11 Outubro 2019
No dia 06 de outubro de 2019 uma significativa parcela da sociedade brasileira se movimentou frente as eleições unificadas do Conselho Tutelar. Os vetores sociais que impulsionaram esse fenômeno foram múltiplos, mas aludem unilateralmente ao atual contexto político.
O artigo é de Luiz Felipe Lacerda, Psicólogo, doutor em Ciências Sociais, docente da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) e Secretário Executivo do Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida (OLMA).
As eleições que elegeram Bolsonaro a presidência da República e com ele uma numerosa bancada de deputados federais ligados ao PSL, acionaram o alerta vermelho nos setores políticos progressistas em todo o Brasil. Semanas após sua vitória eleitoral decorreram centenas de reuniões, encontros, seminários que promoveram inúmeras análises de conjuntura sobre o cenário político nacional. Tais análises confluem para a necessidade de setores progressistas e democráticos “voltarem as bases”, voltarem à micropolítica, a política do bairro, da cidade e reconquistarem capilaridade social.
Setores partidários e também representantes das comunidades de base da igreja católica perceberam que nos últimos anos foram relapsos com a disputa para conselheiros tutelares e subestimaram a importância deste espaço na conjuntura política nacional. Este vácuo participativo possibilitou, principalmente na última década, uma supremacia de representantes evangélicos nos Conselhos Tutelares por todo o Brasil.
Igrejas e partidos investiram pesado na campanha deste ano, criando sites, panfletos e anúncios pagos em redes sociais. A ofensiva preocupa entidades de defesa de direitos das crianças e adolescentes, que temem a transformação dos órgãos em instâncias religiosas e em trampolins políticos. Não é raro conselheiros tutelares posteriormente ao seu mandato, concorrerem a vereadores. São também conhecidos os casos de tendência ideológica fundamentalista por parte de alguns conselheiros evangélicos que, por exemplo, ao receberem denúncias priorizam aquelas vinculadas a sua igreja ou negligenciam aquelas oriundas de “padrões familiares não convencionais”, dentro de suas perspectivas religiosas.
Frente a isto, as bases militantes de tais setores progressistas, assim como da igreja católica, empenharam-se em mobilizar seus filiados em prol de tal campanha. As eleições foram disputadas basicamente por estas três correntes: Evangélicos buscando a manutenção de espaços já conquistados nos anos anteriores, progressistas e católicos buscando recuperar espaços perdidos na arena política e social.
O resultado foi surpreendente. Em diversas cidades brasileiras a participação na votação, que é facultativa, aumentou em torno de 100% frente aos últimos pleitos. Os efeitos de tal mobilização foram certeiros e em diferentes cidades como Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre entre os conselheiros mais votados, estão aqueles vinculados direta ou indiretamente a algum partido político.
Para agentes de articulação ligados a alguns partidos progressistas esta foi uma resposta direta a política de esvaziamento do Conselho Nacional da Criança e do Adolescente (CONANDA) protagonizada recentemente por Damares Alves, atual ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, publicamente vinculada a igreja evangélica. Para outros, tal reação pode representar o despertar das militâncias em busca da reconquista de espaços políticos importantes e mede, em algum grau, as capacidades de alianças, articulações e elegibilidade de possíveis candidatos nas eleições municipais de 2020.
Em Salvador houve um aumento de 50% no número de eleitores; em Porto Alegre o número aumentou 173,4% frente ao índice de votantes nas últimas eleições; as urnas de Fortaleza e Distrito Federal receberam mais de 130 mil votantes. Em Belo Horizonte registrou-se um aumento de 46% nas votações. Em Curitiba e em mais 14 cidades as eleições foram canceladas por suspeitas de fraudes e deverão ter novo pleito. Em Recife, assim como em outras cidades do Nordeste houveram problemas de estrutura como falta de células e urnas quebradas.
Em Porto Alegre, Rio de Janeiro e Brasília, os/as candidatos (as) mais votados(as) são declaradamente vinculados (as) a algum partido político. Na capital gaúcha, pela primeira vez nos últimos dez anos algumas regiões importantes, como o centro da cidade, ficaram sem representação evangélica no Conselho Tutelar e em São Paulo grupos progressistas ligados a partidos políticos elegeram mais da metade dos conselheiros (as).
Também foram altos os números das denúncias recebidas pelo Ministério Público em todos os Estados no tocante a irregularidades e fraudes nas eleições. A grande parte destas denúncias, de acordo com nossas pesquisas, referem-se a compra de votos, boca de urna e transporte irregular de pessoas. Mazelas que acompanham o histórico de todos os processos eleitorais no Brasil e em especial no contexto dos conselhos tutelares.
Mas será que esse interesse todo por parte da população tem a relação direta com o bem-estar das crianças e os adolescentes?
Criado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990, o Conselho Tutelar é um dos principais órgãos de democracia participativa no Brasil. Entre suas atribuições está a de notificar o Ministério Público sobre as violações de direitos de crianças e adolescentes, solicitar a troca de guarda familiar e fiscalizar as políticas públicas para menores. Em cada município brasileiro há pelo menos um conselho, composto por cinco membros eleitos.
No Brasil vivem mais de 200 milhões de pessoas, das quais mais de 57 milhões têm menos de 18 anos de idade (IBGE). Seis em cada 10 crianças e adolescentes brasileiros vivem em situação de pobreza e 49,7% deles enfrentam ao menos um tipo de privação de direitos básicos (saneamento, educação, informação, moradia e proteção contra o trabalho infantil). Das crianças e adolescentes de 4 a 17 anos 20,3% têm o direito à educação violado (Unicef).
O Brasil é o país com maior número de assassinatos de adolescentes no mundo e o homicídio é a sua primeira causa de morte. A cada dia, em média, 11 adolescentes entre 12 e 17 anos são assassinados. O país tem 2,4 milhões de crianças e adolescentes entre cinco e 17 anos trabalhando, desses 66,2% são negros e quase 50% vêm de famílias com renda inferior a um salário mínimo. Quase 44 mil sofreram acidentes de trabalho entre 2017 e 2018 e 260 morreram trabalhando neste período. Em 2018, foram feitas 17 mil denúncias de abuso e exploração sexual contra crianças e adolescentes. (Ministério da Saúde).
Mesmo frente a este cenário é evidente que a disputa pelos conselhos tutelares deste ano passou a margem dos interesses diretamente vinculados as crianças e adolescentes. Visivelmente o que está em jogo é a laicidade do Estado brasileiro e a conquista de espaços que ofertem maior poder político e eleitoral a estas diferentes correntes em disputa.
Os projetos de educação, de infância e de família entre setores progressistas e democráticos são antagônicos a posição das igrejas evangélicas. Temas polêmicos como aborto, métodos contraceptivos, gênero, concepções de família entre outros, estão postos como pano de fundo desta disputa.
Seja por motivações ideológicas ou políticas, uma análise aprofundada no perfil e nas redes sociais de boa parte dos eleitos afere pouca relação (explícita) destes com o campo da defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes. Sendo assim, para a reversão deste triste cenário nacional descrito acima, ou mesmo para a legitimidade dos eleitos, não bastará uma intensa campanha de sensibilização para que as pessoas cheguem até as urnas. Será necessário trabalho cotidiano, presença junto as comunidades, posicionamentos éticos aliados aos prescritos no ECA e na Constituição Federal.
Raros foram os casos onde encontramos entidades da sociedade civil convocando os candidatos para debates antes das eleições de 06 de outubro. Cabe agora a tais organizações chamarem os (as) eleitos (as) para um debate franco e aberto sobre suas concepções e planos de trabalho nos próximos quatro anos. Portanto, é hora de conhecermos e acompanharmos os novos conselheiros (as), assim como avaliarmos a repercussão destas escolhas nas próximas eleições municipais de 2020 e no impacto na garantia de direitos das crianças e adolescentes brasileiros.
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Conselhos tutelares: votamos, e agora?! - Instituto Humanitas Unisinos - IHU