07 Outubro 2022
“Visitei cidades populosas e comunidades nascentes, campos fecundados pelo trabalho e imensas planícies não tocadas pela mão do homem, conheci emigrantes que tocaram o cume da riqueza, outros que viviam com conforto, e mais a imensa falange obscura dos pobres, que lutam pela vida contra os perigos do deserto, as insídias dos climas insalubres, contra a rapacidade humana, sozinhos em supremo abandono, na penúria de todos os confortos religiosos e civis e de tudo; ouvi os corações palpitarem em uníssono com o meu...".
Domingo de manhã, em São Pedro, 117 anos depois de ter enviado ao Papa Pio X o seu extraordinário “Memorial para a constituição de uma comissão pontifícia Pro emigratis catholicis" de 1905 com o relato de algumas de suas viagens entre os italianos espalhados pelo planeta, Giovanni Battista Scalabrini se tornará santo. Justo agora que volta a se inflamar o tema da imigração e do "bloqueio naval" invocado pela direita? Suspeitas insensatas: a beatificação do bispo de Piacenza, conhecido no mundo por ter fundado as congregações dos missionários Scalabrinianos e talvez o primeiro a ter tido uma ideia lúcida e global do fenômeno, foi celebrada em 1997 pelo Papa Wojtyla e já há décadas L'Osservatore Romano dedicava páginas de admirável devoção ao "Apóstolo dos Emigrantes". Mas certamente um filho de emigrantes como o Papa Francisco experimentará uma emoção a mais no domingo.
A reportagem é de Gian Antonio Stella, publicada por Corriere della Sera, 06-10-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
O novo santo foi, de fato, um dos primeiros a teorizar, como atesta um trecho da Antologia: una viva voce, o "direito natural" dos homens à emigração. Uma tese cantada no final do século XIX também por anarquistas como Francesco Bertelli (“A casa é de quem nela mora / é vil quem o ignora / o tempo é dos filósofos / a terra é de quem a lavra"), mas talvez nunca resumida com a profundidade e fé do bispo.
Falava dos "nossos" emigrados, dos italianos. Ele se irritava com aqueles que atrapalhavam o sonho de "catàr fortuna" alhures, como os pobres diabos amontoados na estação de Milão: "Em seus rostos bronzeados pelo sol, sulcados pelas rugas precoces que a privação costuma deixar, transpirava o tumulto dos afetos que agitavam naquele momento os seus corações. Eram velhos curvados pela idade e pelo cansaço, homens na flor da virilidade, mulheres que puxavam ou carregavam no colo seus filhos, menininhos e garotinhas todos irmanados por um único pensamento (...) e esperavam com trepidação que o vapor os levasse às margens do Mediterrâneo ou mais além, nas longínquas Américas”.
Ele se irritava com os proprietários de terras “preocupado com este súbito empobrecimento de braços, que se traduz em um adequado aumento de salários para aqueles que permanecem" e levavam "suas queixas ao governo" para obter providências “para sanar e circunscrever essa doença moral, essa deserção, que despoja o país de braços e capital frutífero”.
Pedidos inaceitáveis para ele. Ao bloquear a emigração "viola-se um direito humano sagrado", uma vez que "os direitos humanos são inalienáveis e, portanto, o homem pode ir buscar o seu bem-estar onde mais lhe aprouver”. Não bastasse, argumentava, "a emigração, força centrífuga, pode tornar-se, quando bem direcionada, uma força centrípeta muito poderosa" capaz de "imenso proveito". Tese que em 1901, dois anos após o linchamento de onze italianos em Tallulah, Louisiana, também expressou a Theodore Roosevelt: a imigração foi um recurso extraordinário, um verdadeiro dom para um país que estava crescendo como os EUA.
Nascido em Fino Mornasco em 1839 de uma família muito católica, "candidato ao sacerdócio" desde muito jovem, frequentou o seminário durante os anos do Risorgimento a ponto de deixar nele algumas dificuldades, como escreveu o historiador Matteo Sanfilippo, em “equilibrar a pertença nacional e filiação religiosa", sacerdote aos 24 anos com "o sonho de ir às Índias evangelizar os infiéis" (direitos autorais de Graziano Battistella na biografia Scalabrini vescovo fondatore), mas segurado pelo bispo de Como com a nomeação como professor e vice-reitor (mais tarde reitor), bispo de Piacenza aos 36 anos, conseguiu se fazer amar como poucos com gestos que passaram à lenda.
Resumidos em 1980 por Raimondo Manzini, no "Osservatore Romano", em poucas linhas: "Ele vendeu a parelha (naquela época se usava os cavalos e não os cavalos a motor) dizendo que o bispo pode muito bem ir a pé; vendeu o cálice de ouro para substituí-lo por um de estanho ou latão, vendeu as pedras da sua cruz para resgatar para os pobres os penhores do Montepio. ‘Se continuar assim vai morrer na palha’, disse-lhe um familiar. ‘Não seria tão ruim’, respondeu o bispo, “dado que na palha Cristo quis nascer’”.
Nem é preciso dizer que no mundo sofrido da emigração italiana conseguiu tocar o coração de todos. É claro, ele não foi a única figura proeminente entre nossos missionários no exterior. Basta lembrar Francesca Cabrini, infatigável fundadora das Missionárias do Sagrado Coração de Jesus e canonizada em 1946 como a primeira santa estadunidense, padroeira dos emigrantes. Ou a lendária Maria Rosa Segale, levada para os EUA quando tinha quatro anos, tornou-se famosa como Irmã Blandina no extremo Velho Oeste (os jornais da época lhe dedicaram inesquecíveis retratos) por ter parado na entrada da cidade de Trinidad, no Colorado, um furioso Billy the Kid determinado a fazer um massacre.
Talvez ninguém, no entanto, como o amigo Geremia Bonomelli, bispo de Cremona, tenha pesado tanto na história da emigração italiana. A partir da insistência na necessidade que o Estado italiano, distraído se não indiferente (além da imposição do serviço militar) se encarregasse do problema. E da batalha de 1888 contra um projeto de lei que, mencionando novamente Manzini, “Aprovava a concessão aos chamados ‘agentes da emigração’ de fazer os alistamentos, o que significava legalizar a praga dos chamados ‘caça-recompensas’, que contratavam, fazendo-os pagar taxas altíssimas e expondo-os a condições miseráveis, situações proibitivas e um conjunto de perigos, aqueles trabalhadores agrícolas e industriais que procuravam pão além das fronteiras da pátria”. Pão que, escreveu citando Dante, o bispo de Piacenza tinha gosto de sal e estava "molhado de lágrimas".
Scalabrini perdeu aquela batalha. Mas ele estava certo. E treze anos depois o governo e o Parlamento foram forçados a retroceder admitindo no texto para uma nova lei:
“Todos nós erramos em 1888 e não percebemos na época que precisávamos de providências em matéria econômica e social; não só ou principalmente de polícia: o que se deve procurar é a inviolabilidade da pessoa do emigrante, exposta a tantas ofensas, a tantos sofrimentos; até agora e vezes demais o emigrante foi o meio ou o instrumento para enriquecer aqueles que se encontravam ao seu lado a pretexto de lhe prestar um serviço”.
Palavras que parecem escritas ontem de manhã contra os traficantes líbios, os senhorios abusivos que amontoam imigrantes em fétidos casebres, os bandidos imundos que se aproveitam de homens e mulheres que, como diria São João Batista Scalabrini, "atraídos (aqui) por vãs esperanças ou falsas promessas, encontraram uma ilíada de problemas, o abandono, a fome e não raro a morte, onde acreditavam encontrar um paraíso”.
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O bispo dos migrantes torna-se santo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU