Projeto de pesquisa liderado por Karen para estudar os muriquis-do-norte em Caratinga celebra 40 anos e reúne muriquis e primatólogos formados pela americana.
A reportagem é de Duda Menegassi, pulicada por ((o))eco, 22-06-2023.
Em junho de 1982, a americana Karen Strier, com apenas 23 anos, desembarcava no Brasil pela primeira vez. Sem falar português e sem a menor ideia de que, ali, dava início a uma história que seria celebrada nas décadas seguintes. Seu objetivo era conhecer os muriquis, o maior primata das Américas, e seu destino era o município mineiro de Caratinga, onde um proprietário rural visionário protegia suas matas e os macacos que viviam nela. Quarenta e um anos depois, Karen ainda se lembra desse encontro. “Foi paixão à primeira vista”, conta e acrescenta com um sorriso genuíno: “até hoje eu sinto isso”.
“A primeira vez que eu vi os muriquis foi de longe e eu gostei de tudo. Como eles são bonitos, carismáticos, a maneira de se locomover, a vocalização de relinche, o cheiro de canela… Foi paixão e curiosidade. Eu gostei deles esteticamente, mas eu nem sabia que eles também seriam tão interessantes cientificamente, com seu comportamento pacífico, sua comunidade igualitária. Tudo isso que foi descoberto sobre o comportamento deles no meu primeiro ano de pesquisa apenas aumentou a paixão que eu tinha com eles e a certeza de que precisava conhecê-los melhor”, resume a pesquisadora. Apaixonada e curiosa após dois meses com os muriquis, Karen voltou para o Brasil já no ano seguinte, quando deu início oficialmente ao projeto de pesquisa com os muriquis na Fazenda Montes Claros, do proprietário Feliciano Miguel Abdala. O senhor Feliciano, como chama Karen, é outro protagonista desta história de quatro décadas celebrada na última semana, em evento que reuniu cerca de 100 pessoas entre primatólogos, conservacionistas e ilustres.
Um jovem muriqui-do-norte posa no galho de uma árvore na RPPN Feliciano Miguel Abdala, em Caratinga, Minas Gerais (Foto: Duda Menegassi | ((o))eco)
A celebração, batizada de Caratinga+40, durou três dias, ao longo dos quais muito se falou sobre muriquis, ciência e os desafios para os próximos anos. No evento, a primatóloga conversou com ((o))eco por pouco mais de 1 hora em um português fluente de quem compartilha a cidadania americana com o título de cidadã honorária de Caratinga.
“Acho que qualquer pesquisa de 40 anos merece uma comemoração, não é fácil sustentar uma pesquisa de tantos anos. Mais difícil ainda sendo em outro país, com tudo feito em outra língua, com todas as burocracias, regras e autorizações, financiando e ainda formando pessoas. E com uma espécie criticamente ameaçada de extinção!”, comenta. Ela reforça que a comemoração tem como objetivo chamar atenção para as conquistas desse trabalho de longo prazo e, ao mesmo tempo, agradecer a todos que foram parte desse caminho. “Ninguém faz uma coisa de 40 anos sozinho”, pontua.
Grupo que participou do evento Caratinga+40 incluiu pesquisadores, ambientalistas e colaboradores do projeto (Foto: Duda Menegassi | ((o))eco)
Apesar de ter se apaixonado pelos muriquis à primeira vista, a paixão pelos primatas que a levou ao Brasil veio tardiamente. “Eu gostava de natureza, de comportamento animal e de ciência. E para mim essas três coisas eram convergentes. Porque os primatas e não outros bichos foi chance”, admite em meio a risos.
A verdade é que a primatologia quase perdeu Karen Strier para os ursos. “Quando eu estava na minha formação, procurando pesquisas de campo, estava olhando projetos mais próximos, no meu país, e me interessei muito por ursos e lobos. E com os ursos eu tinha mais oportunidades. Mas apareceu a chance de ir estudar os babuínos na África e eu fui. Mesmo assim, quando eu voltei, pensei em tirar um ano para fazer pesquisas com ursos no Canadá. Cheguei a ser convidada para um estudo, mas o projeto lá teve problemas e não foi pra frente. Então resolvi seguir meu plano B e fazer meu doutorado em Antropologia Biológica em Harvard, onde decidi de vez seguir com os primatas”.
A escolha dos muriquis, entretanto, veio somente após a pesquisadora assistir o documentário “Cry of the Muriqui” (Choro do Muriqui), lançado em 1981 pelo WWF. O primatólogo Russell Mittermeier estava envolvido no filme e convidou seu antigo orientador, Irven DeVore, para narrar a história, que tinha como objetivo chamar atenção pros primatas ameaçados da Mata Atlântica. Coincidência ou destino, Irven era o orientador de Karen em Harvard e foi assim que a curiosidade da primatóloga se voltou para o maior primata das Américas. “O que me levou ao Brasil na primeira vez foram as questões científicas”, afirma.
Karen Strier, com apenas 19 anos, durante seu trabalho de auxiliar de campo no Projeto de Pesquisa Amboseli Baboon, no Quênia, onde estudou os babuínos (Foto: Acervo pessoal)
Seu interesse era testar as teorias da evolução social humana da perspectiva comparativa com uma espécie de primata que ainda não tinha sido estudada detalhadamente. “Na década de 80 havia alguns modelos sendo publicados na área das ciências e evolução social baseado em poucas espécies. E o que me interessou foi achar uma espécie que não havia sido estudada ainda e que podia ser um teste dos modelos dessas teorias. E a América Latina e o Brasil eram lugares interessantes”. Depois de ter ido para o Quênia com apenas 19 anos para ser auxiliar de campo por seis meses no Projeto de Pesquisa Amboseli Baboon, para estudar babuínos, as fronteiras do mundo já não limitavam a curiosidade inesgotável de uma jovem e obstinada Karen Strier.
A vinda em 1982 foi o suficiente para convencer Karen de que ela precisava estudar os muriquis, mas foi apenas a partir do ano seguinte que ela pôde se dedicar integralmente a este objetivo, que se tornaria sua missão de vida. Por 14 meses, Karen passou longos dias em campo na Fazenda Montes Claros, em Caratinga. Fosse atrás dos muriquis, para observar meticulosamente seu comportamento e aprender a identificá-los individualmente, ou fazendo análises da vegetação e do habitat em que eles viviam. A primatóloga somou mais de 1.200 horas de observação de muriquis nesse período entre 1983 e 1984, e os macacos Neotropicais se tornaram os companheiros mais frequentes na sua rotina.
Até hoje os bolsistas que vêm para estudar e participar do projeto com os muriquis repetem essa experiência imersiva. São 14 meses de campo, com 6 dias de campo e um dia de folga. Diferente dos tempos de Karen, entretanto, hoje os quatro bolsistas de cada ciclo contam com energia elétrica e internet no alojamento, a mesma casa que hospedou a americana. O terreno de 1 hectare foi doado por Feliciano à pesquisa, em nome da Fundação Brasileira para Conservação da Natureza, em 1983 e tornou-se a Estação Biológica de Caratinga.
Karen analisa plantas colhidas na floresta para conhecer melhor o habitat dos muriquis (Foto: Andy Young | Acervo pessoal)
Essa imersão é fundamental para que os muriquis possam ser reconhecidos individualmente e não apenas como macho e fêmea. “É Fulano, que nasceu no ano tal, tem cinco filhos, que brigou com a irmã que vem de outro grupo… Toda essa novela da vida deles dá um nível de entendimento tanto de interesse quanto para ciência e conservação que é muito mais profundo”. Entre os muriquis não há diferenças de tamanho corporal entre machos e fêmeas. A melhor estratégia para identificá-los são as marcas de despigmentação nos seus rostos e outras marcas individuais.
Hoje os campos não são mais tão frequentes na vida da primatóloga. Karen Strier concilia a coordenação do projeto de pesquisa em Caratinga com o cargo de professora da Universidade de Wisconsin-Madison, nos Estados Unidos, onde leciona desde 1989. A universidade americana – que possui seu próprio hall dos muriquis – é uma das grandes apoiadoras do projeto de pesquisa e ajuda a financiar o trabalho de Karen através de um fundo. Por 15 anos, ela intercalou as férias universitárias com as viagens à Caratinga, para passar três meses no campo. Atualmente, com mais responsabilidades administrativas e burocráticas, seu tempo no Brasil está dividido em mais visitas, porém de curto prazo. “Fico 10 dias no máximo e nunca estou sozinha, sempre estou com a equipe”.
No caminho para RPPN é possível ver a paisagem “típica” dde Caratinga, plantações de café e pastos (Foto: Duda Menegassi | ((o))eco)
Desde a década de 40, muito antes da americana desembarcar no Brasil e começar seu trabalho com os muriquis, o proprietário mineiro Feliciano Miguel Abdala já havia se encantado por eles e, muito a frente do seu tempo, enxergava a importância de conservar em harmonia com a produção. Na Fazenda Montes Claros havia café, gado, Mata Atlântica e muriquis.
“Ninguém mexe com os macacos do Feliciano”, lembra Miriam Leitão, jornalista e natural de Caratinga, onde cresceu ouvindo dos vizinhos essa frase. Feliciano Miguel Abdala era brabo e não permitia que ninguém mexesse na sua mata, que fazia questão de deixar em pé, e nem com os seus macacos. Comprava briga com caçador, palmiteiro, madeireiro e quem quer que ousasse entrar indevidamente na fazenda. Seu neto, Ramiro Abdala, conta que o avô era uma voz solitária numa Caratinga rural que não entendia a necessidade de preservar a natureza. “E o primeiro parceiro que ele encontrou para ser seu aliado na missão de proteger a floresta foi a ciência”, afirma Ramiro.
Karen conversando com Feliciano Abdala, em 1988 (Foto: Acervo pessoal)
Ramiro é um dos sucessores desse legado e atual presidente da ONG Preserve Muriqui, fundada pela família para administrar a Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Feliciano Miguel Abdala. Criada em 2001, um ano após a morte de Feliciano, a reserva possui 957 hectares e garante a proteção perene das terras que ele lutou tanto para defender. “Eu sou presidente e fundador da Preserve Muriqui e foi a visão que a gente teve para poder dar continuidade ao trabalho dele. A gente fica feliz pelo lado da pesquisa em si, de poder estar proporcionando essa oportunidade da ciência estar desvendando os mistérios do muriqui. E pessoalmente é muito reconfortante ver que conseguimos dar continuidade ao que meu avô prezava”, disse Ramiro em conversa com ((o))eco durante o evento Caratinga+40.
Feliciano deixou sete filhos, netos e bisnetos, que se encarregam de continuar o legado. Além disso, deixou uma semente que há mais de 40 anos floresce através do projeto de pesquisa com os muriquis em Caratinga, para o qual abriu as portas. “O senhor Feliciano é um visionário. Ele é um bom modelo do quanto uma única pessoa pode influenciar o futuro. Eu tenho certeza de que quando ele tomou a decisão de preservar a mata dele, não matar, não caçar os muriquis, nunca imaginou que 40 anos depois teria uma pesquisa ainda em andamento”, diz Karen.
Quando Karen começou sua pesquisa, em 1982, acreditava-se que os muriquis eram uma única espécie. Foi apenas em meados dos anos 2000 que a ciência – e a genética – esclareceu que se tratam, na verdade, de duas espécies distintas, que foram divididas entre muriqui-do-norte e muriqui-do-sul (Brachyteles arachnoides). Ambas as espécies são endêmicas – ou seja, exclusivas – da Mata Atlântica. A distribuição de cada uma reflete sua nomenclatura. Caratinga é território do muriqui-do-norte, assim como toda porção leste de Minas Gerais. “Às vezes eu brinco que o meu estudo já durou tantos anos que a espécie já evoluiu para separar em duas”, se diverte Karen. “E pelos resultados genéticos, vimos que as espécies de muriquis se separaram há mais ou menos 2 milhões de anos, o que é próximo da divisão de chimpanzés e bonobos, que foi há 2,2 milhões de anos. Então a gente pensa que os muriquis do norte e do sul são parecidos, mas eles têm quase a mesma distância evolutiva que os bonobos e os chimpanzés”, explica.
Os muriquis são primatas particulares, de comportamento pacífico e comunidades igualitárias, com fêmeas independentes (Foto: Duda Menegassi | ((o))eco)
Lacunas evolutivas à parte, ambos os muriquis compartilham certos comportamentos particulares entre os primatas que foram desvendados logo no início pela pesquisa de Karen, como seu caráter pacífico. Outra grande descoberta foi de que são os machos que permanecem nos grupos de nascimento, enquanto as fêmeas migram. Em média aos seis anos de idade, antes da puberdade e de começarem a copular, as fêmeas saem de seus grupos natais em busca de uma nova família. “O sistema de parentesco dos muriquis é dos machos. As fêmeas normalmente moram sem a mãe e com seus filhos machos, então já são mais independentes”.
Essas informações são importantes não apenas para entender as relações sociais entre eles, mas para subsidiar ações de conservação e manejo. “Sabemos como translocar, quais as fêmeas, quem deveria ser translocado, como, quando – qual a melhor estação – e como poderíamos seguir mais o comportamento natural dos muriquis e usar o que eles querem fazer para aumentar a probabilidade de sucesso do resultado”.
Ao longo de 40 anos de observação dos muriquis, o projeto também revelou que certos comportamentos são flexíveis, como a dieta – que pode incluir mais folhas, flores ou frutas de acordo com a disponibilidade – e o uso do chão, inclusive para beber água em períodos mais secos. Os muriquis podem sobreviver até mesmo em matas secundárias, aquelas em processo de regeneração, e com algum grau de perturbação, desde que tenham os recursos necessários para mantê-los.
Um dos grandes orgulhos de Karen na pesquisa é seu trabalho não-invasivo para estudar a reprodução e fertilidade dos muriquis. Para fazer isso, recorreu às fezes do animal e uma análise que levou 15 anos (1990-2005). “Nós desenvolvemos uma técnica para extrair os hormônios do cocô do muriqui e só com a coleta de fezes – ao longo de 15 anos para ter uma amostra adequada – conseguimos fazer essa análise e determinamos o prazo da gravidez [7,2 meses], o ciclo ovulatório da fêmea de 21 dias, a idade que as fêmeas começam a puberdade, que tem alguns ciclos que não são férteis e que até o final da vida as fêmeas continuam ciclando, mas os níveis de estrogênio não são muito altos. Quer dizer, descobrimos muita coisa sem interferência, sem pegar no bicho, só esperando eles fazerem cocô. Cientificamente foi difícil, caro, tecnicamente complicado, mas conseguimos aprender algo tão básico de uma espécie criticamente ameaçada seguindo a ética não-invasiva”, orgulha-se a primatóloga.
A coleta de fezes para análises hormonais e genéticas desenvolvida com os muriquis hoje é parte das ferramentas utilizadas por projetos de estudo não-invasivos com a fauna, assim como as armadilhas fotográficas e até mesmo os drones, ambos utilizados de forma pioneira no país para o monitoramento de muriquis.
Karen mostra um pedaço de cocô de muriqui. As fezes do animal foram fundamentais para a pesquisa não-invasiva conduzida por Karen (Foto: Duda Menegassi | ((o))eco)
“Eu sempre quis fazer a melhor ciência possível, ajudar o maior número de pessoas possível e interferir com o meio ambiente o menos possível. Eu preferia demorar mais cinco anos para aprender uma coisa, mas poder fazer de forma não invasiva, do que capturar o animal, tirar sangue e já saber. Eu preferia treinar alunos, o que não vai ser tão produtivo como trabalhar com uma colega ou trazer uma pessoa que vai trabalhar, publicar e pronto. Eu preferi seguir a filosofia lenta dos muriquis para fazer as coisas de uma maneira mais certa e me deixasse orgulhosa não apenas do produto, mas do processo”, destaca.
Quando pisou pela primeira vez no Brasil, a primatóloga americana Karen Strier não poderia imaginar que se tornaria uma peça central não apenas na proteção dos muriquis, mas também no desenvolvimento da primatologia do país. Se antes era impossível saber, hoje já não há dúvidas. “De todas as coisas que eu fiz pelo Brasil nos últimos 52 anos, acho que uma das melhores foi trazer a Karen para o Brasil em 1982”, afirma Russell Mittermeier, que trabalha há cinco décadas pela conservação da natureza no Brasil e no mundo.
Para além de todo o conhecimento que levantou sobre os muriquis com sua própria pesquisa, Karen teve uma visão desde o princípio: trabalhar com brasileiros e ajudar a treiná-los. “Eu fiz um compromisso pra investir no treinamento aqui. É um investimento, mas que está dando resultados para a finalidade que é melhorar a situação dos muriquis”, aponta. Casada e sem filhos, os alunos que passaram por Caratinga são uma família maior do que Karen jamais imaginou. Ao longo do projeto, noventa alunos passaram pela matriarca dos muriquis. “Muitos deles ficaram mais de um ano, então tem mais de 110 anos de pesquisa de muriqui!”, destaca.
O evento Caratinga+40 reuniu um grupo de atuais e antigos pesquisadores do projeto dos muriquis. No meio de todos eles, Karen Strier, a matriarca dos primatólogos (Foto: Duda Menegassi | ((o))eco)
Karen conta que os pesquisadores brincam que a experiência em Caratinga é um divisor de águas na carreira. “A.C. e D.C., antes e depois de Caratinga”, ri. “Qualquer um que trabalha com primatas no Brasil têm algum grau de relação com o trabalho da Karen”, apontou a pesquisadora Tatiane Cardoso que passou um ciclo em Caratinga e hoje lidera seu próprio estudo com uma espécie ameaçada de primata amazônico.
A partir destas gerações de primatólogos que passaram por Caratinga, nasceram outras iniciativas no país para estudar e proteger os muriquis, tanto do norte quanto do sul, como o Muriqui Instituto de Biodiversidade (MIB); Muriquis do Sossego; o Projeto Muriquis do Caparaó; a Associação Pró-Muriqui; e o Projeto de Conservação dos Monos no Paraná. “Nós tivemos a festa do Caratinga+30 e eu reparei a distância que nós percorremos nesses últimos 10 anos, porque naquela ocasião não havia outros projetos [com o muriqui-do-norte], só o do Sérgio Mendes, no Espírito Santo. Tinha estudos, mas nada continuava. Agora tem vários projetos em andamento, usando alta tecnologia, aplicando no manejo. Eu quero ficar mais tempo ainda, mas hoje eu entendo que se algo acontecesse comigo, os muriquis ainda iriam sobreviver, ia ter um monte de pessoas para levar isso”.
As brasileiras Carla Possamai e Fernanda Tabacow são o melhor exemplo disso. As duas primatólogas foram bolsistas do projeto de Karen e hoje ajudam diretamente na coordenação das pesquisas em Caratinga e com o apoio no dia a dia do campo. “Eu vim para Caratinga em 2001 e quando eu cheguei aqui não tinha nenhuma experiência de campo, então eu estava realizando um sonho de estar no campo, de ter essa vivência, de estar coletando dados de uma espécie ameaçada, o maior primata brasileiro, era uma coisa impressionante. E você está acompanhando a vida deles, a gente se sente parte do grupo. É um sonho de se tornar pesquisador e de poder aprender a fazer ciência. É uma oportunidade que o projeto e a Karen dá para as pessoas e que abre muitas portas”, conta Carla Possamai, de 49 anos, que emplacou recentemente um terceiro pós-doutorado com orientação de Karen sobre os muriquis. “A vivência de estar no campo com os muriquis é única”.
“Eu sempre tive muita admiração pela cientista que ela é e é uma responsabilidade de quem entra no projeto dar continuidade a essa coleta de dados”, continua Carla. Ela se emociona ao falar sobre o que significa para ela ser parte desse projeto: “porque você está fazendo conservação de verdade, você está sendo uma das pecinhas que está contribuindo”. O conhecimento de 40 anos de pesquisa também teve outros “filhos” importantes: o Plano de Ação Nacional (PAN) para Conservação dos Muriquis (2010-2015), o PAN dos Primatas da Mata Atlântica (2018-2023); e os Protocolos para Pesquisa e Manejo de Muriquis, publicados em 2022.
“Estou importando o conhecimento e as metodologias para outros lugares. Estamos usando os dados para os projetos de manejo e conservação de muriquis, coordenado e orientado pelo ICMBio, e mais recentemente, os protocolos de manejo. E me dá muita satisfação que nosso conhecimento, os dados que o meu projeto conseguiu coletar, estão sendo diretamente aplicados”, avalia Karen Strier. “Acho que se esse projeto mostrou algo foi a importância da pesquisa para conservação”, completa.
Quando Karen começou seu trabalho em Caratinga, a população de muriquis na fazenda era estimada em cerca de 50 indivíduos, distribuídos em dois grupos principais. Quatro décadas de pesquisa e conservação depois, a propriedade rural virou uma área protegida particular que abriga cinco grupos e 232 muriquis. A situação melhorou, sem dúvida, mas pintar esse quadro de “antes e depois” não reflete a verdadeira situação dos muriquis em Caratinga. Em 2014, a região sofreu com uma seca prolongada que forçou os muriquis a saírem do dossel e buscar água no chão. No ano seguinte, um incêndio atingiu a reserva e em 2016 teve início um surto de febre amarela, doença perigosa para os muriquis. O resultado dessa sequência de “fatalidades” foi uma queda de mais de um terço da população – que chegou a mais de 350 – em menos de 10 anos.
“A febre amarela assustou todo mundo, mas talvez eu mais ainda porque eu tinha essa perspectiva de ter uma população ao longo de décadas e décadas e, em seis meses, perdemos 10% dos muriquis em Caratinga. Além dos barbados [Alouatta guariba], do sagui-da-serra [Callithrix flaviceps]. Aí você vê a fragilidade e que tragédias inesperadas ainda podem acontecer. Um passo pra frente e dois pra trás. Por isso tem que andar muito pra frente, para no momento que você andar pra trás, não perder tudo”, reflete Karen. Ainda não é momento de relaxar, mas a primatóloga se mantém otimista. “Eu acho que a natureza quer sobreviver”.
Durante o evento Caratinga+40, a ONG Preserve Muriqui organizou o plantio comemorativo de 40 mudas nativas da Mata Atlântica. A ONG tem buscado promover a restauração de áreas na região. Na foto, Karen Strier segura uma das mudas ao lado de Alessandra, que trabalha no viveiro da Preserve Muriqui (Foto: Duda Menegassi | ((o))eco)
A maior preocupação para o futuro vem de uma ameaça global: a crise climática. A previsão é que a região de Caratinga, que já encara secas prolongadas como a de 2014, torne-se ainda mais seca. “Não sei se os muriquis vão ter água”, preocupa-se. Karen acredita que a melhor solução é criar corredores que permitam os animais terem uma saída se a situação em Caratinga ficar insustentável. A ideia não é nova. Em 2014, o governo de Minas Gerais publicou um decreto que estabelece o Corredor Ecológico Sossego-Caratinga com uma área total de 66 mil hectares. Construir essa conexão de florestas entre a RPPN Feliciano Miguel Abdala e a RPPN Mata do Sossego, que também possui uma população de muriquis, teria uma importância estratégica, “porque o Sossego tem mais água”, além de aumentar as áreas de floresta e habitat.
Quase dez anos depois do decreto, o corredor permanece no papel e os muriquis de Caratinga, ilhados. “Estamos olhando um fragmento. Se esse fragmento não tem água, o que os muriquis vão fazer? Não só os muriquis, mas todos os animais e até os moradores. Todo mundo sem água. Eu estou com muito medo disso”. Mais recentemente, em 2021, pesquisadores e gestores públicos propuseram um corredor ainda mais ambicioso, entre o Parque Estadual da Serra do Brigadeiro, em Minas Gerais, e o Parque Nacional do Caparaó, na divisa de Minas com o Espírito Santo.
“Tem que ter compromisso. Porque tem custo, mas em comparação com o que vamos economizar depois, é muito pouco. Ainda temos tempo”, alerta. “Nós já sabemos o que precisamos fazer. O que está faltando e todos nós podemos cobrar é a questão política para implementar. Não é uma questão de como poderíamos salvar o muriqui?. Nós já sabemos. Já sabemos há décadas e poderíamos ter feito muita coisa já. E não deveria ser responsabilidade só dos cientistas e conservacionistas. Eu acho que a pressão deveria vir da comunidade, das pessoas que aproveitam o fato que temos natureza, que temos água, tudo isso”.
Não bastam leis no papel, mas ação política concreta e fiscalização para resguardar as proteções já estabelecidas. “Eu fico um pouco assustada quando vejo a fragilidade até das leis de proteção da Mata Atlântica, que inclusive foram ameaçadas recentemente. Como o Brasil vai convencer o mundo que ele tem capacidade de salvar a Amazônia, uma área enorme com mil outros problemas, se eles não conseguem manter e aplicar uma lei que já existe no pouco que sobrou da Mata Atlântica? Já tem lei, tem tudo pra proteger, por que está vulnerável ainda? Eu não entendo”, questiona a primatóloga.
No sábado (17), o evento foi em busca dos verdadeiros protagonistas destas quatro décadas de pesquisa e conservação: os muriquis-do-norte. Nosso destino, a RPPN Feliciano Miguel Abdalla, fica a cerca de 1 hora do centro da cidade de Caratinga, no limite leste do município. Assim que desembarcamos já fomos recebidos com a boa nova: “olha, tem um muriqui ali”. A mais de 30 metros acima das nossas cabeças, era possível enxergar bolinhas peludas e cinzentas nos galhos das árvores mais altas, com movimentos lentos e preguiçosos. “Eles estão acordando”, explicou Karen. No rádio, outros pesquisadores do projeto avisaram que havia mais um grupo próximo. Adentrando a mata através de uma das trilhas abertas para fazer o monitoramento dos muriquis, encontramos o grupo do Matão. Este foi o bando inicialmente estudado por Karen em Caratinga. No primeiro ano de pesquisa eram 22 macacos, hoje o grupo do Matão triplicou e é composto por cerca de 60 indivíduos.
Enquanto eles faziam xixi e cocô ao nosso redor, foi possível confirmar um, entre tantos, dos aspectos distintos dos muriquis: seu cheiro. “O cheiro deles eu sempre falo que é um cheiro de canela e foi algo que eu gravei desde a primeira vez. Eu estava perto deles na árvore, eles fazendo xixi e era como se fosse um perfume”, lembra ela até hoje. Depois de cerca de uma hora de observação dentro da floresta, saímos em direção ao Centro de Visitantes com a sensação de que já havíamos tido nossa cota de boa sorte na observação destes fantásticos animais. Mal sabíamos que estávamos prestes a presenciar, da beira da estrada, um fenomenal encontro de três grupos de muriquis. O Matão, que já havíamos conhecido, o Nancys e o M2.
Foto: Duda Menegassi | ((o))eco
Os indivíduos vocalizavam uns para os outros com a sua voz particular, que lembra o relincho de um cavalo. Exibiam-se no alto das árvores com seus filhotes, alimentavam-se, esticavam seus longos braços, pernas e se moviam no dossel, e até mesmo baixavam para árvores mais próximas de nós, como se quisessem conferir que turma era essa, de cerca de 100 pessoas, que os observava. E talvez por essa turma ser composta de tantos membros do projeto, como se quisessem matar saudades, nos olhavam tranquilos enquanto as fotos e vídeos registravam seu semblante sereno. Pareciam saber que ali estavam entre amigos.
“Eu só vou dizer que, depois de 40 anos, tudo é possível”, resumiu Strier com um sorriso largo diante daquela exibição de gala dos macacos. Ao todo na reserva existem atualmente cinco grupos e um total de 232 muriquis. Se antes eram os “macacos do Feliciano”, hoje são os muriquis de Caratinga. Parte dessa história é contada pela própria Karen no livro “Faces da Floresta”, publicado originalmente em 1992, com edição atualizada em 2007, onde descreveu seu primeiro vislumbre de um muriqui na floresta. Um novo livro, aliás, está a caminho, promete a pesquisadora, sem adiantar mais detalhes.
“Persistência”, respondeu prontamente a primatóloga Carla Possamai quando questionada sobre o que aprendeu na pesquisa com Karen. A determinação e foco da americana são elementos cruciais na receita para manter o projeto há 40 anos.
“Quando eu decido seguir uma coisa, não deixo outras oportunidades me distraírem. Quando estava terminando meu doutorado, eu ganhei um prêmio de financiamento para passar um ano na Ásia. Eu podia ter ido estudar gibões, com todas as despesas pagas e muito prestígio. E eu escolhi voltar pro Brasil para ficar com os muriquis. Essa foi uma das decisões. Eu escolhi buscar financiamento para voltar ao Brasil”, lembra Karen.
Karen Strier durante palestra no Caratinga+40 (Foto: Duda Menegassi | ((o))eco)
O foco da primatóloga não titubeia nem diante da pergunta inconveniente da jornalista sobre que outro primata ela escolheria para estudar. “Sem ser o muriqui-do-norte? O muriqui-do-sul!”, responde afiada em meio a risos. “Eu tenho um compromisso muito profundo com a primatologia brasileira. Então aonde eu poderia ser mais útil? Onde eu poderia contribuir mais na primatologia brasileira, eu iria querer contribuir”, completa.