20 Outubro 2022
Eleito com a 5ª maior votação do Rio Grande do Sul, o deputado diz que firmará a "bancada negra" na Assembleia.
A entrevista é de Fabiana Reinholz, publicada por Brasil de Fato, 18-10-2022.
Aos 31 anos, Matheus Gomes (PSOL) é o segundo mais jovem eleito para o parlamento gaúcho nas eleições deste ano. Mestre em História, foi o quinto mais votado para a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul na eleição de 2022, com 82.401 votos. Militante desde o ensino médio, fez parte do DCE da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Membro da primeira bancada negra da história da Câmara Municipal de Porto Alegre, ele terá como colegas na Assembleia as também vereadoras porto-alegrenses Laura Sito (PT) e Bruna Rodrigues (PCdoB). Juntamente com Luciana Genro, parlamentar reeleita com mais de 110 mil votos, comporá uma bancada do PSOL.
Entre suas pautas e projetos para o mandato que inicia em 2023 estará a luta antirracista. "A política antirracista tem condição de ser uma política universal, porque a lógica que sempre se estruturou em nível nacional é quem está no topo da pirâmide social, a população branca, dirigindo e olhando para si mesma. Nós viemos de baixo, então observamos o conjunto, e temos condição, a partir dessa lógica, de transformar a condição econômica e social do RS como um todo", afirma o parlamentar.
Matheus é o quinto homem negro a ocupar espaço na Assembleia Legislativa.
Tu te tornaste o quinto homem negro a ocupar um lugar na Assembleia, nos seus quase 200 anos. Eu queria que tu falasses dessa conquista?
Realmente nós não somos os primeiros a chegar, no caso do povo negro como um todo. Obviamente para as mulheres negras a conquista desse ano é ainda mais simbólica, pelo fato de ser as primeiras eleitas em nível estadual e federal. Mas eu penso que estamos trilhando um caminho sólido pra construir uma nova tradição política no Rio Grande do Sul. E que a representação do povo negro de periferia vai estar em outro patamar.
É uma conquista histórica, porque nos últimos 20 anos nós mudamos a condição do debate sobre a questão racial no Brasil. Sempre existiu o mito da democracia racial, que tornava o racismo um problema menor no nosso país. Utilizavam-se exemplos de Estados Unidos e África do Sul, para falar de desigualdade racial, mas no Brasil sempre é relegado ao segundo plano. Subvertemos totalmente essa lógica.
Hoje o racismo é um dos principais debates no campo da produção de ideias da cultura e da política nacional, e a bancada negra iniciada em Porto Alegre e agora em nível estadual é expressão dessa mudança na estrutura da sociedade, no campo político, na representação institucional. Não acho que é um fenômeno passageiro, é algo que realmente veio para ficar, e que a gente vai tentar consolidar agora ampliando a nossa força social por todo o estado.
Tu também foste o quinto deputado mais votado...
A votação foi muito expressiva. Iniciamos a campanha com núcleos disseminando as propostas que construímos coletivamente em 60 cidades do Rio Grande do Sul, e eu não tinha visitado 60 cidades. Era uma expressão de que o trabalho que fizemos em Porto Alegre começou a repercutir em nível estadual, e especialmente pelo combate ao racismo. O Rio Grande do Sul tem mais de 1 milhão e 200 mil pessoas que se autodeclaram negras, é uma força social muito forte. Então realmente a votação foi um elemento importantíssimo na Capital, mas de 51 mil votos, creio que é uma forma de referendar o trabalho que a gente construiu, agora poder estar entrando nesse patamar.
Um detalhe que se observa é o uso das redes sociais como uma potente ferramenta nestas eleições...
As redes sociais são uma ferramenta importante, tem uma limitação estratégica, uma vez que estamos falando de grandes conglomerados empresariais internacionais, que limitam por vezes as expressões de pensamentos, de circulação de ideias naquela rede. Mas por outro lado permite que cheguemos em dezenas de milhares de pessoas, também em várias ocasiões, como foi o tema do passe livre, em Porto Alegre.
Precisamos compreender essas ferramentas, saber que estamos jogando no campo que não é o nosso, não é o campo da classe trabalhadora de uma perspectiva ideológica, de estruturação desses ambientes. Então tem uma similaridade aí com a mídia tradicional, e debates estratégicos que fazemos no campo da democratização da comunicação.
Dito tudo isso, nós temos que saber utilizar bem, se atualizar sobre essas informações que as redes propõem para comunicar ali dentro. Eu me dedico pessoalmente a essa tarefa, conto com uma equipe também que faz uma atuação muito intensa. E digo sempre para as pessoas que hoje é um instrumento que permite que eu dialogue com o grande público, mostrando o que é o trabalho de um parlamentar na nossa perspectiva, antirracista, ecossocialista, de enfrentamento do cotidiano, de fazer trabalho de base, de estar conectado com os movimentos sociais.
Uma outra forma de fazer política que alcançamos muita gente, e me deixa muito feliz em várias ocasiões, muitas pessoas negras de comunidade vem falar comigo: hoje eu estou acompanhando a política através das tuas redes, eu vejo como acontece, eu gosto de acompanhar a discussão política agora de Porto Alegre, porque eu estou te seguindo. Então esse trabalho tem realmente uma função política social importantíssima, e queremos apostar nele cada vez mais, agora a nível estadual também.
Como será trabalhar dentro da Assembleia com um governo de direita, ou conservador, sendo Eduardo Leite ou Onyx?
Teremos que trazer vários dos acúmulos que construímos aqui na Câmara, em Porto Alegre. Enfrentamos uma coalizão que une o bolsonarismo e o centrão tradicional da política gaúcha e do governo nacional. Fizemos muitas denúncias para mobilizar a sociedade, para mostrar porque que uma série de direitos não estão sendo acessados pela população, um trabalho intenso de fiscalização, de organização popular.
Eu creio que esse é o caminho para enfrentarmos o conservadorismo, que independente das alternativas que vierem a vencer no segundo turno, vai ser a tendência, o neoliberalismo. Obviamente o Onyx tem um projeto abertamente autoritário, bolsonarista. Nesse aspecto ele se diferencia do Leite, mas do ponto de vista de ataque aos direitos sociais infelizmente eles caminham juntos, e governaram juntos o estado, inclusive nos últimos oito anos.
O caminho vai ter que ser apostando muito na organização popular, em um trabalho de mobilização permanente em nível estadual que não é fácil, mas é o que nós vamos precisar construir nesse momento.
E falando de eleição, também tem a questão do segundo turno agora em nível nacional. Qual a análise que tu fazes desse segundo turno?
Eu fico contente que tenhamos obtido resultados positivos em Porto Alegre e na Região Metropolitana, tanto na candidatura do Lula como também na candidatura do Edegar Pretto, do Olívio Dutra, foram muito bem votados aqui na Capital. Acho que já é um cenário diferente da última eleição. Então nos aponta a perspectiva de ter algumas mudanças.
Por pouco nós não fomos para o segundo turno em nível estadual. É algo que lamentamos muito, mas mostra também a força que a frente de esquerda entre PT, PSOL, PCdoB, PV e REDE construiu aqui.
Agora, é partir desse acúmulo para fazer a nossa parte aqui no Rio Grande do Sul e tentar diminuir a diferença que o Bolsonaro abriu do Lula no primeiro turno no nosso estado. Essa é a tarefa central que temos para construir agora, chamar os eleitores que votaram em outras candidaturas como o Ciro, a Tebet, ou candidaturas da própria extrema esquerda também, que precisamos dialogar nesse momento, os indecisos, quem não foi votar.
É um trabalho que exige da militância muita paciência, porque é quase um garimpo. É minoria que está ali nas ruas ou nos bairros que não tem uma posição sobre o segundo turno, precisamos dialogar, muitos não querem. Os militantes nesse momento precisam ter muita paciência, disposição de conversar. Trabalhar os temas que são estratégicos na vida das pessoas, discutir a valorização do salário mínimo, as melhorias nas condições do mundo do trabalho que a gente quer fazer, revogando a reforma trabalhista, o fim do teto dos gastos sociais, que vai trazer mais investimento pra educação, saúde, assistência social, a mudança na política de preços da Petrobras em nível nacional, esmiuçar esses temas na vida das pessoas, e combater as fake news. Esse é o esforço fundamental que temos para fazer agora.
Essa questão das fake news é um grande ponto a ser combatido. Como desmentir essa forte corrente que se forma no WhatsApp?
Temos que dialogar, temos que ouvir o que elas têm para nos dizer, acolher em certa medida as questões que elas nos trazem, e a partir daí ter uma pedagogia do diálogo ali que nos permita dizer o que não é verdade. Porque hoje em dia é muito complexo debater esse tema da verdade junto com as pessoas, porque parece que cada um tem a sua e que é assim que funciona, e não é.
Por exemplo, sobre as decisões judiciais nesse momento, que tiram do Lula o peso das várias denúncias que foram feitas ao longo dos últimos anos, isso é o concreto, foi feita uma investigação, feito todo um processo de, enfim, um escrutínio total da vida do Lula e da família dele, não se achou os elementos. Precisamos, de alguma maneira, conversar sobre esse tipo de questão com as pessoas, para não ficar aquela ideia que se tem muitas vezes, todo mundo é igual, todo mundo está envolvido em corrupção.
Existem diferenças, esse discurso foi produzido, ele foi construído nesse momento. Agora temos que conseguir romper os pontos que unem essa falsa narrativa e mostrar para as pessoas o que está em questão de fato. Esse é um tema dos mais complexos, a questão da corrupção, propor os mecanismos que têm que ser construídos pra existir investigação, liberdade democrática de acessar, termos noção do que se passa numa estrutura de governo, que vai contra essa lógica do sigilo de 100 anos, do ataque à liberdade de imprensa. São temas complexos, mas a gente precisa encarar eles, porque eles estão na área pública, nesse momento pra vencer a eleição nós temos que encarar.
O nosso grande desafio, para vencer o segundo turno agora, é ter uma estratégia bem-organizada e, ao mesmo, tempo construir grandes mobilizações também. Isso vai fazer a diferença.
Vimos o crescimento do PSOL como de outros partidos de esquerda, junto com o crescimento do bolsonarismo. Como que tu vês esse cenário?
Crescemos pelo enfrentamento que foi construído nos últimos anos, desde o período do golpe, mas especificamente nos quatro anos de governo Bolsonaro, não saímos das ruas em momento algum, nem na pandemia. Porque naquele momento nós tínhamos que fazer ações de solidariedade, estar junto com a população trabalhadora enfrentando aquele contexto.
Isso nos deu autoridade para chegar nessa eleição e conquistar a votação que não só eu tive, mas outros companheiros do partido, da bancada negra. Não foi um trabalho do nada, bem pelo contrário. Mas o nosso crescimento ainda é pequeno frente às necessidades da situação política nacional.
Nós temos hoje mais de 30% da população brasileira que nunca abriu mão do apoio ao Bolsonaro, ele representando toda a conjunção de crises que o Brasil vive nesse momento, tem uma força política ideológica que nós precisamos superar nos próximos anos. Nesse sentido, o esforço que teremos que fazer daqui para frente é sim do crescimento cada vez maior das organizações políticas, dos movimentos sociais, do trabalho de base que construímos, da confiança que nós precisamos ter na população trabalhadora para criar uma real alternativa de poder em nível nacional, é o que nós queremos. Não é um desafio pequeno, bem pelo contrário, é o desafio das nossas vidas, avançar no fortalecimento da organização popular e da influência política.
Esse crescimento também vem com a posse do partido, os partidos começaram a apostar mais na questão da representatividade, investindo mais também?
É, mudamos a forma do debate político nos últimos anos. Eu venho de uma geração que mesmo dentro da esquerda, há mais de 10 anos atrás, tinha resistência à forma partido, do interior dos movimentos sociais. Tinha um certo rechaço até que foi uma ideia de antipolítica que acabou se desenvolvendo na própria classe trabalhadora. E se explica em diferentes aspectos por uma relação complicada que acaba existindo quando a esquerda assume as estruturas de governo, e os movimentos sociais como que ficam no meio desse contexto. Enfim, são mensagens dúbias que são transmitidas entre a direção e a base, quando se está na estrutura de poder.
Por outro lado, o bolsonarismo cresceu nessa esteira, também incentivando a antipolítica e dando uma forma retrógrada, autoritária, para essa questão. Precisamos superar isso. Mas avançamos bastante. Hoje nos movimentos sociais, a abertura que existe para as alternativas políticas da esquerda é superior. Agora, precisa expandir dessa bolha, nós podemos chegar no grosso da população trabalhadora e utilizar de novas formas, novas metodologias de organização.
Precisamos dialogar com a realidade da classe trabalhadora que hoje está mais informalizada, com menos direitos sindicais inclusive, com organizações de base nas periferias que estão mais fragilizadas. Hoje não estão com uma estrutura tão pujante, as associações de bairro, coletivos de cultura foram articulados, nós estamos numa realidade que exige essa renovação também dos métodos de organização para conseguirmos desenvolver esse contexto.
Quais os principais projetos que tu vais levar pra Assembleia?
Queremos deixar um legado da formulação de políticas públicas de combate ao racismo no Rio Grande do Sul, e de uma mobilização da sociedade para o combate ao racismo. Isso é um tema que para nós tem que ser central, nós somos da primeira bancada negra da história, agora é provar em nível estadual que o combate ao racismo é uma pauta universal, não é uma pauta apenas de negras e negros.
Quando debatemos nesse momento a situação de insegurança alimentar do RS, o acesso à educação pública de qualidade, políticas de habitação, nós estamos pensando nas principais necessidades da comunidade negra do RS, que é a maioria que está em condição de pobreza nesse momento. Mas também estamos pensando na sociedade como um todo.
A política antirracista tem condição de ser uma política universal, porque a lógica que sempre se estruturou em nível nacional é quem está no topo da pirâmide social, a população branca, dirigindo e olhando para si mesma. Nós viemos de baixo, então observamos o conjunto, e temos condição, a partir dessa lógica, de transformar a condição econômica e social do RS como um todo.
Falando de avanço, eu e a Clara visitamos o Quilombo dos Alpes esse final de semana, e uma das questões que abordamos é que o IBGE finalmente colocou nesse ano a pergunta se as pessoas se consideram quilombolas.
É um avanço importante, a gente precisa codificar a nossa população para também saber as necessidades dela, e não apenas tratar como números, mas observar a realidade por trás desses números. Então o IBGE ter colocado a alternativa pra população quilombola se autodeclarar é um avanço importante. A partir disso a gente vai ter uma base também pra desenvolver essas políticas que eu falei anteriormente, vai se fundamentando.
Tu vens de uma campanha que está finalizando agora com segundo turno também, bastante desgastante. Como que tu vês essa mudança de rotina, as expectativas para próximo ano?
Não vamos ter muito tempo de descansar, porque é uma transição entre o mandato da capital gaúcha e em nível estadual também, e que nós queremos fazer da maneira mais qualificada. Isso exige um esforço redobrado de estudo, de preparação dos projetos que vamos apresentar inicialmente, da articulação social que sustenta o nosso mandato.
Nós temos um conselho político hoje que reúne diferentes entidades, representações do Movimento dos Trabalhadores sem Teto (MTST), do Movimento sem Terra (MST), do Afronte, do movimento estudantil, lideranças de associações de bairro, de movimentos culturais, intelectuais, enfim. Tudo isso sustenta a nossa intervenção e faz com que possamos ter uma alta rotação do debate do enfrentamento político.
Nós não estamos sozinhos, além da assessoria da Câmara nós temos outras dezenas de assessores informais que produzem conteúdo conosco, dão forma na resistência que dialogamos no dia a dia. Vamos ter que organizar tudo isso agora na escala estadual, e conseguir já de início apresentar projetos que se conectem diretamente com as demandas mais urgentes da população trabalhadora do nosso estado.
Nos parece que nesse primeiro momento ainda o tema do combate à fome e a insegurança alimentar vai ocupar um espaço privilegiado na nossa agenda. Como também toda a pressão que a gente precisa fazer para reorganização da rede de proteção social, de direitos da população trabalhadora do RS, que está extremamente fragilizada nesse momento. E começar pela educação, que é um tema fundamental.
*Com a colaboração de Clara Aguiar.
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“Nos últimos 20 anos mudamos o debate sobre a questão racial no Brasil”, diz Matheus Gomes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU