22 Junho 2023
Convite a ocupar uma estrutura subestimada da democracia brasileira. Nas periferias, eles podem ser a diferença entre a vida e a barbárie, articular políticas públicas e contrapor-se às milícias. A esquerda não pode mais ignorá-los.
A opinião é de Miriam Krenzinger, professora da Escola de Serviço Social da UFRJ e co-coordenadora do Observatório dos Conselhos, e Luiz Eduardo Soares, antropólogo, cientista político e escritor, ex-secretário nacional de segurança pública. O texto foi publicado por Outras Palavras, 21-06-2023.
Em Campo Grande (bairro do Rio de Janeiro), fica a Vila dos Anjos, onde a terra devora, aos poucos, um conjunto de prédios fantasmagóricos de propriedade da Caixa Econômica Federal. As janelas do primeiro andar já desceram ao nível do solo. O terreno pantanoso é impróprio para edificações, o que não impediu que os prédios fossem construídos, embora não concluídos. Hoje, afundam, lentamente. Metáforas vivas do avesso da vida. Em longa agonia, a casa vira sepulcro. Só falta o portal dantesco em que se lesse: “Vós, que entrais, deixai aqui toda esperança”. Quatrocentas famílias os ocuparam, sob o patrocínio da milícia local. Os moradores das espeluncas não recebem serviços regulares, exceto a água que chega ao único banheiro disponível. Isso mesmo: um único banheiro atende a todo o condomínio. Desvios, por fiação clandestina, do tronco de energia garantem a luz. O esgoto é escoado a céu aberto. A despeito dessas condições, os milicianos cobram R$20,00 por mês de cada família. Na região, 120 crianças estão fora da escola.
Maria foi chamada pela escola próxima ao condomínio para um pedido surpreendente. O diretor precisava de ajuda. Não sabia exatamente que providência tomar. Alguns alunos que residiam nos prédios ruinosos estariam infectando seus colegas pelo uso do bebedouro. Eles sofriam de hepatite e meningite. De algum modo, a clínica da família deveria ser envolvida e Maria talvez pudesse intermediar o diálogo com os profissionais da saúde. O diretor acrescentou outro motivo de perplexidade e preocupação: as crianças que moravam no condomínio dormiam nas aulas, porque não conseguiam dormir bem à noite. Elas contavam que os prédios estalavam durante a noite. A articuladora logo se deu conta de que seria necessário envolver outros setores do poder público. Enquanto o condomínio não fosse desocupado, oferecendo-se aos moradores alternativa saudável, segura e economicamente viável, nem o sofrimento das crianças residentes nem o contágio seriam efetivamente interrompidos.
Antes de procurar a clínica da família, Maria visitou o condomínio, pela primeira vez, para conhecer o local, aproveitando para realizar o que, no âmbito do projeto Aluno Presente [1], denomina-se busca ativa, isto é, a procura sem a identificação prévia de alguma criança em particular cujo nome constasse da lista de abandono ou infrequência escolar.
Maria sabia que a vizinhança costuma ser fonte inesgotável para o mapeamento inicial dos casos. Os vizinhos conhecem a vida alheia, queiram ou não, porque as paredes que separam os apartamentos são finas, há paredes pela metade e buracos que funcionam como janelas nos corredores, e as portas, muitas vezes, permanecem abertas, porque os espaços internos são minúsculos e o calor, intenso. Além disso, a falta de banheiro obriga os moradores a deslocarem-se constantemente até o sanitário comum ou a fossa, no terreno baldio contíguo.
— “A menina do apartamento na ponta do corredor”, apontou a vizinha, “ela não vai à escola, não. Passa os dias por aí.”
— “Que idade ela tem?”, Maria perguntou. “Uns nove anos, mais ou menos.”
Maria agradeceu e disse que iria lá, falar com os responsáveis, saber o que estava acontecendo e oferecer ajuda para matricular a menina.
— “Só tem o pai mesmo.”
— “Será que ele está em casa? Vou conversar com ele.” “Não vai adiantar, não.”
— “Por que a senhora tem tanta certeza?”
— “É marido da filha.”
Maria não entendeu. Desconfiou, mas achou a ideia tão estapafúrdia que não se permitiu qualquer ilação.
— “Ele abusa da menina. Faz dela mulher dele, compreendeu?”
— “E a mãe? A menina não tem mãe?”
— “É empregada doméstica. Sai segunda e volta sábado. O pai fica sozinho com ela a semana inteira.”
Maria já era, à época, uma profissional tarimbada. Já vira de tudo nesse mundo. Seu trabalho a levara aos confins do Rio de Janeiro, aos quadros mais horripilantes da miséria. Pois, naquele instante, descobriu, do modo mais traumático, que ainda não vira tudo. Atônita, tentou recompor-se. No estado de inusitado torpor em que a descrição da vizinha a deixara, ela não conseguiria manter a cabeça no prumo para enfrentar o que a esperava no fundo do corredor. Sem se despedir da mulher, caminhou em direção ao apartamento do pai e da filha.
Antes de bater à porta, por entre as venezianas velhas, sujas e tortas que escondiam o buraco na parede, viu a menina deitada na cama, vestida só de calcinha. Era meio-dia. Respirou fundo, intoxicada por sentimentos convulsionados e opostos de ódio, indignação, repugnância, vergonha, impotência, desânimo, compaixão. Maria era mãe. Teve o impulso de invadir o cômodo, abraçar a menina e fugir com ela, salvá-la, depois condenar o homem à pena mais cruel que houvesse na face da Terra. Respirou de novo. Com dificuldades, manobrou seu espírito para voltar a funcionar no modo profissional.
Bateu à porta. O pai a abriu. Qualquer pequeno movimento da porta bastava para revelar o ambiente interior. A filha, deitada, ergueu o pescoço, curiosa. Maria apresentou-se e indagou se a menina estava na escola. Atento ao olhar invasivo da articuladora, e antes de responder à pergunta, o pai reagiu, antecipando uma justificação para a seminudez da criança:
— “Comprei um creme para o corpo dela.”
O efeito foi contrário ao que ele, provavelmente, queria produzir. O homem deu à cena um tom lascivo. Em vez de cobrir, com a indiferença natural de um pai, o corpo desnudo da filha, ele o associou a imagens potencialmente eróticas.
O homem parecia drogado e desconversou, disse que a filha já estivera na escola, mas não gostou da experiência. Além do mais, era-lhe útil em casa, para cozinhar e cuidar da limpeza, quando ele saía para trabalhar. Não podia contar com a esposa, que passava a semana fora. Por outro lado, a filha mais velha, de 14 anos, estava grávida e, muitas vezes, passava dias e noites fora. Maria anotou o nome da menina, da filha mais velha, e quis saber o endereço do trabalho da mãe, “só para conversar com ela sobre o desempenho escolar da menina e futuras possibilidades”. O homem disse que não tinha o endereço, nem o telefone. Ela trocara de emprego recentemente e perdera o celular.
Maria caiu em si e concluiu que o homem desconfiara dela e não lhe daria nenhuma informação. Despediu-se e prometeu voltar no sábado para conversar com a mãe. Ela saiu ligeiro, acossada pelo medo de que o homem a seguisse. O caso era muito grave e exigia medidas judiciais. Era imperativo mobilizar, de imediato, o Conselho Tutelar.
Antes de decidir o que fazer, Maria parou no apartamento da vizinha que lhe dera informações pouco antes. Pediu para entrar só para lhe fazer uma pergunta. O pai não deveria vê-la, muito menos ouvi-la.
— “A senhora não me falou sobre a irmã mais velha”, disse Maria.
— “Tem uma irmã, sim, mas não está sempre aqui, não.”
— “O homem me contou que ela tem 14 anos e está grávida.”
— “O pai é o Murilo, filho do chefe da Milícia.”
Outro susto. Tudo ficaria mais complicado e perigoso, Maria pensou.
— “Se não fosse ele, seria outro”, a moça continuou.
— “Aqui tem até apartamento que serve de bordel pras meninas que se vendem.”
— “Os milicianos sabem disso?”
— “E o que é que acontece aqui e eles não sabem?”
— “Tem muita droga aqui?”
— “Muita. Vendem, compram, as meninas trocam por sexo.”
— “Pensei que, onde a milícia dominasse, não havia droga.”
— “Aqui, eles ajudam a negociar.”
Maria agradeceu e despediu-se, mais confusa do que antes.
Descendo as escadas sombrias, que agrediam o olfato com o odor ácido de urina, Maria tropeçou em um casal fazendo sexo. Um menino e uma menina mal entrados na adolescência. Não se recompuseram, vexados. Apenas se retraíram por alguns segundos, enquanto Maria evitava seus corpos. Antes de sair do prédio em ruínas, Maria deparou-se com outro casal. Na rua, contornando o imenso monte de lixo, apertou os olhos, porque o sol os queimava depois daquela travessia no escuro, e porque o coração ardia. [2] Era preciso agir rápido e salvar a menina.
O relato segue, o Conselho Tutelar foi acionado, interveio, demonstrou relevância e competência. Enquanto convocava os conselheiros, passou pela cabeça de Maria uma frase infantil: o final feliz vai ser possível. Lembrou-se, então, do terreno devorando o pardieiro insalubre, sucursal do inferno, retrato da infância sequestrada na cidade maravilhosa.
As cenas descritas até aqui nos bastam para a reflexão que passamos a expor. Importa ainda reter o seguinte: o Conselho é temido e incita suspeitas, porque representa o Estado e tem autoridade para mobilizar forças policiais, dependendo do caso. O Conselho Tutelar, nas comunidades do Rio de Janeiro, atua como uma espécie de contrapoder do tráfico e da milícia. Por isso mesmo, é comum e justificável que alguns conselheiros e algumas conselheiras tenham medo do medo que provocam e evitem transitar em certos locais.
O que a narrativa nos diz? Essencialmente, demonstra que o Conselho Tutelar pode ser a diferença entre a vida e a morte, entre o respeito aos direitos mais elementares e a barbárie. Mais grave ainda: beneficiários de seu trabalho e vítimas das violações citadas são crianças e adolescentes, aos quais o Estado teria de dedicar investimentos e atenção com absoluta prioridade, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, que busca implementar a própria orientação constitucional. Não é o que tem acontecido e, de algum modo, o conjunto da sociedade é cúmplice desta extraordinária negligência, que começa com as iniquidades características de nossa história e se estende à invisibilidade dos Conselhos, até mesmo para estudiosos das estruturas institucionais do Estado brasileiro.
Neste ano, 2023, no dia primeiro de outubro, haverá, em todos os municípios brasileiros, votações para a escolha dos componentes dos Conselhos Tutelares, cujos mandatos se estenderão por quatro anos [3]. Os pleitos ocorrem no primeiro domingo de outubro do ano subsequente à eleição presidencial. O voto é facultativo e cada colegiado é integrado por cinco conselheiros ou conselheiras e cinco suplentes. Todos os municípios, por força da Lei, contam com ao menos um Conselho Tutelar. Segundo o Guia de Atuação do Ministério Público na Fiscalização do Processo de Escolha do Conselho Tutelar (2023), “A Lei Federal não estabelece critérios para o número de Conselhos Tutelares que os Municípios de maior porte devem possuir. Porém, segundo o art. 3o, § 1o, da Resolução n. 231/2022, do Conanda, deve ser criado e mantido, no mínimo, um Conselho Tutelar para cada grupo de 100 mil habitantes. A exclusão do termo ‘preferencialmente’, que constava da antiga Resolução 170/2014 do Conanda, deixa claro o dever do município de ampliar o número de órgãos tutelares a cada 100 mil habitantes.” [4]
Isso significa que a cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, deveria contar com cerca de 60 CTs e mais de 300 conselheiros. Entretanto, são apenas 19 os CTs cariocas, trabalhando arduamente, sete dias (e noites) por semana, sem descanso, na proteção de crianças e adolescentes, especialmente daqueles mais vulneráveis às situações de violência, e na defesa de seus direitos, consagrados na Constituição e definidos como prioritários.
Na capital fluminense, foram às urnas 107.841 votantes em 2019, mais do que o dobro do verificado na votação anterior, em 2015, quando 48.765 foram às urnas. De todo modo, os números são muito pequenos, indicando participação diminuta e a quase invisibilidade em que são mantidos esses órgãos colegiados, a despeito de seu papel estratégico.
A precariedade das informações, a debilidade do debate público e a rarefação de estudos e pesquisas [5] expressam e concorrem para a persistência da desatenção e da insensibilidade política, inclusive nos setores usualmente mobilizados em torno das temáticas sociais. Esse estado de coisas acaba sendo funcional para os grupos que buscam aparelhar as entidades com propósitos nem sempre, digamos, exatamente republicanos. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, Lei Federal n.º 8.069/90) visa garantir os direitos de crianças e adolescentes, estabelecidos no artigo n.º 227 da Constituição. Uma de suas criações originais foi o Conselho Tutelar, cujas atribuições estão especificadas em seu artigo n.º 136: “Atender crianças e adolescentes garantindo medidas protetivas; atender e aconselhar pais ou responsáveis e conscientizá-los de seu papel e das medidas impostas em caso de negligência ou abandono intelectual; promover a requisição de serviços públicos nas áreas de saúde, educação, serviço social, previdência, trabalho e segurança; encaminhar ao Ministério Público casos de infração administrativa contra os direitos da criança e do adolescente; encaminhar à autoridade judiciária casos de sua competência; providenciar a medida estabelecida pela autoridade judiciária nos casos de ato infracional cometido por adolescente; expedir notificações.” [6]
A longa gestação de um golpe regressivo, sob inspiração neofascista – que patrocinou a derrocada de direitos, a devastação ambiental, os ataques às sociedades originárias, a flexibilização do acesso às armas, a difusão de discursos de ódio, infestando por dentro as instituições, a celebração da violência, do patriarcalismo e do racismo estrutural –, impactou a consciência crítica da cidadania e, de certo modo, contribuiu para nos despertar de uma espécie de naturalização letárgica da democracia. Durante as últimas décadas, sobretudo as gerações que não vivenciaram a luta contra a ditadura passaram a tomar como dadas as conquistas democráticas, como se elas jamais estivessem em risco e não pudessem ser perdidas. Concentramo-nos em fazê-las avançar, sem avaliar seu grau de consolidação. Voltamos nossas baterias críticas para suas insuficiências e chegamos a questionar a aplicabilidade do adjetivo “democrático” a nosso arranjo institucional, dadas a profundidade das desigualdades e as limitações da legalidade, que conviveu, todos esses anos, em flagrante desrespeito aos postulados constitucionais, com o genocídio de jovens negros nos territórios vulneráveis.
A corrosão dessas conquistas, uma a uma, seguindo a fórmula perversa que combinava intensificação do autoritarismo com lassidão neoliberal, acendeu a luz amarela e, a seguir, o alerta máximo, sobretudo quando, aproximando-se as eleições de 2022, os conspiradores deixaram de lado qualquer escrúpulo e assumiram a pauta do golpe contra o voto popular.
Depois do abalo provocado pela ameaça fascista, talvez estejamos mais dispostos do que antes a valorizar o que foi conquistado, apesar das sinuosidades, idas e vindas e contradições de nosso processo histórico. Valorizar para consolidar, sem negar as insuficiências e a necessidade imperiosa de radicalizar a democracia, em todas as frentes: sociais, políticas, culturais e econômicas. Esse esforço de valorização precisa corresponder a reavaliações, até porque seria insustentável afirmar, candidamente, que as instituições funcionaram. Não é verdade. Se fosse, sequer teria havido a candidatura do personagem que nos governou, ante o elogio a um torturador, na funesta cerimônia do impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Apesar disso, no interior das instituições, também houve dignidade e resistência corajosa. Basta assinalar que, se o TSE tivesse adotado a postura pusilânime que manchou tantas biografias, estariam hoje abertas as portas para a derrocada irreversível da democracia. Em síntese, é tempo de reavaliações críticas para distinguir o joio do trigo e identificar rotas viáveis de consolidação e aprofundamento do que se venha a considerar (potencialmente) virtuoso, na institucionalidade. Nosso breve artigo responde a esta motivação.
Talvez se possa dizer com segurança que os estudiosos tendem a convergir no reconhecimento das qualidades dos sistemas que, em nosso país, estruturam a saúde, a educação e a assistência social. É quase consensual a avaliação de que os respectivos arranjos institucionais representaram conquistas históricas preciosas, independentemente dos problemas de funcionamento que apresentam. SUS e SUAS, por exemplo, foram organizados segundo valores e princípios democráticos: saúde, educação e assistência foram definidas como bens públicos, responsabilidade do Estado e direitos universais. Foram abertos à participação, por meio de Conselhos de Direitos, e as dinâmicas de gestão, financiamento e execução se distribuíram – assim como a participação – nos três níveis: federal, estadual e municipal, de acordo com os graus de complexidade e os custos relativos. Essa rede, valorizando os municípios, integrou dimensões fundamentais das políticas públicas: a ação local, a intervenção territorializada, a presença capilar e mais suscetível a identificar especificidades e a oferecer respostas mais ágeis e adequadas. Claro que a divisão do trabalho, a arquitetura institucional apoiada nos encaixes complementares e a porosidade que convida ao diálogo com a sociedade resultaram não apenas da inteligência coletiva de constituintes e demais legisladores, mas da sedimentação de ideias e projetos, amadurecidos no âmbito de diversos movimentos sociais, ao longo de décadas. Essa tessitura normativa prosseguiu e propiciou a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990.
É nesse contexto que desejamos convocar a atenção para o personagem que tem passado despercebido, quando se conta a história épica da construção matricial das principais políticas públicas brasileiras e quando se contempla a obra da reconstrução democrática, especialmente do Sistema de Garantias dos Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA). O protagonista ignorado são os Conselhos Tutelares. Eles merecem atenção, pois carregam consigo as marcas dessa origem, com suas qualidades e limitações, e desempenham papel muito mais relevante do que tem sido admitido, o que não anula eventuais tensões de suas práticas com os próprios princípios democráticos. Inscrevem-se como pontos de acompanhamento, supervisão ou defesa, ou como – na prática, direta ou indiretamente – veículos promotores de direitos, agindo no interior da constelação sistêmica das instituições que implementam as mais significativas políticas públicas (educação, saúde e assistência social), e tangenciando outros pilares chave, como saneamento e moradia. Os Conselhos também podem ser descritos como pontos de articulação entre as entidades locais que promovem essas políticas (escolas, postos de saúde, CRAS, prefeitura – diversas de suas secretarias e órgãos locais, como subprefeituras e a Guarda Municipal), entre elas e a população local, entre as primeiras e os poderes Executivo e Judiciário, assim como entre as comunidades e os referidos poderes.
Dialogam de perto com o Ministério Público e a Defensoria, e até mesmo com as polícias, integrantes do Executivo estadual. Circunstancialmente, haverá sobreposições parciais, por exemplo, com o CRAS, o MP ou a Defensoria, quando atuam no território, o que é mais ou menos inevitável. Sobreposições não no campo das disposições normativas, mas na delimitação objetiva de atividades, sobretudo em situações de crise aguda, exigindo iniciativas emergenciais.
Pontos de articulação constituem objetos tradicionais dos estudos políticos, sociológicos e antropológicos, e são descritos e analisados de distintas perspectivas: sob o ângulo da atuação de lideranças comunitárias, dos elos burocráticos, dos processos de mediação, das dinâmicas institucionais, dos poderes locais, religiosos e políticos, de partidos políticos e da formação de clientela eleitoral, do controle social com bases territoriais, etc. Aqui, nosso foco se restringe a identificar o espectro de ações dos Conselhos Tutelares, destacando sua função estratégica para a promoção das políticas públicas axiais, sem descurar de eventuais efeitos perversos, derivados de sua intervenção, que ocorrem sobretudo quando um viés religioso e/ou punitivista se impõe.
A inteligência coletiva que gestou os CTs, no âmbito do ECA, visando – reitere-se – a provisão de meios que garantam os direitos de crianças e adolescentes, cumprindo, nesse aspecto, ditames da Constituição Federal, se manifestou no lúcido reconhecimento tácito das limitações dos arranjos institucionais, das políticas públicas e das legislações pertinentes, quaisquer que eles fossem. Limitações inscritas em toda estrutura formal, quando confrontadas com os desafios cambiantes e complexíssimos da prática e dos contextos reais. Ainda que a arquitetura institucional e que as determinações normativas oferecessem todos os guias imagináveis para a ação efetiva, expressando o que pudesse ser entendido como o modelo ideal, fundado na racionalidade e na experiência, aproximando metas e métodos de intervenção, ainda assim, a máquina multi-institucional concebida e programada encontraria, quando transposta, no cotidiano, para o mundo real, lapsos, incompletudes e contradições.
Especialmente, numa sociedade que nega, em seu dia a dia, o ideal estipulado pela Constituição (na verdade, uma utopia constitucional), cujas referências axiológicas são a equidade, a liberdade, a cooperação universal e a corresponsabilização solidária. Fiquemos no caso da educação: se a educação é direito universal e dever do Estado, em suas diferentes esferas, e se há o MP e a Defensoria, garantindo o cumprimento de tal obrigação e a fruição desse direito, e se a Justiça está pronta para funcionar como o estuário das demandas geradas pelos zeladores dos direitos (MP e Defensoria), Justiça que conta com o poder coercitivo das polícias, o que mais seria necessário? O legislador coletivo, com fina acuidade, percebeu que algo mais seria, sim, necessário, porque entre as instituições (com suas incumbências e linhas protocolares seja de provisão de bens públicos e serviços, como educação, seja de processamento de demandas e intervenções corretivas) e a sociedade, com sua variedade inumerável e imprevisível de contingências dramáticas, há um intervalo, um espaço vazio a ser preenchido pelo exercício da potência cidadã, ou a bloqueando, interceptando o fluxo virtuoso das políticas públicas, no ponto exato em que elas colidem com vivências humanas incontroláveis e incontornáveis. São fundamentais os agentes públicos próximos (pela capacidade de co-experimentar cada situação) e distantes (por suas atribuições e autoridade), os conselheiros e as conselheiras tutelares, para estabelecer ou desbloquear fluxos e redirecioná-los, escutando, interpretando, negociando, convocando atores e tecendo, no chão do cotidiano – na escala das singularidades e no domínio da prática –, as redes institucionais. Não se trata apenas de colocar em relação outros agentes e outras agências, não se trata, portanto, de simplesmente mediar, mas de fazê-lo no exercício – e como forma de efetivar esse exercício – da defesa de crianças e adolescentes, zelando por seus direitos, o que, na prática, implica acionar a corrente interinstitucional de responsabilidades.
Em outras palavras, as redes só existem no transcurso da vida, da vida que é coletiva, mas também individual, e a distinção entre o social e o particular pode corresponder a abismos, tão insuperáveis quanto aquele que, eventualmente, separa Estado e sociedade. Portanto, o que o Legislador fez foi admitir sua própria falibilidade, a finitude de seu cálculo e a precariedade de seu engenho. Dito de outro modo: foi reconhecer a potencialidade incontornável e irredutível (trágica ou emancipadora), geradora de singularidades, da vida humana. O papel de articuladores, promotores e defensores locais do ECA, preparados para ouvir e se debruçar sobre cada dilema, em suas especificidades, não corrige definitivamente deficiências, mas desvela para nós a insuficiência intrínseca das soluções formais e dos modelos ideais, e a insubstitutibilidade do processo, em seu sentido mais radicalmente democrático.
A virtude dos Conselhos Tutelares traz consigo riscos. Podem se converter em agências que não sejam percebidas como aliadas e protetoras, mas temidas como extensões desarmadas do poder repressivo do Estado. Riscos à intimidade, à privacidade, à incolumidade das unidades domésticas. Mas se não fosse assim, nossa própria hipótese se auto-anularia: se os CTs demonstram a sensibilidade do Legislador para a inevitabilidade do malogro sistêmico de qualquer arranjo institucional (o que de modo algum significa que todos sejam iguais, evidentemente, apenas indica a insuficiência até mesmo da melhor estrutura) e para a conveniência de incluir uma agência para lidar com o que o arranjo institucional não resolve, se é assim, deduz-se que tal agência não poderia ser definida como a solução. A insolubilidade intrínseca representa abertura ao processo, à política, em sua acepção mais ampla e nobre, isto é, à ação humana. Efeitos perversos tendem a ser suscitados pelas mais engenhosas tentativas de solução. Por isso, o circuito de sucessivos esforços criativos não cessa. Cumpre aos CTs reconhecer o problema e, com as populações locais, reabrir, sempre outra vez, o diálogo.
Considerando-se o que foi dito, cabe concluir com algumas indagações: os CTs têm sido adequadamente valorizados por prefeituras, entidades políticas democráticas, universidades, enfim, pela sociedade? Faz sentido correr atrás do leite derramado às vésperas dos processos de escolha, descobrindo-se, tardiamente, que não há uma política local para a formação de seus membros? Não seria extremamente perigoso deixar o espaço aberto, por negligência, para que projetos neofascistas o ocupassem e colonizassem? O tema não mereceria maior atenção, inclusive na universidade? A boa notícia é que o governo federal, recém-eleito, começa a assumir a iniciativa de promover o debate público sobre os processos de escolha dos CTs, atualmente em curso.
Ainda há tempo para se politizar, no sentido mais nobre da palavra, o processo de escolha dos Conselhos Tutelares deste ano, mesmo que a maioria dos municípios brasileiros já tenha encerrado o período de inscrições para candidaturas ao pleito de outubro. Ainda é possível promover debates, conhecer o perfil de candidatos e candidatas, identificar e valorizar as candidaturas laicas e progressistas, participar da campanha e ir às urnas praticar nosso dever cívico. Se, efetivamente, consideramos prioritária a defesa dos direitos de crianças e adolescentes, e reconhecemos a urgência do tema, devemos nos comprometer com o debate público sobre as candidaturas e ajudar a divulgá-lo.
[1] O referido projeto visava pesquisar e enfrentar o imenso problema da evasão escolar, no município do Rio de Janeiro, localizando crianças e adolescentes fora da escola e criando as condições para sua reintegração ao sistema escolar. As articuladoras realizavam o trabalho de campo.
[2] O trecho inicial do presente artigo (em que os nomes são fictícios para preservar as identidades e os locais) transcreve boa parte do capítulo “Nem a casa, nem a vida”, do livro Vidas Presentes, de Luiz Eduardo Soares (ACEA, 2017). Disponível em aqui. Na apresentação do referido livro, Natacha Costa e Eliana Sousa Silva, co-coordenadoras, em parceria com Miriam Krenzinger, afirmam: “(…) O projeto Aluno Presente, uma iniciativa da Associação Cidade Escola Aprendiz, foi realizado em parceria com a Secretaria Municipal de Educação. (…) Durante três anos, desenvolveu ações estratégicas, buscando garantir o direito de acesso à educação básica das crianças e dos adolescentes de 6 a 14 anos da cidade do Rio de Janeiro, atuando, principalmente, na identificação e localização daqueles que não estavam matriculados e na prevenção da infrequência e da evasão escolar. Por meio de metodologia inédita, o Aluno Presente localizou mais de 23 mil crianças e adolescentes fora da escola, organizando- se em diferentes escalas e heterogêneas linhas de atuação, abarcando desde o nível central de uma gestão intersetorial até a busca ativa e articulações em nível territorial. Com isso, conseguiu reconduzir às salas de aula cerca de 22 mil crianças e adolescentes. Organizado na forma de narrativas de alguns dos casos atendidos pelo projeto, este livro tem o propósito de dar visibilidade às estratégias usadas pelas articuladoras e articuladores locais no enfrentamento das múltiplas vulnerabilidades que levam crianças e adolescentes aos processos de exclusão, infrequência e evasão escolar na cidade do Rio de Janeiro.”
[3] Embora haja candidaturas e votações, devemos evitar falar em eleições. Mais correto é denominarmos o processo seletivo dos conselheiros e conselheiras como escolha pública. A preocupação e a cautela são pertinentes, porque se o processo fosse definido como eleitoral, teria de ser regido, em todos os detalhes, por legislação federal e pelo TSE, o que inibiria o protagonismo dos municípios.
[4] Fonte no link.
[5] Vale registrar os esforços de que somos tributários, entre os quais o livro Teoria e prática dos conselhos tutelares e conselhos dos direitos da criança e do adolescente. Caderno do aluno: orientações para o curso. / Bastos, Alda Maria Lessa (Org.)… [et al.] – Rio de Janeiro, RJ: Fundação Oswaldo Cruz; Educação a Distância da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, 2009. Com vistas a suprir as carências, estimular o debate, despertar o interesse e difundir dados e reflexões que lancem luz sobre esse campo institucional tão relevante quanto ignorado, funciona, desde 2022, na cidade do Rio de Janeiro, o primeiro Observatório dos Conselhos: Conselhos Tutelares e Conselhos dos Direitos da Criança e do/a Adolescente.
[6] Fonte no link.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Conselhos Tutelares: a urgência de trazê-los ao debate público para a democracia brasileira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU