22 Julho 2024
Olhando para a Madalena de Canova, sempre senti – de uma forma talvez obscura e indesejada – que ela dizia: “O corpo importa!”. O corpo vivo: na sua beleza destinada a não sucumbir à morte.
A reflexão é do historiador da arte italiano Tomaso Montanari, professor da Universidade Federico II de Nápoles, na Itália. O artigo foi publicado em Vita Pastorale, de novembro de 2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A Madalena de Canova parece ter sido feita propositalmente para desmentir os estereótipos dos manuais de história da arte, que o apresentam como o escultor que corta as pontes com a grande época do barroco e cola na história da arte um novo rótulo, o do neoclassicismo.
Tudo verdade: mas o que imaginamos como uma ruptura repentina e mecânica, como uma contraposição ideológica e clara, foi na realidade uma transição lenta e gradual, cheia de reavaliações e dúvidas, de acelerações e recuos. A Madalena, talvez a obra mais “barroca” de Canova, representa exatamente essa osmose, essa fluidez.
“Maddalena penitente”, de Antonio Canova, 1793-1796, Palazzo Bianco, Gênova
Foto: Settimana News
O artista escolheu sozinho o tema desse mármore “mágico”, como foi definido quando chegou a Paris. E escolheu um tema inusitado, em seu tempo e para a escultura. Um tema, em vez disso, muito caro a Bernini.
E justamente Bernini, o mago do barroco, é o modelo declarado em que Canova se inspirou: a cruz de bronze rompe a brancura do mármore exatamente como Bernini fizera nos túmulos papais em São Pedro, e as lágrimas de mármore que escorrem dos olhos de Madalena são as mesmas que, 180 anos antes, haviam saído dos olhos de Proserpina raptada por Plutão (no grupo hoje em Villa Borghese).
Canova desafia Bernini em seu terreno: o da sensualidade de um mármore tornado macio e palpitante como a carne, capaz de entrar em ressonância com a alma de quem olha. E Canova, como Bernini, planejou atentamente a situação em que sua escultura seria vista: o contexto, ou o cenário teatral, se preferirem.
A Proserpina foi esculpida para o jardim de uma villa romana, que evocava a Sicília verdíssima na qual está ambientado o mito grego do seu rapto. Em vez disso, a Madalena foi exposta em uma sala coberta de seda preta, com duas lâmpadas de alabastro que difundiam uma luz suave, para recriar a atmosfera da gruta provençal em que, segundo a tradição, Madalena se retirou para rezar e expiar a vida dissoluta que lhe foi atribuída, fundindo várias figuras evangélicas em um único personagem.
Mas um espelho posto atrás da estátua mostrava aos visitantes as costas muito sensuais da santa e também um pouco a parte final daquelas costas: demonstrando, assim, que os hóspedes do Conde Sommariva, que a possuía, apreciavam a primeira vida de Madalena pelo menos tanto quanto a Igreja exaltava a segunda.
E aqui nos perguntamos: Canova, capaz de contradizer os estereótipos em que a historiografia da arte o encerraria por tanto tempo, foi, pelo contrário, totalmente vítima dos estereótipos imortais que condicionam o olhar da dominação masculina sobre o corpo da mulher? Ou seja, que fazem dele um olhar proprietário e voraz?
Tentar responder a essa pergunta significa enfrentar de peito aberto e sem esconderijos a questão da arte, de sua relação com a sociedade: de sua liberdade e, justamente, de sua capacidade de libertação. Não há dúvida de que, com essa sensualíssima Madalena, Canova quis ir ao encontro das expectativas consolidadas do olhar masculino.
A ambiguidade entre arrependimento religioso e sedução dos sentidos, entre lágrimas e um corpo quase nu era irresistível, e uma força de inércia plurissecular arrastava Canova a satisfazê-lo. Mas – e este é o ponto – os grandes artistas dão à sociedade de seu tempo mais do que ela pede. Mais do que ela pode entender. E, muitas vezes, até mais do que eles mesmos são capazes de compreender racionalmente. Serão somente os olhos e os corações das gerações posteriores que entenderão o sentido das obras dignas de continuar sendo vistas.
Olhando para a Madalena de Canova, sempre senti – de uma forma talvez obscura e indesejada – que ela dizia: “O corpo importa!”. Um curto-circuito exegético bem conhecido uniu em uma pessoa a Madalena prostituta e a Maria de Magdala, irmã de Marta e Lázaro, amiga de Jesus. A apóstola dos apóstolos: aquela que anuncia a ressurreição aos Doze.
Pois bem, enquanto os contemporâneos de Canova viam nessa estátua acima de tudo a primeira, a prostituta redimida, hoje sentimos fortemente a segunda. Quando Jesus ressuscitado a encontra no jardim onde havia sido sepultado, em um primeiro momento ela não o reconhece, transfigurado pela passagem da morte para a vida.
Jesus lhe pergunta: “A quem você procura?”. É um diálogo calcado sobre a busca entre os amantes do Cântico dos Cânticos, e, assim que Maria o reconhece, Jesus lhe diz: “Não me toque”. Isto é, “não me abraça, como terias feito até ontem. Eu ressuscitei, sou diferente”. Sinal evidente de que a relação entre Jesus e Madalena também era uma relação física: não no sentido sexual (como gostariam as caricaturas à la “Código Da Vinci”), mas no sentido de uma amizade feita também de abraços.
Jesus comia e bebia, ficava à mesa com seus amigos: vivia a vida humana com plenitude, na partilha. E é precisamente isso que a ressurreição dos corpos salva, dando valor eterno ao calor da nossa frágil humanidade.
João conta que, depois da ressurreição, Jesus se manifestou aos discípulos do modo mais fraterno e comovente: “Logo que pisaram em terra firme, viram um peixe na brasa e pão. Jesus disse: ‘Tragam alguns peixes que vocês acabaram de pescar’” (21, 9-10). Jesus cozinha para seus amigos, prepara um fogo na praia e espera que eles voltem do trabalho. Uma imagem inesquecível de convivialidade e amizade, que diz, da forma mais forte e ao mesmo tempo mais simples, o que realmente importa na vida: partilhar.
Jesus, verdadeiro homem, aprenderia muitas coisas em sua vida entre os seres humanos. Também que uma vida sem assar peixe para os próprios amigos, uma vida (até mesmo uma vida eterna) sozinha não é humana ou, melhor, não é imaginável.
O corpo, portanto: o de Cristo e o de Madalena. Não como objeto de um desejo sem amor, mas como sujeito de uma vida reconciliada com a criação. O corpo vivo: na sua beleza destinada a não sucumbir à morte. Aqui está a raiz da ressurreição como destruição da morte, como destruição do medo, como construção da justiça.
Em uma palavra: a ressurreição como conquista de uma humanidade plena. “Tirarei de vocês o coração de pedra e lhes darei um coração de carne”: é um coração de carne aquele que sentimos palpitar nessa Madalena de pedra. É o milagre de uma arte capaz de tornar sensível aquilo que é invisível, de nos fazer ver aquilo que esperamos.
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“O corpo importa!”: Madalena, a apóstola dos apóstolos. Artigo de Tomaso Montanari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU