14 Novembro 2022
Pesquisadores acreditam que maior disponibilidade de armas de fogo no mercado legal contribui diretamente para o armamento do crime organizado.
A reportagem é de Joana Berwanger, publicada por Sul21, 10-11-2022.
Nos últimos sete anos e meio, 68,3% das ocorrências de roubo e furto de armas de fogo no Rio Grande do Sul aconteceram no interior de residências e condomínios. Os dados são da Polícia Civil. Dos 8.249 casos registrados entre janeiro de 2015 e agosto de 2022, 5.635 integram a categoria. Isso significa que quase 7 em cada 10 armas levadas por criminosos foram tiradas de dentro de residências no RS, de acordo com dados da Secretaria da Segurança Pública, obtidos pelo Sul21 através da Lei de Acesso à Informação.
O restante das ocorrências registradas nos últimos sete anos e meio indicam que o furto ou roubo desses equipamentos aconteceram em vias públicas (6,02%), estabelecimentos comerciais (5,39%), estabelecimentos de ensino (0,35%), casas de entretenimento, como festas e shows (0,29%), hospitais e clínicas (0,23%), interior de coletivos e metrôs ou rodoviárias (0,08%), além de outros espaços não especificados (19,29%). No caso das residências, em 91,72% das ocorrências, os equipamentos foram furtados, ou seja, sem uso de violência e muitas vezes sem a presença da vítima. Já em 8,26% dos boletins, os criminosos cometeram o crime de roubo, quando há a prática de grave ameaça ou lesão corporal. Somente um caso registrou roubo com morte (latrocínio), em 2017, na cidade de Tapes, no Sul do Estado.
Os dados obtidos pelo Sul21 também indicam que, dos 497 municípios registrados no RS, 473 possuem pelo menos uma ocorrência de roubo ou furto de arma de fogo, o equivalente a 95,17% das cidades do estado. Porto Alegre concentra o maior número de casos, com 747 registros. Ao total, a Polícia Civil constatou que 399 revólveres, 215 pistolas, 40 espingardas, 8 carabinas, 6 rifles, 1 fuzil e outros 85 armamentos não identificados foram furtados ou roubados na Capital. Além disso, as ocorrências indicam que residências foram 51,27% dos locais-alvo de criminosos.
“Uma arma dentro de casa não garante segurança”, defende Natalia Pollachi, coordenadora de projetos do Instituto Sou da Paz. “A gente vê, no geral, que as pessoas têm muita dificuldade de reagir no momento de um crime, principalmente porque a pessoa que está atacando espera você estar distraído. Ele não vai te atacar quando você está de pé, com a arma na mão, pronto, esperando alguém te atacar. Essa arma tem dificuldade de uso para defesa pessoal”, completa.
Apesar disso, o número de pessoas armadas registradas como caçador, atirador esportivo e colecionador (denominados pela sigla CAC) quase dobrou em menos de dois anos no RS, como mostrou o Sul21, em reportagem publicada em julho de 2022. Em junho de 2020, o estado tinha 35.375 pessoas sob tal denominação e, em novembro de 2021, já eram 59.818, um aumento de 69,1%.
Para Francisco Amorim, jornalista formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde também cursou o mestrado e o doutorado em Sociologia, os índices coletados pela reportagem também batem de frente com a premissa de que ter uma arma próxima garante a segurança do portador, uma vez que, em 8,26% das ocorrências, o roubo foi feito mediante grave ameaça ou lesão corporal. A pedido da reportagem, o cientista, que apresentou sua tese sobre as transterritorialidades do narcotráfico na América Latina, analisou os dados fornecidos pela Polícia Civil.
“Mesmo a pessoa estando no mesmo espaço da arma, isso não foi suficiente para garantir [que o crime não ocorresse]”, explica. De acordo com a lei brasileira, a posse de arma de fogo na residência ou no local de trabalho requer que o proprietário disponha de um local seguro para armazenar esse equipamento. Caso o ambiente também seja habitado por crianças, adolescentes ou pessoas com deficiência, o armamento deve ser guardado em um cofre ou em um local seguro com tranca, obrigatoriamente. Na visão de Amorim, os 91,72% dos casos de furto desses equipamentos no Rio Grande do Sul mostram que “não houve a posse ou a tutela adequada da arma e, por algum motivo, houve a oportunidade de ela ser levada na ausência [do proprietário]”.
“Você não é um policial, você não vai andar armado em todos os momentos do seu dia. Você vai ter restrições, seja ela cotidiana, seja legal, de não poder entrar em um lugar com ela, seja nas atividades mais comezinhas”, aponta. “O furto revela que, mesmo que você tenha um porte adequado e você esteja usando aquela arma eventualmente para segurança, quando você se move, você não move a sua coleção”, completa.
Em abril de 2018, um colecionador de armas de Porto Alegre teve 39 armas furtadas de seu apartamento, localizado no bairro Jardim Lindóia. À época, a Brigada Militar suspeitou que os criminosos tinham informações privilegiadas sobre a vítima, já que os envolvidos conseguiram acessar o prédio através do portão eletrônico e se encaminharam diretamente ao apartamento. Na ocasião, o porteiro e outros funcionários que estavam no condomínio foram rendidos.
Para Natalia Pollachi, esse não é um caso isolado. A coordenadora de projetos do Instituto Sou da Paz relata a existência de furtos e roubos premeditados em todo o país, que miram especialmente os CACs, por possuírem armas de maior calibre e em maior quantidade. “Esse fator de que você também atrai perigo para sua casa é o fator que as pessoas não costumam considerar”, explica Natalia. “A gente está falando de um bem que, para o crime organizado, até para o crime comum, é um item valioso. Muito mais valioso que jóias, mais valioso que celulares, mais valioso que qualquer coisa, então você está atraindo pessoas para a sua casa”, completa.
No mês seguinte ao roubo das armas do colecionador de Porto Alegre, a Polícia Civil deflagrou a Operação Panamericana. À época, mesmo com o cumprimento de mandados de busca e prisão em diferentes cidades do RS, somente quatro das 39 armas foram recuperadas. Hoje, de acordo com o delegado João Paulo Abreu, os autores do crime já foram julgados e condenados, e outras peças da coleção também foram recuperadas por diferentes delegacias. Apesar disso, nem todas foram resgatadas do mercado ilegal. Abreu não soube informar o número exato.
“Essa arma não vai ficar na gaveta. Essa arma gira, ela é alugada”, detalha o cientista social Francisco Amorim, que relembra o atentado contra a vice-presidente da Argentina, Cristina Kirchner, em setembro deste ano. De acordo com Amorim, a arma usada na tentativa de homicídio em Buenos Aires tinha mais de 40 anos.
“Essas armas permanecem muito tempo em circulação. Armas são feitas para durar, elas não são descartáveis, não têm um prazo de validade. Armas podem durar séculos, são pensadas para a possibilidade de matar gente por muito tempo”, aponta. O armamento que abastece o mercado ilegal, no entanto, não provém de uma única fonte. Para Amorim, seria ingênuo acreditar que o crime organizado adquire seus equipamentos através de uma única estratégia.
De acordo com Alencar Carraro, diretor de investigações criminais do Departamento Estadual de Investigações do Narcotráfico (Denarc) da Polícia Civil, a maior parte do armamento usado por criminosos provém de esquemas de tráfico internacional e contrabandos, de países europeus, mas também da América do Norte e da América Latina. “Fora essa origem de armas legais adquiridas por cidadãos que de alguma maneira ou de outra foram desviadas para esses traficantes, também grande parte, ou a maioria delas, advém do mercado estrangeiro, muito do Paraguai e do Uruguai”, explica.
Apesar do contrabando, para Natalia Pollachi, coordenadora do Sou da Paz, o levantamento realizado pelo Sul21 mostra o papel considerável de armas legalizadas no mercado ilegal, com destaque para aquelas roubadas e furtadas dentro de casa.
Com as disposições previstas no Decreto nº 9.685/2019, responsável por alterar o Decreto nº 5.123/2004, cidadãos brasileiros passaram a ter mais facilidade para se registrar como caçadores, atiradores esportivos e colecionadores (CACs). Como consequência, o acesso a armas de fogo se tornou mais fácil, aumentando o número de equipamentos em circulação no país. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado em 2022 com dados do Sistema Nacional de Armas, o número de armamentos registrados no Brasil em 2017 era de 637 mil. Em 2021, esse número pulou para quase 1,5 milhão, assinalando um aumento de 133% em quatro anos.
Para Francisco Amorim, o crescimento da circulação de armas no mercado legal contribui diretamente para que crimes comuns, como assaltos, que em sua maior parte eram cometidos com emprego de armas brancas ou mediante ameaças, passassem a ser cometido com uso de armas de fogo. Isso porque, quanto mais armamentos disponíveis, mais barato é ter uma arma no mercado ilegal. “Daqui a pouco, você tem uma proliferação da arma porque ela ficou barata e ela já vai ser usada em crimes que antes você não teria emprego da arma de fogo. Alguém que fosse roubar uma bolsa, ou talvez alguém que estivesse com uma faca, vai estar com revólver. Quanto mais armas desse calibre você tem, mais você baixa o preço dessa arma no mercado negro”, explica.
Entre as dez categorias diferentes de armamentos registrados pela Polícia Civil, os revólveres equivalem a quase metade dos casos de roubo e furto no Rio Grande do Sul nos últimos sete anos e meio, com 3.368 ocorrências (45,15%). Logo atrás, estão as espingardas, com 2.161 casos (28,97%). Ainda, há 1.308 ocorrências de pistolas roubadas (17,54%), espécie que, desde 2020, vem se mostrando mais presente nos registros de roubos e furtos. Nos dados coletados pelo Sul21, foi possível observar que, desde o início da série histórica, o número de revólveres registrados como roubados ou furtados está caindo.
De acordo com Natalia Pollachi, esse cenário se dá porque a arma comprada por pessoas comuns está mudando de perfil, principalmente desde a publicação do Decreto nº 9.685/2019. “Se tornaram armas muito mais potentes”, aponta. “Está autorizado pessoas comuns terem armas mais potentes que as de uso cotidiano da polícia, por exemplo. Falando de pistola, a polícia usa .40, e agora uma pessoa comum pode ter uma 9mm”, exemplifica.
Alencar Carraro, diretor de investigações criminais do Denarc, também aponta que, em confrontos com facções ligadas ao tráfico de drogas, há o uso de armas longas, mas a maioria do armamento usado são pistolas semiautomáticas de calibre 9mm. “Essas pistolas têm uma qualidade boa, não são armas montadas, são praticamente novas, advindas do exterior ou de origem de furtos e roubos de cidadãos de bem, que as mantinham em boas condições. As pistolas que nós temos apreendido são de alta qualidade, similares e algumas delas melhores até do que as polícias têm à disposição”, explica. Ele ainda ressalta que, nas últimas décadas, houve uma diminuição expressiva na apreensão de revólveres com criminosos, que estão dando espaço às pistolas mais modernas.
A mudança no perfil do armamento também é observada por Amorim, que ressalta que, mesmo uma pistola sendo menos letal do ponto de vista técnico do que um fuzil, por exemplo, a arma pode ser mais usada por questões estratégicas – como por ser fácil de esconder e de transportar. Além disso, essa mudança de revólveres para pistolas oferece um aumento na capacidade de disparo contínuo, disponibilizando uma força de resistência muito maior para criminosos. “Ela [pistola] tem muito mais possibilidade de revidar em uma ação policial. Quando uma pistola cai, ela cai com esse poder de fogo ampliado, que é de ser semiautomática ou automática, de um calibre muito superior ao que você está acostumado nos revólveres”, explica.
Nas ações deflagradas pelo Denarc, essa mudança é visível. “Nos chamou atenção que, nos últimos anos, com essa liberdade maior na aquisição de armas por atiradores, caçadores e pessoas comuns, nós temos em alguns casos, não é uma grande quantidade, mas nós temos casos sim, em que armas legais foram parar na mão de traficantes”, aponta o delegado.
Carraro destaca ainda que, após a flexibilização no acesso a armas no Brasil, houve casos de pessoas que não possuíam antecedentes criminais, mas que estavam de alguma forma ligadas ao tráfico de drogas e que conseguirem se registrar como colecionadores, atiradores desportivos e caçadores (CACs). Dessa forma, passaram a ter acesso a cartuchos e munição, principalmente, que eram comprados legalmente e fornecidos a facções.
“Temos algumas importantes apreensões de cartuchos e munição na posse de marginais e que a gente rastreou e apuramos que, na verdade, foram adquiridas em lojas legais e que deveriam ter sido fornecidas para CACs. Alguns casos até foram, mas depois foram comercializadas para marginais”, explica Carraro.
Para o cientista Francisco Amorim, é crucial que o governo federal revise a dinâmica de permissão não só do tipo, mas também da quantidade de armas de fogo possíveis para compra, já que colecionadores acabam criando arsenais dentro de casas e apartamentos. “Cinquenta fuzis não aumentam a sua capacidade individual de proteção. Qual é o requisito para decidir que essa arma é uma arma de colecionador? Quais são os critérios para você ter mais de uma arma quase idêntica a outra?”, questiona.
Já o delegado da Polícia Civil, Alencar Carraro, destaca que, por um lado, o decreto oferece para “pessoas de bem mais acesso a armas de fogo, que em algumas situações proporcionam com certeza uma segurança maior”, enquanto por outro, há casos de grandes quantidades de cartuchos e armamentos voltados para CACs parando “em mãos erradas”. “Acho que ainda não houve um equilíbrio nessa situação, poderia daqui a pouco se construir nessa quantidade de armas e munição que hoje é ofertada que, quem sabe, seja um pouco exagerada”, diz.
Segundo Amorim, a legislação brasileira sempre priorizou identificar os tipos de armas conforme seu uso, como equipamentos específicos para colecionadores e caçadores, por exemplo. Desde a publicação do decreto do governo Bolsonaro, o pesquisador acredita que “essa zona ficou cinza”. Para ele, também é necessário que haja um maior controle dos calibres disponíveis e suas quantidades. “Que essas quantidades sejam realmente relacionadas a uma conduta de tutela dessas armas mais eficaz. Se eu vou deixar que um cara tenha 10 fuzis, quais as condições que ele vai me apresentar para ter?”, indaga Amorim.
“Se o que eu tenho em casa é algo que interessa para grupos armados que estão acostumados, na sua atividade diária ou para dominar um bairro inteiro, ou seja, o que acontece na Cruzeiro, na Maré… Se o que eu tenho em casa interessa para esse grupo, que não está nem aí para Polícia Militar ou Polícia Civil, será que eu, sozinho, vou conseguir gerar um nível de proteção para essas armas? Eu vou ter aqui, no meu condomínio, segurança?”, finaliza.
Para a realização dessa reportagem, o Sul21 solicitou à Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul (SSP/RS), via Lei de Acesso à Informação (LAI), os dados referentes à série histórica mais abrangente disponível sobre registros de roubo e/ou furto de armas de fogo, detalhando mês a mês, no estado do RS, com detalhamento de municípios, registros de ocorrências, datas das ocorrências e modelos das armas. A Secretaria encaminhou então os dados detalhados entre o período de janeiro de 2015 a agosto de 2022, registrados pela Polícia Civil.
Os dados foram analisados para detectar qualquer tipo de erro de digitação e demais falhas no arquivo. A partir disso, foram trabalhadas as ocorrências classificadas como furto de arma de fogo, roubo de arma de fogo, roubo de arma de fogo com lesões e roubo de arma de fogo com morte, que eram as categorias elencadas. Os dados foram organizados através de planilhas e tabelas, distinguindo o ano das ocorrências, seus respectivos montantes, locais do fato (tipo de local), municípios do fato e espécies das armas. Todos os materiais foram analisados através do programa Microsoft Excel, sem o uso de programação.
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7 em cada 10 armas roubadas no RS desde 2015 foram tiradas de dentro de residências - Instituto Humanitas Unisinos - IHU