos litúrgicos.
Assim, para se saber se “a Liturgia conserva aspectos coloniais ou neocoloniais”, é preciso primeiro pensar quais são seus postulados teológicos, de onde nasce, de qual tradição se orienta, quais são as tradições com as quais mantem sua fidelidade, quem são seus agentes, qual é sua preocupação maior: a tradição ou a vida do povo, e entre os dois quem tem primazia? Essa questão, como se vê, é muito complexa.
Qual o risco de um projeto de inculturação repetir os erros já cometidos no passado?
O risco é total! O medo da igreja perder seu eixo é sempre sua preocupação máxima. E queremos realmente descolonizar, precisamos mexer no poder, nas estruturas, nas forças teológicas mais profundas. Entenderemos o rio Amazonas como um ser vivo, uma entidade ancestral que orientará nosso entendimento do batismo? Será o abiu ou será o açaí o elemento eucarístico que dará orientação à nossa comunhão eucarística? Muito provavelmente não. Então, talvez o caminho seja observar como a floresta amazônica e seus povos afetarão nossas formas cristãs de ser. Com certeza já tem muita riqueza litúrgica vivida na prática de várias comunidades. Se você ver a liturgia da igreja Nossa Senhora do Rosário do povo preto no Pelourinho em Salvador, você vai ver uma liturgia decolonial e cristã. As missas lá são absolutamente incríveis! Talvez possamos começar, ou continuar, por aí.
Que parâmetros podem ser assumidos para evitar uma atitude neocolonialista no processo de proposição do Rito amazônico?
Para mim, os parâmetros litúrgicos têm que ser os parâmetros da terra, do lugar onde a liturgia está sendo feita. Toda liturgia, se entendida como trabalho do povo, tem primeiro que incluir os animais, as plantas, as árvores os rios, as montanhas etc. como povo de Deus. Daí, é preciso parar e ouvir a lei da terra, tem que refletir o bioma onde ela está instaurada, saber como e por onde Deus fala, onde estão as estruturas da vida e as marcas da morte. Assim, os ritos da Igreja precisam estar sempre em profunda sintonia com as pessoas e todos os seres viventes e os espíritos da terra.
Celebração na Região Amazônica (Foto: Lígia Apel | Cimi)
Os ritos, como parte nuclear dos fenômenos religiosos, baseiam-se na repetição e estão vinculados a mitos fundadores que narram eventos originários constituidores da cultura do povo que os realizam. Como integrar os ritos cristãos aos ritos autóctones respeitando as culturas próprias de cada povo indígena da região amazônica? Isso é possível? Em que medida?
É preciso ter muito cuidado nesse processo. Toda religião traz em si uma visão de mundo que precisa ser respeitada. Tem aí profusões de transcendências e imanências. De modo que em cada bioma, uma forma de relação entre as várias cosmovisões tem que se relacionar de uma maneira ou de outra. É preciso saber que tudo carrega uma luta de poder. Para nós Cristãos, é preciso sempre perguntar: Como servimos melhor a Deus?
Garantindo a tradição ou servindo a vida da terra que também é a vida de Deus? Talvez não seja necessário essa distinção, mas é preciso saber que a vida da terra é onde começamos. Comecemos por desfazer a distinção feita já na pergunta: dizer que existem os ritos cristãos e contrapô-los aos ritos autóctones já enseja uma certa metafísica. Os “ritos cristãos” não têm um adjetivo, pois são eternos, relacionados ao cosmos. Os “ritos autóctones” já evidenciam ritos isolados, internos, des-relacionados, próprios de um povo. Não está de tudo errado. O problema é que o universal cristão não tem localidade, e o rito indígena não tem universalidade.
Se colocarmos os ritos em um plano comum de relação, então poderemos compartilhar histórias, mitos, e sermos afetados pelo que ouvirmos e aprendermos dos outros, sem medo.
Se a Liturgia católica quisesse trilhar caminhos condizentes com os estudos decoloniais, quais marcos poderiam balizar as práticas alinhadas a tal empenho? O que esses estudos podem ensinar à prática litúrgica?
Acho que aprender com os estudos decoloniais é de menor importância. O importante é seguir Romanos 12:1-3 e entrar numa metanóia, sermos transformados pela renovação da nossa mente. E será ali mesmo na Amazônia, no meio dos povos indígenas, dos povos ribeirinhos que essa transformação tem que acontecer. Eles são revelação profunda de Deus para os Cristãos.
Talvez seja necessário repensar a igreja como propõe o Papa Francisco. É preciso deixar para trás a igreja hierárquica e alimentar a igreja sinodal, a igreja de baixo, marcada pelo seu bioma, e que desfaz formas de poder hierárquico e entra em relação de solidariedade.
A Amazônia brasileira, além das expressões religiosas de cada povo indígena autóctone e das igrejas cristãs, abriga um mosaico de outras religiões de matrizes africanas, xamânicas, espiritualistas e outras. Qual é o papel do ecumenismo e do macroecumenismo nesse contexto quando o tema é a inculturação litúrgica católica?
Esse macro ecumenismo tem que ser desafiado pela distinção profunda entre essas expressões religiosas e suas formas de ver o mundo. É preciso entender que mesmo o conceito de religião é cristão. É preciso ver toda religião como carregando formas de vida tão importantes quanto as do cristianismo, não menores, não inferiores, mas iguais.
O papel do ecumenismo cristão é buscar o outro, ouvir o outro, se permitir ser transformado pelo outro.
Há algum tema relativo ao apresentado aqui sobre o qual não propusemos questão e que o sr. gostaria de comentar? Sugestões? Conselhos? Admoestações?
Há um ditado latino que vejo sendo usado aqui e ali e que diz: Stat crux, dum volvitur mundus: o mundo muda, a igreja fica. É preciso pensar diferente. O mundo está mudando tanto que não vai ter igreja ou religião NENHUMA que ficará, se a terra não for cuidada. O mundo, como a terra, muda? Sim, e vai estar sempre aqui! A igreja fica? Somente se mudar seu jeito no mundo!
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Liturgia e decolonialidade. Entrevista com Claudio Carvalhaes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU