15 Mai 2023
O exegeta Daniel Marguerat acredita que os cristãos tirariam proveito da leitura de São Paulo, porque sua visão da identidade cristã é surpreendentemente moderna.
A entrevista com Daniel Marguerat é editada por Christel Juquois, publicada por La Croix, 21-04-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Você está apresentando no Festival do Livro de Paris um novo livro sobre São Paulo (Paul de Tarse: l’enfant terrible du christianisme). O que há para dizer novamente sobre esse tema?
A maioria das obras publicadas sobre Paulo atualmente são biografias do apóstolo, escritas por historiadores que tentam reconstruir a sua vida, ou análises teológicas do seu pensamento. Eu quis misturar as duas abordagens, convencido de que o pensamento nasce e se alimenta da vida. Um teólogo, quando escreve, é uma pessoa que vive, sofre, tem sentimentos, quer defender um ponto de vista...
Paul de Tarse: l'enfant terrible du christianisme
Inserir o pensamento de Paulo na sua história me permite prestar conta de sua humanidade: o homem por trás do texto, enfim. Além disso, tento decifrar o enigma de um pensamento que se movimenta, muda, às vezes se contradiz. Alguns teólogos sustentam que o apóstolo carece de coerência e se limita a reagir aos contextos e aos conflitos em que está empenhado. Estou convencido do contrário. Mas aquele grande apóstolo não transmite um catecismo atemporal. A sua palavra dirige-se sempre a uma comunidade e responde a uma problemática que se pode identificar.
Pode-se dizer que Paulo é o fundador do cristianismo?
Ele nunca se apresentou como tal. Ele concebe a sua palavra como um Evangelho cujo fundamento é Cristo. Mas é um pioneiro. Antes dele, nas décadas de 40 e 50, o Evangelho era pregado na sinagoga. Paulo é o primeiro a levar adiante de maneira sistemática uma missão cristã dirigida também aos não judeus, sem que estes tenham de se integrar no judaísmo.
Por outro lado, deve enfrentar problemas sem precedentes, como mostra em particular a Primeira Carta aos Coríntios. Jesus não escreveu nada, nem pensou a organização de uma comunidade depois de si mesmo. Ele vivia como nômade acompanhado por um grupo de discípulos, antes de ser condenado à morte. Depois dele, tudo teve que ser inventado. Paulo se dirige aos greco-romanos que se perguntam como viver sua nova fé no dia a dia, se podem compartilhar uma refeição com seus vizinhos pagãos, se devem praticar o ritualismo judaico, se as mulheres podem ter um papel no culto... São todas perguntas que Jesus não levantou diretamente, mas que Paulo teve que responder. Portanto, não é um fundador, porque remete continuamente a Jesus, mas é um pioneiro.
Digamos claramente: a identidade do cristianismo não seria aquela que é sem ele. Ele foi o primeiro a reformular a palavra de Jesus na cultura do mundo romano, abrindo o cristianismo à universalidade. Ele realizou um impressionante trabalho de criação e inovação.
A ponto de alguns o censurarem de ter traído Jesus...
Sim, muitas vezes foi dito que Jesus era um homem simples que falava para os camponeses e os pescadores, contando parábolas, proclamando um Deus bom... Paulo teria chegado para confundir tudo com uma teologia abstrata, complicada e culpabilizante. Na realidade, Paulo foi fiel a Jesus, interpretando suas afirmações em uma cultura diferente e em condições diferentes. Portanto, foi seu intérprete, talvez o melhor.
Sua atitude em relação às mulheres, por exemplo, prova isso. No judaísmo da época, a educação religiosa era estritamente reservada aos homens. Jesus transgrediu as convenções sociais e religiosas ao aceitar mulheres em seu grupo de discípulos. Da mesma forma, Paulo cria comunidades de homens e mulheres com igualdade de direitos, responsabilidades e vocações. Com o batismo, os crentes se tornam irmãos e irmãs. As mulheres oram e profetizam nessas comunidades (1Co1 1). Essa mistura é de uma originalidade absoluta no mundo antigo. Infelizmente, depois de Paulo, isso desaparecerá pouco a pouco e as mulheres serão afastadas de certas funções ministeriais. Essa situação continuará... até os nossos dias.
É a imagem que os cristãos de hoje conservam de Paulo?
Paulo é o apóstolo mais difamado de todo o Novo Testamento. Os crentes hoje dirão que suas epístolas são incompreensíveis, que é doutrinário, colérico, antifeminista e antijudaico... No meu livro, tento prestar-lhe justiça sobre todos esses pontos. É totalmente errado, ficará claro, defini-lo como antifeminista. As epístolas que mandam as mulheres para casa (Colossenses, Efésios, as cartas pastorais) fazem parte de sua herança, mas não são dele. Durante os dois primeiros séculos, o seu pensamento foi desenvolvido e amplificado pelos seus discípulos, às vezes até traído, ou pelo menos fortemente distorcido.
Apóstolo Paulo. (Foto: Rijksmuseum | Domínio Público)
Convido os pastores e os padres a trabalhar para corrigir a imagem negativa do apóstolo e, sobretudo, a atualizar seu pensamento para mostrar sua modernidade.
Alguns cristãos dizem que gostariam de redescobrir o fervor das pequenas comunidades paulinas.
É uma utopia?
Quando se leem atentamente as duas epístolas aos Coríntios, aquelas que nos informam mais concretamente sobre a vida daquelas comunidades, percebe-se que na realidade eram agitadas por numerosas tensões. Mas Paulo mostra-lhes o caminho para enfrentá-las e vencê-las. Cada vez que se encontra diante de uma crise nascida do choque de posições antagônicas, não toma posicionamento por uns contra os outros, mas lembra tanto a uns quanto aos outros sobre a identidade que receberam de Deus e que lhes confere igual valor.
A partir disso, incita-os a considerar o problema de maneira diferente e a aceitar as diferenças. Um bom modelo de gestão de conflitos, não é? Afinal, Paulo não estava tentando aumentar o fervor. O que ele queria fazer entender era como se constrói a identidade crente. Sobre esse ponto, é decididamente moderno.
Moderno, por quais razões?
Porque afirma que o homem e a mulher, se confiarem em Deus, são acolhidos incondicionalmente. E o que é chamado de “justificação pela fé”. Paulo não tentou tornar as pessoas mais religiosas. Ele veio para dizer: “Pelo vosso batismo recebestes uma identidade que mudou o vosso relacionamento com Deus, com vós mesmos e com os outros”. Essa nova identidade exige que, na comunidade crentes, considerem-se os outros como irmãos e irmãs de igual valor e status, admitidos, acolhidos e valorizados por Deus independente de sua origem.
Essa igualdade de valor e de status, essa rejeição de toda discriminação social constituem o seu modelo de Igreja... um modelo que hoje a cristandade se recusa a implementar. De fato, claro, esse reconhecimento recíproco cria tensões: como pode um homem que despreza as mulheres ou um senhor que despreza os escravos mudar da noite para o dia porque é batizado e participa da eucaristia? No entanto, segundo Paulo, é o que ele é chamado a fazer na comunidade.
Após a morte do apóstolo, esse modelo foi aos poucos desaparecendo porque estava em total contradição com o funcionamento da sociedade. No entanto, é vocação da Igreja constituir o que Paulo chama de "o corpo de Cristo" (1Cor 12), do qual cada membro é indispensável ao todo. Não há nada mais inovador, mais promissor, mais moderno do que essa ideia.
O que você acha que Paulo diria aos cristãos hoje?
Acho que ele manifestaria espanto e indignação diante das divisões do cristianismo. Acredito também que ficaria muito aflito ao constatar a pobreza da vida comunitária dos cristãos.
Porque, para ele, é através da vida comunitária que se manifesta a nova identidade recebida com o batismo. Ele censuraria os crentes por negligenciarem o que Deus fez deles com o batismo, por viverem sob sua identidade, por aceitarem as discriminações ditadas pela sociedade.
O cristianismo, hoje, me parece cansado, para não dizer derrotista. A leitura de Paulo é estimulante. Ele é um autor criativo, tem grandes expectativas em relação ao cristianismo. Se a cristandade deseja revitalizar a sua cultura, seria bom ler e reler as suas epístolas. A visão de Paulo sobre a identidade cristã é o nosso futuro, não o nosso passado.
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Daniel Marguerat é pastor da Igreja Reformada, estudou em Lausanne, Suíça, onde nasceu em 1943, e em Göttingen, Alemanha. Ele ensinou o Novo Testamento na Universidade de Lausanne, especializando-se em particular no Jesus histórico, no Apóstolo Paulo e nos Atos dos Apóstolos. Ele fez uma profunda pesquisa sobre esses três temas e publicou vários livros. Formado inicialmente em análise histórico-crítica dos textos, descobre a análise narrativa e a análise retórica nos Estados Unidos. Hoje ele tenta conjugar os diferentes tipos de leitura para prestar melhor justiça aos textos. Entre seus últimos livros estão Jésus et Matthieu: a la recherche du Jésus de l’histoire (Labor et Fides, 2016), L’historien de Dieu: Luc et les Actes des Apotres (Labor et Fides, 2018), Vie et destin de Jésus de Nazareth (Seuil, 2019) e Paul de Tarse: l’enfant terrible du christianisme (Seuil, 2023).
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São Paulo, o futuro do cristianismo. Entrevista com Daniel Marguerat - Instituto Humanitas Unisinos - IHU