22 Junho 2023
Desde o dia 24 de abril, familiares e lideranças ribeirinhas e indígenas procuram respostas para o desaparecimento do jovem Reinaldo Santana Magalhães, indígena Sateré-Mawé, na área do rio Urupadi, no município de Maués, no Amazonas. Visto pela última vez em uma região de exploração e retirada de madeira ilegal, na comunidade ribeirinha São Sebastião, margem direita do Urupadi, o jovem de 20 anos teria saído para caçar e não retornou. Maués fica no Baixo Rio Amazonas, na divisa com o Pará, e é onde está localizada a Terra Indígena Andirá Marau, que também abrange as cidades de Barreirinha e Parintins.
A reportagem é de Nicoly Ambrosio, publicada por Amazônia Real, 21-06-2023.
Segundo relatos de lideranças à reportagem da Amazônia Real em condição de anonimato, por medo se ameaças e perseguição, Reinaldo desapareceu na área onde se reivindica a criação de uma unidade de conservação de uso sustentável estadual, vizinha à comunidade Sagrado Coração de Jesus, também conhecida como Comunidade Flechal, na TI Andirá Marau, onde o jovem reside. As lideranças ribeirinhas e indígenas relatam que há invasão de madeireiros dentro da área e que os invasores se estabeleceram há aproximadamente três meses. Elas também acusam as autoridades policiais e de segurança pública de omissão diante do desaparecimento do indígena.
Desde a notícia do desaparecimento, os moradores de Sagrado Coração de Jesus tiveram que fazer por conta própria as buscas na mata em busca de vestígios que pudessem explicar o paradeiro de Reinaldo, pois tiveram pouco apoio do aparato de policiais e do Corpo de Bombeiros. A Amazônia Real apurou que um grupo de indígenas achou apenas a canoa e os pertences do jovem, depois de terem feito três buscas no local do desaparecimento. Desde então, não se teve mais notícias do rapaz.
“Não tem vestígio dele, não acharam mais nada e estão se passando quase dois meses e não temos respostas das autoridades do município, do estado e do país”, disse uma fonte que acompanha o caso de perto, mas prefere não ser identificada.
As testemunhas acreditam que o desaparecimento de Reinaldo tem a ver com as atividades de crimes ambientais na região. “Nunca havia acontecido um caso que nem esse de desaparecimento no nosso território, só quando chega essa madeireira fazendo esse tipo de trabalho ilegal”, afirmou uma liderança Sateré-Mawé.
De acordo com ofício cível, elaborado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e protocolado junto ao Ministério Público Federal (MPF) no dia 25 de maio, os moradores revelaram que os madeireiros atuavam com contratações informais de mão de obra indígena e ribeirinha, aliciando os trabalhadores com a promessa de dinheiro rápido. O pai de Reinaldo, Ronaldo Magalhães, foi um dos que aceitou o trabalho de escoar 150 toras de madeiras para a beira do rio Urupadi, segundo documento do CIMI.
Com a ajuda de três filhos, incluindo Reinaldo, Ronaldo não conseguiu concluir o serviço e foi hostilizado pelo encarregado. Foi então que, ao solicitar o pagamento pelo trabalho que já haviam feito, os trabalhadores foram acusados de roubar uma motosserra e 20 litros de gasolina. “A partir dali eles não conseguiram fazer aquilo que o patrão queria, então houve um desentendimento entre eles e o pai (Ronaldo) acabou voltando para a Terra Indígena Andirá-Marau. Uma semana depois, o Reinaldo saiu para caçar na área da Unidade de Conservação e não retornou até hoje”, explicou a liderança indígena à Amazônia Real.
As lideranças não sabem dizer quantos trabalhadores foram contratados pela madeireira, mas dizem que vários indígenas e ribeirinhos foram enganados pelos criminosos, em um sistema que, pela descrição, é caracterizado como trabalho análogo à escravidão. “Há um trabalho análogo à escravidão e muitos indígenas e ribeirinhos que trabalharam com eles recebiam apenas 50 reais pela diária. Muitos desses trabalhadores não receberam, sempre criavam confusão ou uma situação para não pagar os trabalhadores”, denunciou uma das lideranças.
Em nota enviada à reportagem, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) evidenciou que Reinaldo também atuava como voluntário na Barreira de Fiscalização Sanitária na entrada da TI Andirá Marau. Segundo o órgão, no local, bebidas alcoólicas e outras drogas foram apreendidas e depois destruídas pelos voluntários, “fato que pode constituir evidências sobre uma possível retaliação por parte dos comerciantes ilegais de bebidas alcoólicas e traficantes de drogas que atuam na região”, disse o órgão.
“Ele saiu para caçar e pode ter se perdido ou pode ter acontecido um acidente. Mas também pode ser uma retaliação ao trabalho que ele fazia na barreira sanitária”, disse o advogado e indígena do povo Sateré-Mawé, Tito Menezes, à reportagem.
Tito explica que a região do rio Marau é a área mais vulnerável na TI às atividades do narcotráfico e de madeireiros e que uma nota pública, elaborada em junho de 2020 pela Coordenação das Organizações e Povos Indígenas do Amazonas (Coipam), já denunciava as atividades de tráfico de drogas em Maués, especialmente a existência de uma plantação de maconha próximo a TI Andirá Marau, na altura do rio Urupadi.
No documento, o Coipam afirma que a equipe da barreira sanitária da TI foi ameaçada e desrespeitada por diversas vezes, inclusive com ameaças de morte a enfermeiros e ameaças de queimar embarcações onde profissionais se abrigavam naquela região.
“O trabalho da barreira sanitária na prática não trata somente orientação à saúde indígena, mas os voluntários atuam como agentes de segurança da TI, controlando o tráfego na região. Esse trabalho interfere nas atividades ilegais da região”, disse Tito.
No auge da pandemia, o Distrito Sanitário Especial Indígena de Parintins (Dsei Parintins) chegou a retirar as barreiras sanitárias do rio Marau. Na época, o órgão justificou a retirada por causa das ameaças do narcotráfico contra equipes de saúde que trabalhavam na barreira. “O Coipam denunciou ao MPF a retirada da barreira sanitária e abriu-se um procedimento lá, daí a barreira voltou por conta dos próprios parentes com apoio de outros órgãos”, explicou.
A Funai também informou que a Coordenação Regional da Funai em Manaus foi acionada pela Coordenação Técnica Local de Maués, que solicitou investigação policial da Polícia Federal sobre o caso.
Placa da autorização do Ipaam em sítio na área que está sendo reivindicada para ser uma unidade de conservação. (Foto: Cimi)
O ambiente é de tensão e ameaças em meio ao desaparecimento do jovem indígena. “As ameaças continuam e com o desaparecimento do Reinaldo pioraram. Inclusive, os familiares dele já foram intimidados por algumas pessoas que faziam parte da retirada ilegal de madeira, mas a gente não consegue encontrar uma solução porque tememos pela nossa vida”, denunciaram as lideranças.
Após 15 dias do desaparecimento do jovem, três lideranças que estavam à frente dos diálogos com os órgãos de segurança denunciaram que, ao frequentarem a praça central de Maués, foram fotografadas por homens de motocicleta, sem explicações ou identificações. Também houve uma ameaça implícita à irmã de um vigário paroquial que atua em defesa dos indígenas e ribeirinhos. Um homem a abordou e fez-lhe sinal de arma de fogo com as mãos.
“No município ficou um silêncio total. A família e nós que estamos acompanhando o caso de perto estamos bem assustados e temerosos pelas nossas vidas”, disse a liderança Sateré-Mawé.
As lideranças também relataram que, no dia seguinte à divulgação do desaparecimento de Reinaldo, os madeireiros fugiram à noite, deixando para trás madeiras empilhadas no local da extração. “Desceram a noite impedindo que os moradores pudessem filmar ou tirar foto”, relatou a liderança. Para elas, esse fato reforça a hipótese de que os madeireiros são os culpados pelo desaparecimento de Reinaldo.
“Os madeireiros se retiraram da região e há uma suspeita muito grande de que eles estão envolvidos nesse caso”, alegou outra liderança.
Segundo um ofício da Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Sema) que a Amazônia Real teve acesso, desde novembro de 2022 nenhuma autorização para manejo florestal deveria ser concedida pelo Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), também órgão do governo do Amazonas, nas áreas de uso tradicional dos povos tradicionais do rio Urupadi, onde se reivindica a criação da UC.
“Tem uma parte que está em processo de criação de uma UC para que os ribeirinhos possam ter acesso a essa localidade sem nenhum problema com as madeireiras. Mas elas não estavam respeitando, e estavam invadindo”, alegou uma liderança ribeirinha.
Mesmo com a recomendação da Sema, uma equipe do Cimi identificou ao menos uma placa de autorização para manejo florestal na região próxima de onde ocorria o desmatamento, emitida em fevereiro deste ano, pelo Ipaam. Grande parte da madeira extraída pelos madeireiros é Ipê, uma árvore protegida.
A placa, que autoriza a retirada de três mil metros cúbicos de madeira em tora dentro da área da UC requerida, fica próxima ao local do desaparecimento de Reinaldo. A licença concedida pelo órgão está em nome de Inacilene França Cordeiro Pereira.
“As próprias lideranças das comunidades foram até o local e questionaram os madeireiros. Eles falaram que estava tudo legal e despachado pelo Ipaam, e que Sema está de acordo, mas a gente tem certeza que isso é ilegal, por isso levamos toda essa situaçao para o MPF”, informou uma das lideranças.
A reportagem não conseguiu o contato de Inacilene França Cordeiro Pereira.
Reinaldo Santana Magalhães, jovem indígena Sateré-Mawé que está desaparecido.(Foto: Reprodução redes sociais | CIMI)
O desaparecimento de Reinaldo Santana Magalhães foi totalmente ignorado pelas autoridades locais, segundo afirmam as lideranças. Os familiares do rapaz fizeram dois Boletins de Ocorrência e relataram que, ao solicitarem que buscasse por Reinaldo, a Polícia Civil alegou não ter possibilidades logísticas de fazer isso.
Mesmo quando a comunidade ofereceu assumir os custos do combustível para que a equipe da Polícia Civil pudesse percorrer a área, o delegado alegou que haviam outras demandas “mais urgentes, prioritárias”, e não autorizou destacamento para as buscas. “Ficamos sem saber para onde apelar”, justificou uma das lideranças que acompanham o caso.
Após insistência das lideranças e familiares, o Corpo de Bombeiros fez um sobrevoo tímido na região e uma rápida busca terrestre. No entanto, as ações dos bombeiros duraram pouco e logo eles foram embora. O mesmo pedido foi feito à Polícia Federal, mas até agora nenhuma busca ou ação no local foi feita pelo órgão.
A Amazônia Real procurou as autoridades da Secretaria Estadual de Segurança Pública do Amazonas (SSP) e os agentes da Polícia Civil para responder sobre as ações feitas para o caso, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem. A Polícia Federal também foi procurada, mas não deu retorno.
O MPF limitou-se a responder, por e-mail, que o caso do desaparecimento de Reinaldo está tramitando em sigilo, motivo pelo qual o órgão não pode repassar informações. O Ipaam também não respondeu.
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Jovem indígena Sateré-Mawé está desaparecido em área de conflito ambiental há quase dois meses - Instituto Humanitas Unisinos - IHU