06 Fevereiro 2023
"Quarenta bispos, durante o Concílio Vaticano II, em 1965, assinaram aquele que ficou conhecido como o Pacto das Catacumbas da Igreja serva e pobre. O segundo item do pacto declarava: 'Para sempre renunciamos à aparência e à realidade da riqueza, especialmente no traje (fazendas ricas, cores berrantes), nas insígnias de matéria preciosa (devem esses signos ser, com efeito, evangélicos). Cf. Mc 6,9; Mt 10,9s; At 3,6. Nem ouro nem prata', escreve Pe. Dário Bossi, missionário comboniano, assessor da Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM), assessor da Comissão para Ecologia Integral e Mineração da CNBB e articulador da Rede Igrejas e Mineração. O presente artigo será, também, publicado em versão impressa na Revista de Liturgia.
No último vinte cinco de janeiro, completaram-se quatro anos desde o trágico dia em que, em 2019, a barragem de Brumadinho - MG rompeu: crime da empresa Vale que matou 272 pessoas e contaminou o rio Paraopeba. Em decorrência disso, a Igreja Católica, unida a diversos movimentos populares e grupos religiosos, celebrou lá, em 2023, a IV Romaria pela Ecologia Integral. Esta quarta edição teve como lema: “O espírito de Deus pairava sobre as águas” (Gn 1,2) recordando que, sobre a água, irmã sagrada, paira o Espírito desde o começo da Criação. A comunidade local, todo mês, no vigésimo quinto dia, celebra a memória da tragédia, repetindo o gesto de Jesus e irmanando-se a todas as vítimas. Aliás, dom Vicente Ferreira, bispo auxiliar de Belo Horizonte (1A) que acompanha pastoralmente Brumadinho, repete sempre que “vinte cinco é todo dia”. Fazei isto, todo dia, em memória de mim.
Em janeiro, contudo, a celebração é sempre mais intensa. Sobretudo por reunir, ao redor das famílias, a solidariedade de muitas outras pessoas, comunidades, organizações e movimentos, em romaria. Durante uma manhã inteira, celebramos a Eucaristia, caminhamos em procissão, desenhamos um enorme abraço ao redor das centenas de cruzes que representam as vítimas. Escutamos o lamento e o grito do povo, choramos juntos, pedimos força a Deus e recebemos dele a luz da Palavra e a comunhão dos compromissos entrelaçados.
No final da missa, dom Vicente chamou a atenção de todos para o cálice e a patena de madeira, pintados com desenhos indígenas, obra do artista Tonny Cálices, que tinham sido usados na celebração eucarística. Era um convite à reflexão sobre as mortes associadas às atividades mineradoras de onde é extraído o ouro e, de certo modo, um questionamento sobre o uso dele na ação litúrgica cristã.
Naqueles mesmos dias, circulavam pelas mídias as imagens desumanas dos corpos Yanomamis desfigurados pela fome, levando ao extremo o grito sufocado de milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar no Brasil. A Campanha da Fraternidade deste ano – com tema e lema “Fraternidade e fome” e “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14,16) – se abre, assim, com um soco no estômago para todos nós: como pudemos consentir chegar a tanto desrespeito pela vida? Também para nossos irmãos indígenas, a mineração – neste caso o garimpo de ouro – é uma das causas, talvez a principal, de doenças e morte, com consequências piores para os anciãos, mestres e custódios da sabedoria ancestral, e para mais de 570 crianças, que gritam ao céu e às nossas consciências.
No quarto domingo de um tempo que não podemos chamar “Comum”, o conhecido padre Júlio Lancellotti, presbítero da arquidiocese de São Paulo, manifestava solidariedade ao povo Yanomami e às famílias de Brumadinho, vítimas da ganância do extrativismo de minérios. E clamava: “não comprem o ouro do Brasil, porque está manchado pelo sangue dos povos indígenas e o mercúrio que mata nossas águas!”. Também o padre Júlio, na periferia da maior metrópole brasileira, estava celebrando com âmbulas de cerâmica.
Na Igreja Católica, o ouro é utilizado em objetos artísticos, ícones e, principalmente, nos vasos sagrados para a celebração da Eucaristia. A intenção de seu uso é dignificar os instrumentos do encontro entre a humanidade que celebra e Deus. Na cultura bíblica, o ouro também está associado à realeza e à divindade. Porém, como acenamos acima, na história moderna e contemporânea a extração e comercialização do ouro está muito frequentemente associada à violência socioambiental, à morte de lideranças defensoras de seus territórios e à contaminação dos biomas. Por centenas de anos, na América Latina, a cobiça por este metal precioso foi causa de invasão, extermínio e escravidão. Em busca de ouro, milhões de vidas foram sacrificadas; as cicatrizes das minas e os fluxos contaminantes do mercúrio marcam os territórios de nossa Pátria Grande de modo indelével.
Hoje, a mineração de ouro avança em escala industrial, com lavagem de dinheiro sujo e descumprimento sistemático da lei, frequentemente associada a máfias e facções criminosas. Na Amazônia, além da crise sanitária Yanomami, lembramos as cenas recentes de ataques armados por parte dos garimpeiros às próprias aldeias deste povo; as ameaças e violências contra as mulheres Munduruku no Pará; a morte de duas crianças Yanomami sugadas por dragas de mineração em 2021; as imagens das centenas de jangadas e dragas singrando o rio Madeira em Autazes (AM), a morte recente de Bruno Pereira e Dom Phillips, que provavelmente haviam descoberto tráficos ilegais no Valle do Javari...
Depois de arrancado com tal violência das entranhas da terra, grande parte do ouro é armazenado em cofres, como reserva de valor, e utilizado como ativo financeiro ou como joia. Uma mínima parte (cerca do 10%) é empregada em tecnologias médicas. “Tiramos ouro das minas para enterrá-lo nas caixas-fortes dos bancos!” – denunciam as comunidades atingidas. Os grandes países europeus e os Estados Unidos detêm mais de 60% de suas reservas internacionais em ouro [1]. Já extraímos ouro suficiente da terra, e as reservas remanescentes são limitadas. No entanto, a mineração de ouro continua a aumentar.
Para confeccionar a um anel de ouro de 10 gramas, é preciso explodir e remover 20 toneladas de outros materiais, e usar cerca 1,5 kg de cianeto e 7.000 litros de água. Em síntese, trata-se de um metal de luxo que carrega um histórico de violações muito graves.
As disposições litúrgicas do Missal Romano [2] recomendam o uso do ouro para os vasos sagrados utilizados na Eucaristia, em particular o cálice e a patena, por se tratar de um “metal nobre”. A partir das considerações acima, no entanto, esfacelam-se todas as evidências quanto à “nobreza” da história extrativa deste minério, carregada de violência e de sangue. Por outro lado, as mesmas disposições, atentas à inculturação e à valorização das diversas culturas, orientam que também para estes vasos sagrados podem ser utilizados outros materiais nobres, como por exemplo o ébano.
Os vasos sagrados de madeira, vale lembrar, nos reconectam com o ciclo da natureza e com os símbolos evangélicos muito utilizados por Jesus: tronco ao qual estamos vinculados como ramos, semente que morre e dá vida. Assim, nos incluem na dimensão cósmica e pulsante da celebração eucarística. No caso daqueles utilizados por dom Vicente Ferreira, decorados com grafismos indígenas, recordam-nos a encarnação de Jesus em todas as culturas, o respeito que lhes é devido e a reconciliação que somos chamados a promover numa história de tanta exclusão.
Quarenta bispos, durante o Concílio Vaticano II, em 1965, assinaram aquele que ficou conhecido como o “Pacto das Catacumbas da Igreja serva e pobre”. O segundo item do pacto declarava: “Para sempre renunciamos à aparência e à realidade da riqueza, especialmente no traje (fazendas ricas, cores berrantes), nas insígnias de matéria preciosa (devem esses signos ser, com efeito, evangélicos). Cf. Mc 6,9; Mt 10,9s; At 3,6. Nem ouro nem prata” [3].
Atualmente, a principal organização católica de cooperação solidária na Áustria, DKA, também está refletindo sobre este tema [4] e propõe às igrejas que, em consideração da violência histórica e contemporânea da mineração e do grito dos empobrecidos e da natureza, também na liturgia se considere dar preferência a outros materiais nobres, ou que se use somente ouro reciclado. A rede Igrejas e Mineração, organização ecumênica que atua na América Latina, relança este desafio, associando-o também à campanha pelo desinvestimento financeiro das congregações e dioceses, para que retirem seus fundos de operações que financiam a mineração que mata.
A liturgia, com sua profunda carga simbólica e o desafio permanente de revelar o rosto de Deus encarnado, aproximando a celebração à vida, pode ser anúncio profético de um mundo reconciliado, que supera a lógica do extrativismo predatório e convoca todas as criaturas na dimensão cósmica da Eucaristia. Avaliemos como dar passos nesta direção, na humildade de pequenos gestos, sem a pretensão polêmica de desvalorizar a história e a arte da Igreja, mas com abertura à voz do Espírito, que nos fala através do clamor dos pequenos.
1A.- D. Vicente foi nomeado bispo de Livramento de Nossa Senhora, BA, pelo Papa Francisco, no dia 01-02-2023.
[1] Disponível aqui.
[2] Instruções gerais do Missal Romano, capítulo VI, III, n. 328-329.
[3] Cf. Disponível aqui.
[4] Disponível aqui.
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Eucaristia e Casa Comum: entre a vida e o ouro. Artigo de Pe. Dário Bossi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU