22 Julho 2024
A reflexão sobre o espaço das mulheres na Igreja passa também por uma bela exposição sobre a figura de Madalena, aberta ainda por alguns dias nos Museus de San Domenico em Forlì (mostramaddalena.it) e acompanhada por um grande catálogo.
O comentário é da historiadora da arte italiana Antonella Cattorini Cattaneo, professora de História e Filosofia no Liceo “Antonio Banfi”, em Vimercate, na Itália. O artigo foi publicado em Settimana News, 08-07-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Um rico e transversal percurso iconográfico se desenrola por entre as salas: a imagem de uma mulher misteriosa, representada em muitas obras-primas do arco histórico que vai desde o início da Idade Média até os anos 1900, é acompanhada pelos trechos evangélicos canônicos enxutos, mas incisivos (nada menos do que 12) que falam sobre ela.
Madalena é misteriosa, pois muitas vezes é confundida na tradição com a pecadora penitente, com a irmã de Marta de Betânia, com a amante mais ou menos secreta de Jesus ou com a anti-Eva, como escritores cristãos antigos ou os Padres de tradição grega e ocidental, incluindo Ambrósio, a definiram.
Os artistas se basearam amplamente em inúmeros escritos apócrifos e lendários. Se, na Idade Média, encontramos suas imagens destinadas a ressemantizar os antigos sujeitos femininos de acompanhamento à dor presentes nas cenas fúnebres, no século XVII os pintores a pintavam ilustrando sensualidade, emoções e paixões que o século da ciência e da filosofia política mantinha à distância com dificuldade.
No entanto, se são os Evangelhos que favorecem a recuperação da sua memória histórica, também é verdade que o relato do evangelista João (20,11-18) favoreceu uma tradução latina tão afortunada quanto incoerente em relação ao gesto representado.
Referimo-nos ao “Noli me tangere” que dá título a retábulos e afrescos, obras de importantes mestres. No encontro entre a mulher de Magdala (localidade situada na margem norte-ocidental do lago de Tiberíades e próxima de lugares de proveniência dos discípulos Pedro, André e Filipe) a o Cristo ressuscitado, por ela inicialmente confundido com um jardineiro, a expressão mais autêntica do Mestre é: “Não me retenha”. Um anúncio mais consoante com a fé naquele que está prestes a voltar para o Pai.
Em um texto interessante (infelizmente não presente na bibliografia do catálogo), escrito com Cristina Simonelli e intitulado “Maria di Magdala” (Aracne Editrice, 2016), a teóloga e biblista Marinella Perroni se pergunta se Madalena é uma personagem construído artificialmente e até que ponto a rica produção iconográfica afetou a dificuldade em recuperar a sua verdadeira identidade.
Certamente, o seu destino no imaginário coletivo não favoreceu a percepção de Madalena como discípula (no feminino) de Cristo e como primeira testemunha da ressurreição. No entanto, a identidade feminina da “apóstola dos apóstolos” é reiteradamente reafirmada nas muitíssimas imagens em que o corpo de Madalena está em cena com alta expressividade.
As suas mãos que tocam os pés e as mãos de Jesus nas cenas da dor e do luto mais intenso – é belíssimo o detalhe na Pietà de Giovanni Bellini (1472-74) em exposição em Forlì. Os cabelos compridos: uma constante desde as representações medievais primitivas, quando a sua figura foi confundida várias vezes com outra Maria, que viveu no século IV, chamada Egípcia: uma prostituta alexandrina que depois se converteu, que viveu como eremita coberta apenas pelos cabelos.
Pietà de Giovanni Bellini (Foto: The Yorck Project | Wikimedia Commons)
O ícone persistente do perfume coletado em vasos muitas vezes esplendidamente desenhados é mais uma confirmação de feminilidade. Tanto como mirófora que se dirige ao sepulcro junto com outras mulheres, quanto quando é retratada confundindo-a com a pecadora na casa do fariseu (Lc 7,36-39), ela é associada ao cuidado do corpo e à sua perfumação.
Traçamos a proeminência do feminino também na liberdade com que lhe é permitido externar a dor aos pés da cruz: uma dor mais contida na Virgem e em João, explosiva na Madalena que Masaccio retrata de costas, com os braços escancarados, deixando-nos imaginar um pranto abundante e descomposto. Assim como na estatuária dos Compianti do século XV, em que o seu rosto aparece marcado pela careta de um grito doloroso.
Problemático, mas não impossível, é rastrear a verdade dessa figura decididamente ambivalente e sujeita ao longo dos séculos a leituras mais masculinas do que femininas. No entanto, precisamente a identidade fugidia da discípula pede – de mulher para as mulheres – a valorização de uma presença feminina na Igreja de hoje. Sem visões preconcebidas e artificiais, e com a força de quem – os Evangelhos testemunham – sabe com tudo de si enfrentar a dor da separação mortal do seu Senhor e esperança na vida ressuscitada.
Deixamo-la ir na escuridão do tempo – como no belo vídeo em preto e branco de Bill Viola (“Acceptance”, 2008) presente na mostra – para depois vê-la ressurgir na sua nudez, sob o impacto da água fragorosa, sinal de vida e de força nada leve. Um jato impetuoso, até mesmo salvífico, que todos e todas experimentam na sua própria jornada existencial.
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Madalena: o mistério e a imagem - Instituto Humanitas Unisinos - IHU