16 Mai 2023
A centralidade da literatura e a função cultural do escritor encontram na religião, pelo menos na religião católica, um aliado, e não um adversário: esse é o espírito com que se constrói um dos encontros do Salone, que se intitula E vós, quem dizeis que eu sou? que inaugura um formato com o qual o Dicastério para a Cultura e a Educação do Vaticano, com seu prefeito, o cardeal português José Tolentino Mendonça, entende abrir um projeto que será um "espaço de contato" com os escritores e com o mundo literário em geral, seja crente ou não crente.
O encontro será no sábado, dia 20 (19h30), com o cardeal Tolentino Mendonça, que abrirá o diálogo entre o duas vezes ganhador do Prêmio Strega Sandro Veronesi e o escritor e jornalista Antonio Spadaro, diretor de “La Civiltà Cattolica”. Um diálogo em sentido estrito, pois a frase que dá título ao evento é a pergunta de Cristo aos Apóstolos no Evangelho de Lucas: "E vós, quem dizeis que eu sou?". Uma forma de introduzir uma troca de opiniões e convicções num plano de igualdade, ou melhor, numa atitude de escuta mútua.
Mendonça apresentará também no Salone o seu novo ensaio em outro encontro (também no sábado dia 20, mas à 17h), dedicado a Paulo de Tarso, estudado e narrado, porém, na sua dimensão de escritor, e como escritor em crescimento, capaz de se melhorar, refinar o estilo narrativo, cruzar línguas e culturas diferentes - o mundo judaico, romano e grego - para difundir a palavra da fé em forma escrita.
É o próprio cardeal, contatado por "Lettura", quem explica o significado da "abertura" à literatura por parte da Igreja no sinal da pergunta de Jesus, e quem ilustra também a relevância para a recuperação da figura de Paulo como escritor.
A entrevista com Tolentino Mendonça é de Ida Bozzi, publicada por La Lettura, 14-05-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis a entrevista.
O que significa a pergunta de Jesus que dá título ao projeto? É uma pergunta sobre a divindade, sobre o sentido de ser, sobre a relação com o outro?
É curioso, na tradição sapiencial eram os discípulos que questionavam o Mestre e não o contrário. No caso de Jesus encontramos ambas as situações. Muitas vezes os discípulos pedem um esclarecimento a Jesus, mas também acontece que é Jesus quem toma a iniciativa. Esse fato manifesta a intensidade da relação que ele deseja estabelecer: Jesus não se vê numa relação puramente unívoca, mas circular.
Não pretende uma relação escolar, mas de partilha aberta e franca de vida, ainda que feita mais de balbucios e incompletudes que de perfeitas afirmações doutrinárias. Claro, ele não espera respostas formatadas, mas respostas que ‘se arriscam’ a ir além, a sondar o mistério profundo que se esconde numa identidade. Infelizmente, Jesus é colocado por nós cristãos com demasiada rapidez do lado das respostas. Mas Jesus continua a ser uma pergunta.
Por que fazer essa pergunta justamente aos escritores? E por que agora?
O Papa Francisco nos inspirou, não se contenta que o poder da linguagem evangélica seja domesticado em algodão-doce, repetido de forma mecânica e desgastada, incapaz de generatividade, de futuro e de poesia. Tomamos seu apelo literalmente, porque neste momento de crise, em que assistimos à hegemonia de grandes polarizações e paradigmas rígidos, se possa reencontrar ‘uma nova linguagem, de histórias e imagens poderosas’ capazes de ‘nos fazer ver Jesus’.
Começando por esse desafio de Francisco, não é de estranhar que queiramos ouvir os escritores. E queremos fazê-lo não nas catedrais, mas nas praças. Nossa ideia é propor essa experiência de encontro justamente naqueles eventos em que o livro e os escritores são protagonistas: as feiras e os festivais, em nível internacional. Naturalmente, serão encontros abertos a todos, capazes de refletir também a pluralidade de visões e a diversidade das vozes.
Até a figura de Paulo de Tarso, a quem dedicou o seu livro, assume importância como escritor?
Paulo é o primeiro escritor do cristianismo, é o primeiro a escrever sobre o advento de Jesus e sobre seu impacto na existência dos cristãos, no destino do homem. Lendo o epistolário paulino, vemos que Paulo tem sua oficina de escritor, que cresce como escritor: suas cartas são escritas ao longo de um período de cerca de 15 anos, e vemos como entre a primeira carta, aos Tessalonicenses, e a última, aos Romanos, Paulo descobriu uma forma de escrita, um modo de contar, de se envolver com a palavra: aquele que escreve, como dizia Giovanni Papini, não só com a tinta, mas com as entranhas.
Certamente, portanto, Paulo também é uma inspiração para os escritores contemporâneos, pois mostra como a escrita se torna um lugar de destino, uma forma de aprofundamento da realidade, uma forma de pensar sobre si e sobre o mundo contemporâneo. Além disso, ele teve a audácia de traduzir a mensagem de Jesus em novas categorias culturais, realizou uma operação altamente arriscada, que é passar não só de uma língua a outra, mas também de um mundo, de uma visão de vida a outra: uma coisa é o mundo bíblico judaico, outra é o mundo grego com o qual Paulo dialoga.
Os escritores a quem se dirige o projeto são crentes ou não crentes?
Deus é uma pergunta para todos: crentes e não crentes. Não se trata de um confronto, mas de partilhar o que é a busca, a amplitude dos questionamentos que nos habitam, a sua profundidade, o seu esforço, silêncio. O projeto não é um debate no campo moral ou doutrinário, mas sim o de voltar à figura de Jesus e nos perguntarmos juntos como contá-lo em versões que sejam relevantes, ainda que diferentes.
A inclusão, antes de tudo, a contemplamos no próprio Jesus e na sua capacidade de ultrapassar fronteiras e permitir os encontros mais improváveis. O Evangelho é uma escola de inclusão e de escuta. O foco é contar como a vida singular de Jesus entra na nossa. E todos têm, talvez, algo a testemunhar. Estou pensando, por exemplo, num escritor que conheci, José Saramago. Proclamava-se ateu, mas nele e na sua escrita o fascínio pela pessoa de Jesus era algo irresistível.
É uma atitude que requer apenas escuta? O que é um "diálogo" num tempo de brigas e conflitos, quando não mesmo guerras?
Em sua encíclica Fratelli tutti, Francisco define o diálogo com um conjunto de verbos sinônimos: aproximar-se, expressar-se, escutar-se, olhar-se, conhecer-se, tentar se compreender, procurar pontos de contato. O verdadeiro diálogo é paciente, corajoso, sem manipulação. É um artesanato, uma tecelagem coletiva. Todos nós temos a capacidade de dar e receber, permanecendo abertos à verdade. E a verdade não é algo que possuímos, mas pelo qual somos todos possuídos. Visto dessa forma, o diálogo não é uma queda no relativismo fácil ou no enfraquecimento das convicções. É possível associar identidade e diálogo. É lindo que na encíclica Francisco cite um poeta brasileiro, Vinicius de Moraes, que afirmava: "A vida é a arte do encontro".
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A Igreja e os romancistas nas pegadas de São Paulo. Entrevista com José Tolentino Mendonça - Instituto Humanitas Unisinos - IHU