04 Julho 2023
"Quantas vezes tivemos que nos resignar, com a França, a admitir que muitas vezes a amizade não está nas palavras, mas nos silêncios: as hipocrisias em relação aos migrantes, por exemplo, a selva de Calais e a fronteira de Ventimiglia, ou as formas coloniais com os quais até hoje se tentou, com pouco sucesso, cuidar das areias movediças da Françafrique", escreve Domenico Quirico, jornalista italiano, em artigo publicado por La Stampa, 03-07-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Há lugares que pertencem apenas à geografia, às memórias escolares desbotas, ou pior, aos folhetos das agências de viagens. Outros, ao contrário, são carregados de um perene valor simbólico, são luzes concretas nas trevas do Tempo, lugares que imaginamos habitados desde sempre por homens severos e corajosos que nos ajudam a marchar em frente. Lugares, nações que também evocam o melhor de cada um de nós, a luta pelo Progresso, a Revolução contra o privilégio, os Direitos como sagrada propriedade de cada homem, a Cultura como riqueza comum. Lugares destinados a ser uma experiência interior, algo que acontece dentro de nós cada vez que os evocamos e os adicionamos ao patrimônio dos mitos. Um desses lugares é a França. A sua Grandeza, de fato. Aliás: uma certa ideia da França que, apesar de tudo, permanece viva entre os povos.
Certo. Eu sei. Tudo isso falhou inúmeras vezes, como tudo sempre acaba falhando mais cedo ou mais tarde. Mas a partir desses fracassos gradualmente se compõe a trama de uma história que escapa aos olhares do homem efêmero e que devemos tecer e retecer para seguir em frente. Vou simplificar: começam às notas da Marselhesa que, se lermos bem os versos, é uma desvairada marcha belicista. Não importa. Abre-se uma porta. Avança-se de olhos fechados.
Bem, vamos olhar para a França dos últimos dias, a França da revolta das periferias, um país turvo e dividido, com saques e incêndios, centenas de prisões, as ruas patrulhadas por unidades especiais de policiais que evocam as ruas de autocracias reprimindo intifadas turbulentas, e aquela ideia de França escapa de nossas mãos. Eu me pergunto se o feitiço não perdeu seu poder, o de tornar-se vivo aos olhos como um corpo humano.
Percebo a perplexidade irritada de alguns dos habitantes daquele que agora definimos com um certo incômodo assustado "o sul global". Este seria o país da Grande Revolução – perguntam-me - que mata em blitz de trânsito e brande os cassetes contra seus verdadeiros proletários, quem são os ex-imigrantes que se tornaram cidadãos, mas amontoados nas periferias e nos quartos mobiliados, ignorados e desprezados como outrora acontecia com os colonos de além-mar?
Se na política existir é agir, então estamos assistindo ao ocaso de uma ideia. Atenção: não é só um problema francês. Com ela também declina a credibilidade de toda a Europa daquela história é filiação e desenvolvimento e que se apresenta cada vez mais concretamente como uma sociedade envolta em algas de mesquinhas associações de interesse. Especialmente nestes tempos de guerra é algo de que podem desfrutar apenas aqueles que estão se posicionando para além da nova cortina de ferro.
Mais uma vez se revela uma França de cidadanias desconectadas e divididas, onde a resposta do altivo europeísta Macron é militarizar as cidades ou tirar da gaveta uma perigosa mentira, de ser essa turbulência o fruto das tramas insurrecionais dos tresloucados do Islã extremista que conspiram nas mesquitas das periferias. Que nem sequer esboça um tímido mea culpa.
Vemos aparecer o pior lado da política francesa, querer ser, com um maquiavelismo imbecis, nobres e ao mesmo tempo espertalhões, continuar sendo os herdeiros da Luz e ao mesmo tempo agir como os maliciosos filhos das trevas. Infelizmente, aparece aquela complacência profunda, aquele gosto que a França tem às vezes de si mesma, aquela recusa em mudar que se torna irritação quando se sente comprometida. É amargo constatar que os líderes da esquerda francesa, real ou presumida, mais uma vez têm em comum apenas a impotência, ou seja, são todos igualmente tributários da mesma política da direita que detestam em palavras, mas são compelidos a servir.
Quantas vezes tivemos que nos resignar, com a França, a admitir que muitas vezes a amizade não está nas palavras, mas nos silêncios: as hipocrisias em relação aos migrantes, por exemplo, a selva de Calais e a fronteira de Ventimiglia, ou as formas coloniais com os quais até hoje se tentou, com pouco sucesso, cuidar das areias movediças da Françafrique. As ideias sobre o problema das periferias e de seus habitantes foram desgastadas pelo uso ilícito, esvaziadas pelas falsidades de quem delas se serviu. As periferias continuam a ser apenas um problema, talvez insolúvel, de ordem pública, pessoas a serem mantidas sob controle ou povo desconhecido. Ou pior: que não interessa, quem se afasta cada vez mais em hábitos e sobretudo em rancores diversos. Até a extrema esquerda não as considera interessante como "massa revolucionária".
Cuida apenas das plebes francesas da crise.
E, no entanto, na febril expectativa de uma sociedade diferente e mais humana estava o papel histórico da França, se o quiserem desde 1789. Onde se perdeu essa expectativa exaltante? Talvez no declínio econômico e político, na perda de viço de uma cultura que foi universal e hoje é sociologia claudicante; e nos brechós de uma política de mesquinha cabotagem. Mas se a "fraternité" aparece em Paris mais quimérica que a lua de Ariosto, o que resta da França?
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Na intifada dos desesperados dos subúrbios, vira cinzas a França da 'fraternité' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU