18 Março 2023
Secretário das Periferias planeja integrar movimentos sociais ao orçamento público para lidar com as mudanças climáticas.
Cria do Grajaú, periferia do extremo sul de São Paulo, Guilherme Simões, 38, é professor, educador popular e militante do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) há 18 anos. Ele viu com os próprios olhos como as desigualdades sociais recaem sobre determinados CEPs. “Sempre me deparei com o sofrimento que é a gente viver na periferia sem assistência, sem política pública. Com o estado vindo só para nos violentar e nos reprimir”, disse em entrevista à Agência Pública, na tarde desta segunda-feira (13).
A reportagem é de Raphaela Ribeiro, publicada por Agência Pública, 15-03-2023.
Essas disparidades serviram de combustível para Simões, que transformou a indignação em trabalho árduo na luta por moradia digna e mais direitos às periferias. Há alguns anos, ele se dedica a organizar a nacionalização do MTST, o que permitiu que conhecesse boa parte do território periférico brasileiro.
Agora, ele enfrenta um novo desafio: coordenar a Secretaria Nacional de Políticas para Territórios Periféricos, pasta sob chefia do Ministério das Cidades. Uma novidade do governo Lula, a secretaria tem como atribuições reduzir as desigualdades sociais e articular soluções para a urbanização de favelas e combate aos desastres de origem climática, através da interlocução com governos municipais, estaduais e movimentos sociais das periferias de todo o Brasil.
Para Simões, a pasta é uma oportunidade de reconstrução do Brasil e de retomada de políticas públicas de reparação. (Foto: JoEdson Alves | Agência Brasil)
Com um orçamento limitado de apenas R$ 500 milhões, a pasta pretende apoiar ainda este ano governos locais na formulação e implementação de planos de mitigação das mudanças climáticas, de forma a ajudar a prevenir desastres como o que vimos em São Sebastião, litoral norte de São Paulo. Além de destinar orçamento para a execução de obras de prevenção de enchentes e deslizamentos.
Outra meta é integrar o conhecimento produzido nas periferias à política pública, fornecendo meios para que os movimentos sociais e agentes locais coloquem em prática suas próprias soluções frente às mudanças do clima.
Para pôr em prática essas metas, a secretaria vai iniciar agora em abril a Caravana das Periferias, um movimento para reconhecer, identificar e mapear as iniciativas periféricas e integrá-las ao centro da discussão e construção de políticas públicas. Segundo o secretário, nos últimos anos as periferias se colocaram como protagonistas da política e agora estão entrando “pela porta da frente no processo de reconstrução do Brasil”, desta vez, “sob a ótica dos movimentos populares, da periferia, das mulheres e da negritude”. Com isso, Simões quer poder apontar para dentro do governo, em diálogo com outros ministérios e setores, quais áreas, projetos e territórios precisam de investimentos.
Você é cria do Grajaú, periferia no extremo sul de São Paulo, que já até chegou a ser eleito o pior distrito para viver na cidade. Isso influenciou a sua entrada lá em 2005 no MTST? Como foi sua aproximação com o movimento, o que te levou a ele?
Sou nascido e criado no Grajaú, desde sempre me deparei com o sofrimento que é a gente viver na periferia sem assistência, sem política pública. Com o estado vindo só para nos violentar e nos reprimir e desde cedo isso foi uma questão pra mim de muita indignação.
Eu conheci o MTST lá em Taboão da Serra, em São Paulo também. É uma região onde eu tenho família, eu fui em um fim de semana visitar minha família e conheci uma ocupação e a partir dali eu comecei a me dedicar a auxiliar o movimento, a contribuir com as tarefas mais ordinárias e acabei ficando. E desde 2005 eu cumpri várias tarefas diferentes. Ultimamente eu tinha a atribuição de ajudar a organizar a nacionalização do movimento. Rodei bastante, consegui ter o privilégio de conhecer uma parte expressiva do nosso território periférico. Acabei me formando professor de sociologia nessa caminhada, isso também ajudou a apurar um pouco uma visão mais crítica, canalizar um pouco essa indignação da experiência de vida.
Como é sair desse lugar de movimento social, ainda mais o MTST que sofreu e ainda sofre com a criminalização da sociedade, para ocupar um lugar como Brasília?
É um desafio. A gente discutiu muito internamente no movimento o quanto isso era um desafio e ao mesmo tempo o quanto era necessário. A gente está diante de uma oportunidade histórica de reconstrução do nosso país, de retomada de políticas públicas inclusivas, de política de reparação. E a gente não tem muita opção, seria muito prejudicial a gente dizer “não quero, não vou fazer parte”… Nós estamos diante da oportunidade de ajudar a reconstruir o país sob a ótica dos movimentos populares, da periferia, das mulheres, da negritude. Eu vejo isso como, claro, um desafio muito complexo, porque não é fácil, mas sobretudo como uma oportunidade.
A diferença de ambiente, sair da periferia onde a gente tem um tipo de vida, um tipo de sociabilidade e vir pra Brasília, no escritório, reunião, terno, gravata, essa coisa toda, é óbvio que tem um estranhamento, né? Mas isso fica em segundo plano diante desse desafio e dessa oportunidade.
Mulheres, pessoas pretas, pobres e periféricas são as mais afetadas pelas mudanças climáticas. (Foto: Rovena Rosa | Agência Brasil)
Você se sente bem recebido nesse espaço? É uma grande responsabilidade ser um dos representantes das periferias, que são tão diversas e têm problemas tão diversos, porque quando a gente fala em periferia às vezes a gente tem a ideia de que é a mesma coisa e não é, tem modos de organização diferentes, demandas diferentes…
A gente tem que falar nas periferias, no mínimo. É uma diversidade muito grande, uma diferença muito grande. Mas tentando, digamos assim, resumir essa complexidade nesse termo, elas se impuseram historicamente. Nos últimos anos as periferias se colocaram como protagonistas da política. Se não fossem os territórios periféricos organizados, os coletivos, os movimentos sociais, a gente não teria vencido o fascismo nesse país.
Nós entramos pela porta da frente no processo de reconstrução do Brasil. É óbvio que no ambiente eu sinto um olhar ou outro, mas isso pra mim é também muito secundário. Eu acho que até o presente momento nós estamos muito legitimados por um projeto e por um presidente que está nos oferecendo esse espaço e essa oportunidade. O que eu tento fazer é me sentir acolhido pelos territórios periféricos, por esses entes, por esses movimentos, por esses coletivos. Pra mim é muito mais importante ser bem visto pelas periferias do que pelo burocrata A ou B, pelo engravatado. Não é pra ele que eu estou trabalhando, entende? Então eu quero é legitimar a minha atuação como secretário, legitimar esse espaço como Secretaria de Periferias, pra ser uma das representações dessa complexidade imensa. Quero dialogar com o nosso povo, deixar a porta aberta para os movimentos, para os coletivos, pra gente construir junto uma trajetória. O restante, o nariz empinado de um ou outro, pra mim não tem nenhuma diferença.
Como você pretende atender as demandas dos movimentos sociais e incorporá-las na política institucional?
O primeiro passo é mostrar que o olhar é diferente, mostrar que a gente conseguiu vencer a barbárie, a irracionalidade, e que esse é um governo que quer se reconciliar com o seu povo. Já do ponto de vista da secretaria, nós temos algumas atribuições que nos permitem de alguma forma agir em relação a isso. Nós já iniciamos o processo aqui que é a Caravana das Periferias. Vamos fazer o lançamento oficial da caravana agora em abril e estamos trabalhando incansavelmente para organizar isso. Mas o que é isso? Qual é a ideia? É ir até os territórios e dialogar com essas experiências territoriais que estão há muito tempo construindo o que eu tô chamando de economia da sobrevivência. As periferias que estão dando solução para o problema do abandono estatal histórico e estrutural do nosso país. A ideia é ir até esses lugares, reconhecer, identificar e mapear. Reconhecer não simplesmente com tapinha nas costas, mas como você falou, integrar isso à política pública.
A ideia é usar esse ano para fazer essa cartografia, esse grande mapeamento, e fazer o que a gente tem chamado internamente de mapa de ausências e de potências. Historicamente a periferia é vista como carência e de fato ela tem muita coisa de carência, mas ela também tem uma dinâmica, uma vida muito grande e uma potencialidade enorme. A ideia é que a gente consiga fazer esse mapa e apontar para dentro do governo, ou seja, em diálogo com outros ministérios e outros setores aqui dentro, o quão importante é investir, o quão importante é pensar a política pública em consonância com o povo das periferias e integrar essas experiências já existentes a um programa. Mostrar, por exemplo, o que pode ser feito com uma parcela do PAC, que tá pra ser lançado, em consonância com a vivência, com a experiência periférica. Nós estamos falando de um grande investimento público direcionado pelos agentes coletivos organizados nas periferias. Acho que isso é um exemplo, é uma das coisas que a gente quer construir. Vai ser um grande desafio. O estado precisa reconhecer isso, precisa integrar isso às suas políticas e ao seu orçamento, que é o mais importante de tudo.
Já há estudos apontando que territórios periféricos, pessoas pretas e mulheres, são as mais afetadas pelas mudanças climáticas e pelos desastres ambientais. Há planos para criar políticas específicas e destinar investimentos a partir dessa vulnerabilidade e desigualdade?
Sem dúvida. A partir do momento que você direciona a política, que você prioriza os territórios periféricos na concepção da política pública, você vai empoderar a execução da política pública na interlocução com o movimento social, com o agente coletivo. Quem é esse agente coletivo? Nós estamos falando em geral de mulheres, mulheres negras e muitas vezes jovens, né? Que lideram e são referências e que, portanto, tem essa concepção acumulada. É disso que eu tô falando quando eu digo que a gente precisa reconhecer o que já está sendo feito. O que está sendo feito nas periferias do Brasil, está sendo feito pela população negra, periférica, e em regra mulheres. É lá que está sendo feito o debate do racismo ambiental, por exemplo. Que está sendo feito o debate do combate à fome. Que está sendo feito o debate da sustentabilidade. Quando a gente deixa de ser formal na discussão, são os movimentos, as entidades, os agentes coletivos que vão também ajudar a executar a política. Porque são esses movimentos, esses agentes coletivos que têm puxado esse debate, tem chamado a atenção da sociedade para o dilema do que é ser mulher, ser mulher negra, ser mãe solo, por exemplo, em territórios periféricos.
Nós temos nas periferias atores e movimentos que se articulam sozinhos para enfrentar os efeitos das mudanças climáticas e se proteger de futuros desastres. É o caso, por exemplo, dos moradores da Vila Alabama, região do Itaim Paulista, extremo leste de São Paulo, que instalaram em 2020 por conta própria sirenes para avisar os moradores do transbordamento do córrego Itaim em decorrência das chuvas fortes. É possível unir o pensamento urbanístico à vivência das periferias na criação de ações, programas e políticas voltadas aos territórios marginalizados? Como valorizar os saberes periféricos?
Eu tenho a impressão de que nós precisamos de um planejamento de um programa urbanístico para o Brasil que leve em consideração a economia da sobrevivência. O que eu estou chamando de economia de sobrevivência é justamente isso que você falou: soluções na ausência do estado, o que a coletividade organiza. Então eu tenho essa convicção aqui na secretaria de que um novo programa de urbanização, como a retomada por exemplo do PAC das favelas, precisa passar pela economia da sobrevivência. Isso significa abrir espaços para a participação social para além da formalidade da participação de ter uma pessoa que assina o papel. Estou falando da concepção de políticas e também da execução de políticas. Tem vários exemplos, você acabou de dar um de movimento social que está fazendo a coisa, não é que eles estão “olha tem uma ideia aqui”, não, eles estão fazendo as coisas. E o Estado precisa reconhecer e estimular. E isso só se faz com orçamento. É óbvio. Precisa ser feito dentro do marco da legalidade, dentro de um arcabouço de critérios, não é oba oba. É chegado o momento do estado brasileiro pagar a conta que tem com seu povo. Para fazer isso, precisa contar com quem está organizado, com os territórios periféricos e os agentes coletivos.
O recurso financeiro disponível atualmente (R$500 milhões) é suficiente para a formulação e implementação das ações emergenciais e políticas de médio e longo prazo? Como a pasta vai priorizar o que deve ser feito? Quais os critérios?
Esse orçamento, para as atribuições que nós temos aqui, é claramente insuficiente. Ele vai atender alguns municípios – ainda estamos estabelecendo o rol de critérios aqui – voltado para a questão do risco de desastre com o objetivo de salvar vidas. Esse é o desafio inicial. Junto com isso, nós temos que construir um processo de mobilização social, de participação efetiva e de um planejamento de um programa urbanístico que seja mais totalizante. Aí esse sim demanda um orçamento maior pra gente conseguir realizar essas intervenções e integrar as iniciativas existentes nas periferias às políticas públicas.
Fora o baixo orçamento federal, que sofreu cortes nos últimos anos, ainda temos o baixo orçamento a nível estadual. São Paulo, por exemplo, ao longo dos últimos 11 anos, utilizou valores muito abaixo dos aprovados para combater enchentes e deslizamentos. Como lidar com isso?
Nós queremos estimular os governos locais a construir planos municipais e estaduais de prevenção de desastres. Isso é possível, não é um custo altíssimo. O plano te permite… Sabe aquele momento que você tem tanta coisa pra fazer e você não sabe por onde começar? O plano de prevenção te permite saber por onde começar. Eu não posso dizer porque o município ou o estado não gastam todo o recurso disponível. Eu acho lamentável. Mas eu tenho a ligeira impressão de que falta um processo de planejamento a nível nacional do que as prefeituras e os governos estaduais podem fazer. A nossa ideia aqui é justamente estimular, né? Provocar no bom sentido os governos para que construam esse planejamento, construam esse debate de transição climática, a discussão de soluções ambientais sustentáveis. Isso é uma atribuição nossa, já estamos produzindo materiais em relação a isso, já estamos produzindo conversa. Estamos em processo de articulação também para que se transmita essa orientação geral dos planos. Temos também a possibilidade de ter uma destinação orçamentária para esses planos, especialmente nesses municípios onde a situação é mais grave. Esse é o primeiro passo na visão da nossa equipe técnica. Agora precisamos iniciar com o plano, a prefeitura tendo o plano depois ela consegue otimizar o orçamento, ela consegue ver onde vai gastar. Porque se você não tem plano, às vezes você gasta no território A e é o território B que demanda um investimento maior, ele que tem mais risco de desastres, por exemplo.
Como você acha que vai se dar a articulação com governos estaduais e municipais contrários ao governo federal?
O presidente Lula tem sido um exemplo para todo mundo nesse sentido. Ele tem dito em várias falas que não liga para o partido do prefeito, do governador, ele quer é retomar obras, ele quer reconstruir o país. Então eu absorvo essa orientação, esse exemplo do presidente. Nós vamos dialogar com eles, vamos soltar uma seleçãozinha para contratar obras nesses municípios, independente da base do governo. Aí vai ficar evidentemente a critério desses governantes locais. Eu tendo a achar que o presidente Lula tá criando uma atmosfera que essa polarização, esse clima de ódio, está ficando bem pra trás. Na maioria dos casos ele [governante] é pragmático, ele quer saber o que pode vir de orçamento, que obra que pode vir. Então se ele ficar se perdendo nesse debate, “ah o Lula”, “ah o Bolsonaro”, ele perde tempo também, e ele é cobrado também pela sua população. Particularmente, da nossa parte aqui, nós vamos seguir esse exemplo do presidente Lula e não vamos fazer seleção partidária de absolutamente nada.
Sobre essa articulação com governos municipais e estaduais para ajudar na formulação dos planos de mitigação das mudanças climáticas, tem uma previsão? É para esse ano, é a longo prazo…
Esse estímulo aos planos é uma orientação geral e também nós estamos criando procedimentos internos de criação de uma ação orçamentária. Tem toda uma movimentação burocrática para colocar isso em pé, mas isso não é uma coisa de outro mundo não. Acabamos de fazer uma reunião de equipe aqui justamente pautando isso, isso deve sair esse ano ainda sim. Também priorizando os municípios que têm mais risco de sofrer desastres.
Estamos vivendo o período de chuvas no Sudeste, com alta do número de enchentes e deslizamentos, principalmente nas zonas periféricas, o que afeta diretamente a vida de quem mora nessas regiões. Pensando nisso, a pasta tem formulado um plano emergencial? Se sim, como ele vai se dar?
Primeiro nós temos um orçamento que nós vamos executar em obras de prevenção. Então tudo que tiver ao nosso alcance do ponto de vista orçamentário será direcionado para prevenção. Esse não é o volume de recurso ideal, mas é o que está à disposição e vai ser direcionado para isso. Segunda coisa, nós vamos também direcionar, principalmente para esses municípios, não apenas uma orientação geral, mas também nós vamos ter uma linha orçamentária para estruturar planos para prevenção e mitigação de desastres. Essas são as principais ações. Agora, pensar dentro de um planejamento, que é o que nós estamos começando a construir, um orçamento de longo prazo. Quando você está pensando a cidade, não só quando a gente fala de urbanizar e tudo mais, mas também como é que você lida com o risco, como é que você lida com as mudanças climáticas, que é uma pauta permanente. Então nós vamos precisar discutir o modelo, nós vamos precisar discutir a sustentabilidade para as soluções, nós vamos precisar discutir a captação de energia, vamos precisar estimular uma discussão mais sistêmica, elaborar uma discussão mais sistêmica, né? Obviamente não depende só da gente, nós estamos falando de um combate sistêmico ao modo de produção, modo econômico de viver, que é destrutivo. E aí não vai ser uma secretaria ou um orçamento público que vai resolver o problema.
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Do MTST para Brasília, Guilherme Simões quer “deixar as portas abertas para os movimentos” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU