21 Outubro 2022
Uma preocupação permanente da vida em sociedade é, sem dúvida, o fardo da violência interpessoal ou aquela onde, necessariamente, há a figura de um agressor e de uma vítima, mas com uma ampla possibilidade de agressões, passando por ofensas verbais, discriminações como as de gênero, bullying e agressões físicas contra crianças, adolescentes, mulheres, homens ou idosos, até seu ponto terminal, o popular assassinato, seja ele o roubo seguido de morte (latrocínio) ou o feminicídio (assassinato por razões de gênero ou simplesmente por ser mulher), por exemplo.
A reportagem é de Jesem Orellana, publicada por Amazônia Real, 19-10-2022.
Embora se reconheça a gravidade de agressões praticadas por terceiros sobre suas vítimas, não podemos ignorar um dos mais dramáticos tipos de violência, a autoprovocada e que pode variar desde autoagressões físicas (arranhões, cortes e mutilações, por exemplo), até a sua mais grave expressão, o suicídio, sinal tardio de sofrimento existencial intolerável no nível individual, mas fortemente influenciado por seu entorno, seja dentro ou fora de casa, na escola, no trabalho ou em relações afetivas.
Tanto homicídios como suicídios, remontam a graves e complexos problemas sociais, econômicos, psicológicos, comportamentais e culturais, uma espécie de atestado da deterioração do bem estar individual e coletivo, sendo pouco razoável se referir a ambos, respeitando suas particularidades, sem lembrar do desemprego e da falta de oportunidades, da pobreza extrema, da desesperança, da falta de coesão social, bem como do fracasso escolar, da segurança pública ou da atenção psicossocial, sobretudo de cuidados de saúde mental como depressão e ansiedade, para citar os mais conhecidos.
Portanto, parece claro que o aumento isolado de homicídios ou suicídios, por si só, é algo grave, seja qual for a circunstância e o lugar. O aumento simultâneo de ambos, além de pouco usual, remete a um cenário ainda mais complexo [1] e marcado por desordem, uma espécie de terra sem lei, onde opressão, violência e impunidade caminham juntas. Já o aumento conjunto de homicídios, suicídios e sequenciais descontroles na mortalidade por doenças como a Covid-19 é algo inédito e surreal. Não se trata de rascunho de filme de terror e sim do mais emblemático contexto em que a pandemia de Covid-19 se desenvolveu em escala planetária, a calamitosa experiência do Amazonas.
Vamos aos fatos e números oficiais de mortalidade, codificados de acordo com a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10) e disponibilizados pelo Ministério da Saúde do Brasil [2], para os maiores de 9 anos, residentes no Amazonas e durante o período de 2016 a 2021, em especial os triênios de 2016 a 2018 e o de 2019 a 2021, os quais coincidem com quase toda a duração dos mandatos de Presidente da República e de Governador do Amazonas. Como seria de se esperar, as estatísticas de mortalidade do Amazonas não são exatamente confiáveis. Ao contrário, estão entre as piores do país em termos de cobertura e qualidade.
Portanto, assumindo que o problema da subnotificação de mortes no Amazonas, como àquelas por Covid-19 é amplamente conhecido [3], é crucial avaliar não apenas o conjunto de mortes que foram oficialmente classificadas como homicídios (mortes por agressões – códigos X84 a Y09 da CID-10) e suicídios (códigos X60-64 da CID-10), como também as causas de mortes violentas mal classificadas ou das “mortes cuja intenção é indeterminada” (códigos Y10-34 da CID-10), as quais não só limitam a diferenciação entre uma morte acidental ou um suicídio e um homicídio, por exemplo, como também as invisibilizam. Neste caso, conforme se observa na Figura 1, tanto em homens como em mulheres, há um anômalo aumento de eventos fatais violentos “cuja intenção é indeterminada” para o triênio de 2019 a 2021, em comparação ao de 2016 a 2018. De modo geral, este é um comportamento inusual, já que se espera a progressiva melhoria dos registros de mortalidade e não a sua piora.
Figura 1. Número de eventos fatais violentos cuja intenção é indeterminada e aumento percentual em homens e mulheres maiores de 9 anos, de acordo com triênio, Amazonas, Brasil, 2016-2021 (Foto: Rafael Happke | UFSM)
No caso dos suicídios, o possível impacto no erro das classificações pareceu pouco expressivo, com a mortalidade suicida sendo 33,5% maior no triênio de 2019 a 2021 (859 mortes), em comparação ao de 2016 a 2018 (634 mortes), uma marca não apenas impressionante, mas alinhada ao excesso de suicídios durante a pandemia de Covid-19 na região norte do Brasil, evidenciando a gravidade da situação sociosanitária local [4].
Já sobre os homicídios, o possível impacto no erro das classificações foi considerável, chamando atenção o aumento de 163,6% nas mortes masculinas consideradas como “fatos ou eventos não especificados” (código Y34 da CID-10) no triênio de 2019 a 2021 (29 mortes), em comparação ao de 2016 a 2018 (11 mortes). Também se observou anormal aumento nas mortes masculinas (800,0%) consideradas como causadas por “Objeto contundente” (código Y29 da CID-10) no triênio de 2019 a 2021 (11 mortes), em comparação ao de 2016 a 2018 (1 morte), algo que parece pouco sensato, já que normalmente as pessoas não morrem acidentalmente a pauladas ou espancam a si próprias até a morte. Mesmo ignorando os problemas de subnotificação das mortes violentas e sabendo que a contagem dessas mortes agravaria a contagem de homicídios no Amazonas, foi observado aumento de 2,4% (mortes por agressões – códigos X84 a Y09 da CID-10) no triênio de 2019 a 2021 (4.657 mortes), em comparação ao de 2016 a 2018 (4.548 mortes), sobretudo nos homens (aumento de 2,9% na mesma comparação), contrariando o padrão geral descendente de estados da região norte e do Brasil.
A mortalidade homicida no Amazonas no triênio de 2019 a 2021, que já estava entre as mais preocupantes do país, resultou na elevada taxa de 44,9 homicídios por 100 mil habitantes em maiores de 9 anos e reflete, ao menos em parte, o crescente enfraquecimento do papel regulador do Estado e a guerra urbana entre facções do crime organizado, as mesmas que levaram o Governador Wilson Lima, em 2021, a pedir apoio da Guarda Nacional ao Presidente Jair Bolsonaro, diante de ataques coordenados, na capital e no interior, em prédios públicos e privados, como Delegacias e Agências bancárias, bem como incêndios de parte da frota do transporte coletivo de Manaus [5].
Já em relação a mais desumana e catastrófica experiência sanitária na pandemia de Covid-19, os números são tão aterradores e mesmo ignorando sua conhecida subnotificação no Amazonas, somente em 2020 e 2021 e também em maiores de 9 anos, são oficialmente conhecidas cerca de 14.600 mortes pela doença, muitas das quais eram plenamente evitáveis e ocorreram com mais frequência durante as tragédias de 2020, marcada por enterros em valas coletivas, bem como na de 2021, com as conhecidas mortes por asfixia, mundialmente conhecida como a crise de oxigênio do mês de janeiro (6).
Como se observa na Figura 2, mesmo somando todos os suicídios e homicídios de 2016 a 2021 no Amazonas (1.493+9.205=10.698), esse valor ainda é inferior ao de mortes por Covid-19 em 2020 e 2021 (14.541). Ainda mais aterrador é o somatório de mortes por suicídio, homicídios e Covid-19 (25.239), pois representa a soma da população de municípios Amazonenses como Jutaí e Caapiranga, com cerca de 13 mil habitantes cada.
O aumento de suicídios e homicídios no Amazonas, na vigência das piores e mais letais crises epidêmicas de Covid-19 em toda a pandemia, retrata de forma peculiar o pior capítulo da história recente da saúde pública brasileira, em cenário de naturalização do sofrimento humano e da morte, não apenas por autoridades sanitárias e pelos diferentes poderes, como também, pela própria população.
Finalmente, novas emergências sanitárias globais seguirão desafiando a humanidade, muito provavelmente em uma frequência cada vez maior, tal como os inegáveis impactos de eventos climáticos extremos nas últimas décadas, demandando não somente o aprimoramento de respostas e esforços intersetoriais à sua mitigação, como também uma dinâmica e abrangente compreensão dos seus principais determinantes, sejam eles sanitários, sociais, econômicos, culturais, étnicos/raciais, psicológicos e comportamentais, sobretudo em cenários como o do Amazonas, marcado por uma trágica história de abandono, negligência e impunidade.
Figura 2. Número de mortes por suicídio e homicídios (2016-2021), bem como por Covid-19 (2020-2021), em maiores de 9 anos, Amazonas, Brasil (Foto: Rafael Happke | UFSM)
1 – Machado, D. B., McDonald, K., Castro-de-Araujo, L. F., Devakumar, D., Alves, F. J. O., Kiss, L., … & Barreto, M. L. (2020). Association between homicide rates and suicide rates: a countrywide longitudinal analysis of 5507 Brazilian municipalities. BMJ open, 10(11), e040069.
2 – Ministério da Saúde. Sistema de Informação sobre Mortalidade. Estatísticas Vitais.
https://datasus.saude.gov.br/informacoes-de-saude-tabnet/ (acessado em 17/Out/2022).
3 – ORELLANA, Jesem Douglas Yamall; MARRERO, Lihsieh; HORTA, Bernardo Lessa. Excesso de mortes por causas respiratórias em oito metrópoles brasileiras durante os seis primeiros meses da pandemia de COVID-19. Cadernos de Saúde Pública, v. 37, p. e00328720, 2021.
4 – Orellana, J. D. Y., & de Souza, M. L. P. (2022). Excess suicides in Brazil: Inequalities according to age groups and regions during the COVID-19 pandemic. International journal of social psychiatry, 00207640221097826.
5 – Cyrino, J.B (2022). Brasil de Fato | Manaus (AM). Caos no Amazonas: guerra entre facção criminosa e polícia se soma à tragédia da Covid-19. (https://www.brasildefato.com.br/2021/06/08/caos-no-amazonas-guerra-entre-faccao-criminosa-e-policia-se-soma-a-tragedia-da-covid) (acessado em 17/Out/2022).
6 – Orellana, J. D. Y., Marrero, L., & Horta, B. L. (2021). Letalidade hospitalar por COVID-19 em quatro capitais brasileiras e sua possível relação temporal com a variante Gama, 2020-2021. Epidemiologia e Serviços de Saúde, 30.
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Aumento de suicídios e homicídios no Amazonas, durante graves crises epidêmicas de Covid-19: uma história de abandono, negligência e impunidade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU