14 Dezembro 2022
Capitalismo luta para discipliná-lo, sugar-lhe até a medula, colocá-lo a serviço do acúmulo. Por isso, o corpo é naturalmente o lugar da resistência. Nossa libertação dos fantasmas biopolíticos começa com a dança e a reconexão com a terra e a vida.
O texto é parte do mais recente livro de Silvia Federici, Ir más allá de la piel. Repensar, rehacer y reivindicar el cuerpo en el capitalismo contemporáneo, publicada em castelhano em setembro, a obra sairá em breve no Brasil, pela Editora Elefante. O artigo é publicado por OutrasPalavras, 09-12-2022. A tradução é de Maurício Ayer.
A história do corpo é a história dos seres humanos: não há prática cultural que não se aplique antes de tudo ao corpo. Ainda que nos limitemos a falar da história do corpo no capitalismo, enfrentamos uma tarefa árdua, já que para discipliná-lo foram utilizadas diversas técnicas e estas têm mudado constantemente em função das variações dos diferentes regimes de trabalho aos quais foi submetido.
A história do corpo pode ser reconstruída descrevendo as diferentes formas de repressão que o capitalismo ativou contra ele. Mas decidi, em vez disso, escrever sobre o corpo como território de resistência, isto é, sobre o corpo e as suas potências – o poder de agir e transformar-se – e sobre o corpo como limite à exploração.
Há algo que perdemos ao insistir em falar do corpo como uma construção social e performativa. A visão do corpo como produção social (discursiva) tem ocultado o fato de que nosso corpo é um receptáculo de poderes, faculdades e resistências, que se desenvolveram durante um longo processo de coevolução com nosso ambiente natural, e também de práticas intergeracionais que fizeram dele um limite natural à exploração.
Quando falo do corpo como um “limite natural”, refiro-me à estrutura de necessidades e desejos que foi criada dentro de nós não apenas por meio de nossas decisões conscientes ou de nossas práticas coletivas, mas também por milhões de anos de evolução: a necessidade de sol, de céu azul, do verde das árvores, do cheiro da mata e do mar, a necessidade de tocar, cheirar, dormir e fazer amor.
Essa estrutura acumulada de necessidades e desejos, que por milhares de anos tem sido a condição de nossa reprodução social, impôs limites à nossa exploração. O capitalismo lutou incansavelmente para superar essa estrutura.
O capitalismo não foi o primeiro sistema baseado na exploração do trabalho humano, mas tentou, mais do que qualquer outro sistema na história, criar um mundo econômico onde o trabalho é o princípio mais essencial da acumulação. Ele foi o primeiro a ter a regulação e a mecanização do corpo como premissas fundamentais para o acúmulo de riquezas. De fato, uma das principais tarefas sociais do capitalismo, desde seus primórdios até o presente, tem sido transformar nossa energia e nossas faculdades corporais em força de trabalho.
Uma das principais tarefas sociais do capitalismo tem sido transformar nossa energia e nossas faculdades corporais em força de trabalho.
Em Calibã e a Bruxa, estudei as estratégias que o capitalismo usou para realizar essa tarefa e mudar a natureza humana da mesma forma que tentou mudar a terra para torná-la mais produtiva e transformar animais em fábricas vivas. No livro, também falei da batalha histórica que o capital travou contra o corpo, contra nossa materialidade, e as inúmeras instituições que criou para esse fim: a lei, o chicote, a regulação da sexualidade e uma miríade de práticas sociais que redefiniram a nossa relação com o espaço, com a natureza e com os outros.
O capitalismo nasceu para separar os homens da terra e sua primeira tarefa foi tornar o trabalho independente das estações e prolongar a jornada de trabalho além do limite de nossas forças. Geralmente enfatizamos o aspecto econômico desse processo, a dependência econômica das relações monetárias que o capitalismo criou e seu papel na formação do proletariado assalariado. No entanto, nem sempre vemos o que significou para o nosso corpo estar separado da terra, como ele foi empobrecido e como lhe foram retirados os poderes que os povos pré-capitalistas lhe atribuíam.
A natureza, como Marx reconheceu, [1] é nosso “corpo inorgânico”; houve uma época em que podíamos interpretar os ventos, as nuvens e as mudanças nas correntes dos rios e mares. Nas sociedades pré-capitalistas, as pessoas pensavam que tinham o poder de voar, de ter experiências extracorpóreas, de se comunicar e falar com os animais e adquirir seus poderes, ou mesmo de mudar de forma. Eles também pensavam que poderiam estar em mais de um lugar ao mesmo tempo e, se necessário, poderiam voltar da sepultura para se vingar de seus inimigos.
Nem todos esses poderes eram imaginários. O contato diário com a natureza foi fonte de enorme conhecimento, que se refletiu na revolução alimentar que ocorreu especialmente nas Américas antes da colonização ou na revolução nas técnicas de navegação. Sabemos, por exemplo, que os povos polinésios costumavam navegar à noite em alto mar usando apenas o corpo como bússola, pois sabiam interpretar na vibração das ondas o que tinham que fazer para direcionar seus barcos para a costa.
Amarrar-nos ao espaço e ao tempo tem sido uma das técnicas mais elementares e persistentes que o capitalismo utilizou para se apropriar do corpo. Basta olhar para os ataques aos vagabundos, aos migrantes e aos indigentes que ocorreram ao longo da história. A mobilidade é uma ameaça se não for produzida pelo trabalho, pois faz circular saberes, experiências e lutas.
Antigamente, os instrumentos de coerção eram o chicote, as correntes, o tronco, a mutilação e a escravização. Agora, além do chicote e dos centros de detenção, temos a vigilância informatizada e a ameaça recorrente de epidemias, como a gripe aviária, como forma de controlar o nomadismo.
A mobilidade é uma ameaça se não for produzida para o trabalho.
A mecanização, a conversão do corpo (masculino e feminino) em máquina, tem sido um dos objetivos que o capitalismo mais incansavelmente persegue. Também transformou os animais em máquinas de tal forma que as porcas dobram sua ninhada, as galinhas produzem ovos ininterruptamente – enquanto as improdutivas são trituradas – e os bezerros não chegam a se levantar antes de serem levados ao matadouro. Não posso evocar neste texto todas as formas de mecanização do corpo que ocorreram. Basta dizer que as técnicas de captura e dominação mudaram em função do regime de trabalho dominante e das máquinas que se instituíram como modelo de corpo.
Assim, verificamos que nos séculos XVI e XVII (época da manufatura) o corpo era imaginado e disciplinado segundo o modelo de máquinas simples, como a bomba ou a alavanca. Esse regime culminou no taylorismo e no estudo do tempo e do movimento, no qual cada movimento era calculado e todas as energias eram canalizadas para a realização da tarefa.
Nesse caso, a resistência era imaginada como inércia: o corpo era representado como um animal tolo, um monstro que se recusava a obedecer ordens.
Já no século XIX, vemos que a concepção do corpo e as técnicas disciplinares se inspiravam na máquina a vapor e a sua produtividade era calculada em termos de insumos e produção; eficiência tornou-se a palavra-chave. Nesse regime, o disciplinamento do corpo era feito por meio de restrições alimentares e do cálculo das calorias que um corpo precisava para trabalhar. Nessas circunstâncias, o clímax foi alcançado com a tabela de calorias necessárias por tipo de trabalhador que os nazistas elaboraram.
O inimigo era a dispersão de energia, a entropia, o desperdício, a desordem. Nos Estados Unidos, a história dessa nova economia política começou na década de 1880, com o ataque às tabernas e a remodelação da vida familiar, centrada na dona de casa em tempo integral, concebida como um dispositivo antientrópico, sempre em guarda, pronta para repor os alimentos consumidos, confortar e lavar os corpos esfarrapados ou costurar roupas quando se rasgavam novamente.
Em nosso tempo, os modelos de corpo são o computador e o código genético, que compõem um corpo desmaterializado e desagregado, imaginado como um conglomerado de células e genes, cada um com seu próprio programa, indiferentes uns aos outros e ao bem do corpo em seu conjunto. É o que afirma a teoria do “gene egoísta”: a ideia de que o corpo é constituído por genes e células individualistas que perseguem a realização do seu próprio programa, metáfora perfeita para a concepção neoliberal da vida, em que o domínio do mercado se volta contra não apenas a solidariedade de grupo, mas a solidariedade com nós mesmos. Invariavelmente, o corpo se desintegra em um conjunto de genes egoístas, cada um buscando atingir seus próprios objetivos egoístas, indiferente aos interesses dos outros.
Na medida em que internalizamos essa visão, internalizamos a mais profunda experiência de autoalienação, pois nos deparamos não apenas com um grande monstro que não obedece às nossas ordens, mas com uma horda de microinimigos infiltrados em nosso próprio corpo, prontos para nos atacar a qualquer momento. Os setores industriais se desenvolveram a partir dos medos gerados por essa concepção do corpo, que nos coloca à mercê de forças fora do nosso controle. Inevitavelmente, se internalizamos essa visão, não nos sentimos à vontade com nós mesmos: nosso corpo nos assusta e não o escutamos.
Não prestamos atenção ao que o corpo quer e, em vez disso, o atacamos com todas as armas que a medicina pode nos oferecer: radiação, colonoscopia, mamografia, todas elas armas de uma longa batalha contra o corpo, da qual participamos em vez de colocar nosso corpo fora da linha de fogo. Dessa forma, estamos preparados para aceitar um mundo que transforma partes do corpo em mercadoria e percebemos nosso corpo como repositório de doenças: o corpo como peste, o corpo como fonte de epidemias, o corpo sem razão.
Portanto, nossa luta deve começar pela reapropriação de nosso corpo, pela revalorização e redescoberta de sua resiliência, pela expansão e celebração de suas potências, individual e coletivamente.
A dança é essencial para esta reapropriação. Em essência, o ato de dançar é uma exploração e uma invenção daquilo que o corpo pode fazer: suas capacidades, suas linguagens, suas formas de articular os desejos do nosso ser. Cheguei à conclusão de que existe uma filosofia na dança, pois a dança imita os processos pelos quais nos relacionamos com o mundo, nos conectamos com outros corpos, transformamos a nós mesmos e o espaço que nos cerca.
Com a dança aprendemos que a matéria não é estúpida, cega ou mecânica, mas tem seus ritmos, sua linguagem, é autoativada e auto-organizada. Nosso corpo tem motivos que precisamos conhecer, redescobrir e reinventar. Precisamos ouvir sua linguagem para nos guiar para nossa saúde e cura, assim como precisamos ouvir a linguagem e os ritmos do mundo natural para nos guiar para a saúde e cura da Terra. Sendo constitutivo do corpo o poder de afetar e ser afetado, de mover e ser movido (capacidade indestrutível que só se esgota com a morte), nele reside uma qualidade política imanente: a capacidade de transformar a si mesmo e aos outros, e de mudar o mundo.
[1] Karl Marx, Manuscritos de economía y filosofía. Madri: Alianza Editorial, 2013 [1844], p. 112-114.
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Federici: Elogio do corpo dançante - Instituto Humanitas Unisinos - IHU