17 Julho 2023
A guerra da Ucrânia com a Rússia, ao contrário de tantos outros conflitos das últimas décadas, resistiu a justificativas carregadas de conteúdo moral. O envolvimento dos Estados Unidos, da mesma forma, não foi uma corrida delirante para uma retribuição militar ou alguma necessidade imaginária de salvar o mundo das armas de destruição em massa. Foi e continua sendo uma guerra sobre a defesa da soberania, a preservação da democracia e a resistência à ambição cega de um autoritário sangrento.
O comentário é de Tom Roberts, publicado por National Catholic Reporter, 14-07-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Então, o presidente dos Estados Unidos decidiu enviar bombas de fragmentação. A fim de fazer isso, ele teve que anular a lei federal que proibia a transferência de tais armas para outros países.
A decisão começa a corroer o terreno moral do envolvimento dos Estados Unidos no conflito; as Nações Unidas já emitiram condenações contundentes à Rússia por usar armas semelhantes.
Isso também levanta uma questão de consciência inquietante para os católicos estadunidenses, particularmente aqueles militares envolvidos no manuseio das munições de fragmentação e na realização de sua transferência para outro país.
Já existe um registro claro de oposição da Igreja ao uso de tais armamentos. Em 2007, o bispo Thomas Wenski, então em Orlando, Flórida, e atualmente arcebispo de Miami, escreveu aos membros do Congresso em nome dos bispos católicos do país pedindo a aprovação de uma lei que restringisse o uso de munições de fragmentação.
“Os bispos católicos do nosso país têm sido defensores abertos dos esforços para reduzir e, finalmente, banir o uso de minas terrestres, e a natureza indiscriminada das bombas de fragmentação ‘falhadas’ – que as tornam semelhantes às minas terrestres – é profundamente preocupante para a Conferência”, disse Wenski disse na época.
Ele observou a importância no ensino moral católico de proteger os não combatentes. “A Conferência teme – escreveu ele – que, se não forem controladas, as munições de fragmentação possam se tornar a próxima geração de minas terrestres.”
Essa carta também citava uma declaração da Santa Sé de 2006: “O impacto humanitário desastroso das bombas de fragmentação não preciso de mais demonstrações. (...) Suas vítimas podem ser contadas aos milhares, as regiões atingidas permanecem proibidas às pessoas deslocadas por longos anos depois do fim dos conflitos e inutilizáveis para os habitantes”.
O Vaticano foi signatário da convenção da ONU que proíbe as munições de fragmentação, adotada em 2008 e que entrou em vigor dois anos depois. Quase 125 países assinaram a convenção. Os Estados Unidos não. Nem a China, a Rússia ou a Ucrânia.
O presidente Joseph Biden, em um tempo notavelmente curto, fez com que grande parte do mundo deixasse de se surpreender com a política externa absurda de Donald Trump para acreditar novamente em um parceiro confiável e racional.
A reação global contra sua decisão de enviar bombas de fragmentação, no entanto, assim como as objeções de membros notáveis de seu próprio partido, alguns com experiências militares anteriores, revelam um mundo inquieto com táticas de “vale-tudo”.
Por mais justificável que o casus belli possa ser na invasão da Ucrânia pela Rússia, o fato é que os meios de guerra modernos superam qualquer coisa imaginável para as pessoas das eras cristãs anteriores que desenvolveram a teoria da guerra justa. Certamente, os armamentos de hoje rapidamente levam ao limite as condições de proporcionalidade e a necessidade de discriminar entre combatentes e não combatentes, algo central para os cálculos morais da guerra justa. As munições de fragmentação não se enquadram em nenhuma das categorias do cálculo da guerra justa.
As armas são taticamente eficazes porque, ao contrário das bombas convencionais que exigem um direcionamento muito mais preciso, as bombas de fragmentação se espalham por vastas áreas. Aquelas que não explodem permanecem letais por décadas. Em muitos lugares do globo, especialmente mulheres e crianças se tornam vítimas das bombas “falhadas” pós-conflito.
Ambos os lados da guerra na Ucrânia já são acusados de usá-las.
“As munições de fragmentação usadas pela Rússia e pela Ucrânia estão matando civis agora e continuarão a fazê-lo por muitos anos”, disse recentemente Mary Wareham, diretora interina de armas da Human Rights Watch. “Ambos os lados devem parar imediatamente de usá-las e não tentar obter mais dessas armas indiscriminadas.”
Trinta e oito organizações, incluindo o grupo católico Pax Christi USA, expressaram objeções semelhantes em uma carta enviada em junho a Biden. “As munições de fragmentação estão entre as armas mais prejudiciais para os civis, pois são projetadas para se dispersar indiscriminadamente e muitas vezes não explodem no uso inicial, poluindo as comunidades com munições instáveis não detonadas e causando danos devastadores aos civis, especialmente às crianças, depois de muitos anos após o fim do conflito”, disseram.
O cardeal de San Diego, Robert McElroy, em uma palestra em março passado na Universidade de Notre Dame, falou da necessidade de atualizar uma teoria “atrofiada” da guerra justa, mas descreveu a situação na Ucrânia como um daqueles momentos extremos em que a intervenção armada é necessária. Ele classificou a justificativa moral para defender a Ucrânia de “inatacável”.
Ao mesmo tempo, observou ele, “a estrutura estratégica abrangente da tradição da guerra justa (...) ficou prejudicada em sua capacidade de fornecer orientação abrangente e eficaz nos tempos modernos”.
No entanto, mesmo que a teoria da guerra justa possa ou não ser aplicada, é razoável que os católicos esperem orientação de suas lideranças quando o Estado decide usar armas que a Igreja condenou. Assim, é notável que, na discussão que levou à decisão de Biden e em seu rescaldo imediato, houve um silêncio da Conferência dos Bispos dos Estados Unidos e um silêncio da Arquidiocese Militar dos Estados Unidos. Nenhuma das organizações forneceu uma resposta quando questionada sobre a reação à decisão de Biden.
Perguntas pairam no ar, sem resposta. Resta-nos concluir que o silêncio, neste caso, é um consentimento.
Ficamos imaginando ainda até que ponto nossos líderes religiosos estão dispostos a ir neste mundo atormentado pela guerra, a fim de acomodar a lógica militar que sabemos que ofende e contradiz profundamente o Evangelho e a nossa tradição magisterial.
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Enviar bombas de fragmentação para a Ucrânia contradiz o bom senso e a doutrina católica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU