09 Março 2021
Sua mãe, Dina, uma árdua dona de casa italiana, costumava se queixar de que ninguém valorizava seu trabalho. “Não é um trabalho real”, esclarecia para o seu marido. Anos e leituras depois, nos anos 1970, Silvia Federici (Parma, Itália, 1942) reivindicou um salário para o trabalho doméstico, que a Oxfam acabaria avaliando em 9,2 bilhões de euros por ano.
Durante décadas, soou como uma loucura, mas a pandemia – como um soco no estômago – mostrou a importância dos cuidados na vida cotidiana. A feminista ítalo-estadunidense define a questão como trabalho reprodutivo e reivindica o espaço central ocupado hoje, feroz e exclusivamente, pela economia produtiva.
A entrevista é publicada por El Periódico, 06-03-2021. A tradução é do Cepat.
Foi necessário um vírus lhe dar razão.
[Sorri] A pandemia mostrou de forma escancarada que as mulheres vivem em uma situação de crise permanente. Precisam trabalhar fora de cada e não há serviços que substituam sua presença. Ao retornar de seus empregos - geralmente precários -, o trabalho doméstico continua lá. Sua semana de trabalho não se distancia daquela das operárias da revolução industrial. Não possuem espaço para se recuperar, nem se recriar, o que piora sua saúde mental. Com o fechamento das escolas, essa situação se tornou dramática.
Descobriu alguma fissura imprevista?
Desde os anos 1970, vinha denunciando que o feminismo não trabalhava suficientemente o tema dos cuidados. Mas constatei – inclusive na própria carne: meu marido tem Parkinson e eu assumo o trabalho reprodutivo – que não existe uma só política que garanta o cuidado. Segue recaindo sobre as mulheres.
Certo.
Fala-se da emancipação da mulher através do trabalho fora do lar, mas é hora de dizer: “Não, não estamos emancipadas, estamos cansadas e em crise”.
Um bom lema para o 8-M.
Outro poderia ser: “Nós nos queremos vivas, livres e desendividadas”. Nos Estados Unidos, uma grande maioria de mulheres que trabalham fora de casa, usam seu salário para poder pedir um empréstimo, porque o salário não é o suficiente para garantir sua autonomia. São empréstimos a 50% de juros, o que aumenta sua vulnerabilidade à violência doméstica. Não é algo novo, mas a pandemia criou uma situação explosiva. Urge reivindicar uma sociedade que reconheça o valor da reprodução social, não só com palavras ou com a celebração artificial no Dia das Mães, mas com um apoio econômico real.
É nisso que, agora, o feminismo deve colocar o foco?
O feminismo deve se mobilizar pela redistribuição da riqueza. Em dois níveis: 1) é preciso perguntar ao sistema que decide nossas vidas – protetor do capital, da terra, dos recursos – para onde vai o que produzimos; e 2) organizarmo-nos na base para ter mais força de negociação com o Estado.
Como?
Criando formas coletivas de tomada de decisões. Imagine uma robusta e ampla assembleia comunitária de debate sobre os cuidados: o que necessitamos, como mudar a política institucional da saúde e dos serviços. Na academia, já temos milhares de artigos sobre o assunto. É preciso envolver todas.
Antes, você dizia não sobra tempo para se recuperar e se recriar.
Sou consciente, e por isso digo que não é possível construir uma forte política sobre cuidados sem lutar para reduzir o tempo de trabalho assalariado. Quando você trabalha 20 horas por dia em uma oficina, não sobra tempo para assembleias comunitárias. Mas se não fizermos isto, o que podemos fazer?
Como disse Verónica Gago, em seu livro A potência feminista, o feminismo é uma perspectiva para mudar tudo. Seu interesse não é setorial. Não se trata de melhorar a condição de vida das mulheres. É uma perspectiva para reimaginar a organização da produção e a reprodução social.
Hoje, produzimos coisas que nos causam danos, que nos matam, ao mesmo tempo em que desassistimos os vulneráveis e a nossa saúde. Precisamos ter ambição em nossa visão social. A missão histórica do feminismo sempre foi a igualdade.
Você nos revelou que não existiria o capitalismo sem a caça às bruxas, que disciplinou as mulheres, fechando-as no lar. Continua existindo a caça às bruxas?
Existe em muitos países, literalmente. Mas o que segue permanecendo oculta é a conexão entre a violência contra as mulheres, em espaços urbanos, e a política de expansão do neoliberalismo, do extrativismo, a privatização da terra, o ataque aos regimes comunitários, os despejos. Por isso, é preciso conectar as lutas. O feminismo é muito importante porque está localizado na experiência da reprodução social, mas deve se conectar com os movimentos ambientalistas, contra a guerra, contra a dívida, contra o racismo. É preciso trazer esta conexão para a superfície.
Existem mulheres que acreditam ter quebrado razoavelmente o teto de cristal.
Percebemos que as mulheres que possuem trabalhos mais qualificados e talvez mais criativos, muitas vezes, são trabalhos que lhes conferem poder sobre outras pessoas. Se são trabalho que nos colocam ao lado do poder institucional, devemos politizá-los.
Sua liberdade depende de outras escravidões, quer dizer.
Exato. Eu lhes diria: “Companheiras, não há nada mais criativo em nossas vidas do que construir uma sociedade em que nossa felicidade não se apoie no sofrimento dos outros”.
Talvez, as jovens já não possam pensar em termos de felicidade.
As jovens acreditam que possuem diante delas um mundo rígido, ou que é muito tarde. E eu lhes digo: “Não, é preciso continuar lutando, sem garantias de que poderemos, porque o contrário é subscrever um sistema criador de destruição e morte, um sistema que tem muita experiência em criar divisão e fazer com que o sofrimento que produz não seja visível”. Só criando laços afetivos, de confiança, será possível superar este individualismo que nos mata e isola.
A aliança, a partir do MeToo, funciona em relação à violência sobre os corpos. Isto traz alívio?
Muito, mas é importante ampliá-la. Nos Estados Unidos, por exemplo, saiu uma lei que dá ao feto a personalidade jurídica, o que significa que tudo o que o que uma mulher grávida fizer – desde comprar um medicamento até sofrer um acidente de carro – pode se tornar um crime. Uma loucura!
Em vários estados foram criados sistemas de controle na saúde pública: os profissionais de saúde podem denunciar à polícia se virem algo suspeito em uma consulta. Surgiu o Movimento da Justiça Reprodutiva, pensando nas afrodescendentes e migrantes. Quando as feministas brancas denunciam que o aborto é o controle sobre os seus corpos, elas lhes dizem: Não companheiras, isso é apenas parte do controle”.
Você ainda possui incógnitas para resolver?
É claro! É agora que começo a ver muito claro que o capitalismo tem mecanismos que se repetem ao longo dos séculos: resolve cada crise com a desapropriação e a expulsão das pessoas de seu lugar. Frente a isso, é preciso se opor à criação contínua de antagonismos entre os que são explorados.
Para você, ser mulher tem sido uma experiência gozosa?
Entre os 16 e 17 anos, perguntava-me: “Por que não nasci homem?”. Mas em meus quase 80, estou contente. Trouxe-me uma visão sobre a vida mais inclusiva e me permitiu compreender o que é o trabalho doméstico, o que significa a saúde... No início de meu feminismo, pedi o salário para o trabalho doméstico quase como uma provocação, mas depois compreendi sua importância.
Sua mãe tinha razão?
Aprendi muito de sua experiência. Ela me dizia: “Você fala sempre dos operários, mas sua tia, que é uma camponesa que se levanta às quatro para alimentar os animais e criar quatro filhos, é ou não é uma trabalhadora?”. Era, considero que sim.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“Não estamos emancipadas, estamos cansadas e em crise”. Entrevista com Silvia Federici - Instituto Humanitas Unisinos - IHU