14 Novembro 2022
O site Viandanti, 10-11-2022, publicou uma carta aberta que um grupo de leigos e leigas da Diocese de Brindisi-Ostuni, na Itália, escreveu ao Papa Francisco e ao núncio apostólico na Itália, Emil Paul Tscherring, em relação à nomeação de seu futuro bispo.
A carta faz considerações de caráter geral sobre três aspectos: o procedimento para chegar à nomeação; a relação bispo-comunidade; e o estilo da “paternidade episcopal”.
A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A reforma da Igreja Católica, uma reforma que não é mais procrastinável, anunciada várias vezes pelo Papa Francisco, não pode ignorar, entre os muitos problemas estruturais que devem ser enfrentados, o da escolha e da eleição dos bispos.
Uma reflexão sobre esse tema não é fácil, mas é necessária e irrenunciável para quem gostaria não de outra Igreja, mas de uma Igreja diferente.
A crise da Igreja hierárquica não é uma invenção nossa. Se existe um problema de credibilidade, se o Evangelho hoje custa a ser repassado, sem buscar álibis, devemos reconhecer que isso ocorre sobretudo pela responsabilidade e pela inadequação da estrutura eclesiástica.
Segue-se daí que a atual crise eclesiástica não pode ser precipitadamente atribuída à sua base, à difusão de modas contrárias ao Evangelho, ao mundo com seus vícios e à sua invasiva contrariedade ao sagrado. Tampouco pode ser responsabilidade dos leigos o fato de não conseguir encontrar palavras capazes de dialogar com um tempo em rápida transformação, considerando-se que os leigos na Igreja, apesar de sua generosa presença, não têm nenhuma responsabilidade nas escolhas de governo.
Sabemos quanto ainda é longo o caminho para um laicato consciente e protagonista, mas também sabemos que o processo de nomeação de um bispo deve ser um “processo eclesial”, que não pode ser tratado como uma questão “privada”, e que a questão não pode ser postergada ou, pior, ignorada.
Quem poderá levar a sério a “paternidade episcopal” em uma gestão tão opaca das nomeações episcopais?
Certamente, houve e há bispos de grande profundidade, mas está diante dos olhos de todos o quanto a comunidade episcopal está impregnada de uma embaraçosa mediocridade e de como as dioceses e os fiéis têm se contentar com aquilo que passa o “convento”: bispos que “caem do céu”, muitas vezes sem levar em conta o bem das Igrejas locais; escolhas de novos bispos determinadas mais por cálculo corporativista, para responder às pressões de grupelhos e para satisfazer a autoridade narcísica dos próprios bispos proponentes, que identificam os futuros candidatos por germinação celular, quase por clonagem, para que possam ser ainda mais iguais a quem os escolheu e certamente, como ocorre no processo de cisão, mais fracos do que a célula-mãe, todos com uma predisposição a uma odiosa autorreferencialidade.
A nomeação dos bispos, portanto, é um problema enorme que toca o coração do poder eclesial e sobre o qual o silêncio de leigos e padres parece singular e estranho. Uma vez ocorrida a nomeação, não é possível lamentar se um novo bispo interrompe ou cancela um trabalho de décadas de uma Igreja local e se as elevadas afirmações da Lumen gentium sobre o primado do povo de Deus, homens e mulheres, permanecem retóricas e vazias.
Com parrésia, dizemos, portanto, que as atuais modalidades de nomeação dos bispos na Itália não são mais compatíveis com uma Igreja que, no rastro do Concílio, é fermento do mundo, portadora de exigências de justiça, proclamadora das razões da paz, das causas dos fracos e dos oprimidos.
Gostaríamos, com as devidas modalidades de implementação, que fosse retomada a antiga tradição da Igreja que via bispos como Ambrósio eleitos pelo povo.
A comunidade local espera, passiva, que o sucessor seja nomeado de cima.
Com os limites de quem tenta fazer referência em suas escolhas de vida ao Evangelho sem lastros desnecessários e à Constituição italiana, se ainda não for possível um “processo eclesial” para a nomeação do novo pastor da Diocese de Brindisi-Ostuni, sentimos a necessidade de expressar as nossas reflexões e as nossas convicções em consciência, com esta carta aberta.
Não queremos lhes indicar nomes, mas confiar aos senhores algumas características que correspondem às necessidades desta comunidade e a seus deveres de testemunho à sociedade em que vive.
Não é preciso que o novo bispo seja um bom administrador, mas sim um evangelizador que coloque em primeiro lugar a alegria do Evangelho a ser compartilhada cotidianamente com todos.
Nós, aqui na Puglia, temos a viva recordação do bispo Pe. Tonino Bello e gostaríamos ardentemente de um pastor como ele. Se ele estivesse entre nós hoje, aderiria não verbalmente, mas concretamente ao magistério do Papa Francisco, manteria o seu episcopado com as portas sempre abertas em todas as horas do dia para receber a todos, sem hora marcada e sem protocolos, um bispo que dava a preferência aos mais empobrecidos e às vítimas de injustiças e do racismo, e que estava totalmente desinteressado em cultivar amizades e relações com os poderosos.
A nossa diocese se situa em uma província com a menor renda da região, com alto desemprego, trabalho precário e inseguro, emigração juvenil e envelhecimento da população, um dos níveis de educação mais baixos da Itália, despovoamento, carência de serviços públicos essenciais, crime organizado firmemente estabelecido, corrupção e administração pública em muitos casos subserviente a interesses partidários, uma cultura misógina e machista disseminada, uma poluição ambiental difícil de remediar. Sua economia é caracterizada por grandes concentrações de serviços e pouca manufatura.
Essa situação é filha de uma mentalidade na qual a competição pela riqueza e pela especulação financeira representa para muitos o principal objetivo da vida. Tudo isso gera desigualdade e exploração. No entanto, nas comunidades cristãs e até mesmo fora delas, existem muitas práticas, de indivíduos e de grupos, que testemunham que é possível uma sociedade diferente e alternativa, ou seja, solidária e amigável.
A vida diocesana, na qual não faltam sementes ocultas de fermentos evangélicos, sofre de um clericalismo acentuado, sofreu por alguns casos de pedofilia de expoentes do clero, luta para se desvincular de um catolicismo sociológico; nela, a profecia escasseia, vive de muita resignação e de pouca esperança em uma possível mudança.
Por isso, o bispo que vier terá que sentir a tarefa de guiar a comunidade para um testemunho evangélico de fraternidade cada vez maior, sem as insígnias do poder, um bispo que, assim que puder, desça para a rua, que visite as casas dos doentes e dos pobres, que frequente o hospital, que não se cale diante das injustiças e da destruição sistemática do ambiente, que testemunhe com gestos concretos a paridade entre mulheres e homens, que convide à igual dignidade entre os batizados e combata o clericalismo, que compartilhe a vida do povo, que não pregue a resignação, mas anuncie a libertação do Evangelho, que afirme em nome de Jesus Cristo, junto com as outras confissões cristãs presentes na diocese, o primado absoluto da Paz contra toda justificação de guerra e das armas.
Para fazer isso, não são necessários congressos e publicações, mas sim um trabalho profundo de presença, escuta e formação das consciências.
Gostaríamos que, com o novo bispo, interrompa-se o férreo uso da transferência de outra diocese, porque o bispo não é um prefeito ou um funcionário ministerial que deva ambicionar uma sé mais prestigiosa; a era constantiniana deveria ter terminado. Portanto, exclua todos aqueles que querem vir para Brindisi, aqueles que pedem intercessões e ambicionam cátedras elevadas.
Por isso, gostaríamos que os senhores escolhessem entre os muitos párocos que existem na Itália, padres e homens exemplares, não carreiristas e que não estudaram como bispos, mas como simples pastores.
Há muitíssimos deles na Itália, que promoveram comunidades vivas, que antepuseram a tudo o efêmero e, antes da pompa, o diálogo sempre aberto com a cultura em nome do Evangelho, o serviço cotidiano aos pobres e aos doentes, à escuta atenta dos sinais dos tempos, às outras culturas e às outras religiões, e o amor ao estudo voltado à libertação e não ao poder e ao sucesso. Um bispo para quem todos os batizados estão no mesmo nível, derrotando a tentação do clericalismo.
Em 2014, nós escrevíamos:
“O poder de governar uma Igreja local deriva ao bispo do fato de ser testemunha da Ressurreição de Cristo, e seu poder jurídico e administrativo se baseia e corresponde a esse testemunho. A esse respeito, é comovente reler o ‘pacto das catacumbas’, que, em 16 de novembro de 1965, 40 bispos, Padres conciliares, assinaram no encerramento do Vaticano II [1]; entre outras coisas, está escrito: ‘Comprometemo-nos a partilhar, na caridade pastoral, nossa vida com nossos irmãos em Cristo, sacerdotes, religiosos e leigos, para que nosso ministério constitua um verdadeiro serviço; assim: esforçar-nos-emos para ‘revisar nossa vida’ com eles; suscitaremos colaboradores para serem mais uns animadores segundo o espírito, do que uns chefes segundo o mundo; procuraremos ser o mais humanamente presentes, acolhedores…; mostrar-nos-emos abertos a todos, seja qual for a sua religião (cf. Mc 8,34s; At 6,1-7; 1Tim 3,8-10)” [2].
A simplicidade evangélica das propostas dos bispos (e não de loucos contestadores), que viveram aquilo que subscreveram, choca-se com a dura realidade e com as contradições de outros modos mais mundanos e menos evangélicos de governar uma Igreja local.
Caríssimo Papa Francisco e excelentíssimo arcebispo, esperamos que aquele que os senhores escolherem seja um bispo disposto a ter como farol do ministério episcopal aquele Pacto das Catacumbas, que é um dos compromissos mais importantes amadurecidos nos anos do Concílio Vaticano II.
Brindisi, 11 de outubro de 2022
60º aniversário da abertura do Concílio Vaticano II
Maria Giovanna Buongiorno (Ostuni), Rosaria Calò (Leverano), Giancarlo Canuto (Mesagne), Mino Carbonara (Brindisi), Dario Ciccarese (Veglie), Angela Colasuonno (Brindisi), Annapina Coppola (Veglie), Giovanni Erroi (Leverano), Luca Esperti (Mesagne), Antonietta Frassanito (Veglie), Antonio Greco (Brindisi), Maria Rosaria Lecciso (Leverano), Cinzia Mondatore (Brindisi), Sergio Montanaro (Ostuni), Remo Palma (Brindisi), Consiglia Patera (Veglie), Paolo Piccinno (Brindisi), Maurizio Portaluri (Brindisi), Maria Grazia Rolli (Leverano), Fortunato Sconosciuto (Mesagne), Lucia Tramonte (Brindisi),Giovanna Vantaggiato (San Pancrazio).
Os promotores fazem parte do grupo “Manifesto 4 Ottobre”, que integra Rede Viandanti.
1. Pacto das Catacumbas (1965), disponível em português aqui.
2. Cf. “Manifesto del 4 Ottobre”, disponível em italiano aqui.
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Carta aberta “Uma comunidade à espera de seu bispo” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU