05 Outubro 2022
"Não há menção à guerra em curso com a Ucrânia nas comunicações públicas do evento. Como se o mundo monástico pudesse se abstrair do que irá caracterizar a história do país por décadas e não fosse chamado a formular um juízo espiritual sobre o que está acontecendo. Como se sua dimensão profética não fosse chamada a dialogar e criticar a orientação do episcopado e do próprio patriarca".
O artigo é de Lorenzo Prezzi, teólogo italiano e padre dehoniano, publicado por Settimana News, 20-09-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Atualmente, os mosteiros da Igreja Ortodoxa Russa são 947, dos quais 458 são masculinos e 489 femininos. Em 2006 eram 713. 570 dos atuais mosteiros estão localizados no território da Federação Russa: 277 masculinos e 293 femininos. 36 são os mosteiros estavropegos, ou seja, que dependem diretamente do patriarca e não do bispo local (17 masculinos, 19 femininos).
Os números surgiram durante a assembleia de abades e abadessas que reuniu 500 deles em Moscou, vindos de 135 dioceses, e à qual o Patriarca Kirill dirigiu um longo discurso em 23 de setembro.
A vida monástica na Rússia é um dos pilares da história daquela Igreja, mas sua explosão numérica (só nos estavropegos estão 2.073 monges e monjas, enquanto os números totais falam de 5.883 monges e 9.687 monjas) ocorreu após o colapso do União Soviética e a plena legitimação da vida da Igreja. Estão difundidos tanto nas cidades quanto nos territórios periféricos.
A atual é a terceira assembleia. Os encontros anteriores aconteceram em 2014 e 2016.
Em relação ao tempo da perseguição e dos séculos anteriores, a liderança episcopal limitou a autonomia dos cenóbios em relação ao bispo local e introduziu uma série de indicações gerais para disciplinar o tumultuado desenvolvimento que, por vezes, levou os neófitos “a ‘proezas’ irracionais que danificam os mosteiros, tanto por dentro como por fora”.
A partir de 2010, foram publicados uma dezena de documentos que regulam a vida dos mosteiros.
A primeira e fundamental referência é o Regulamento sobre mosteiros e monges, que amadureceu em 2017.
A exigência de um quadro compartilhado de comportamento já havia surgido no concílio de Moscou em 1918, mas a revolução bolchevique e a perseguição impediram qualquer desenvolvimento. Veio à luz um século depois e contém as diretrizes gerais com referências históricas e patrísticas até as determinações canônicas. A gestão do mosteiro, o papel do guia espiritual e as obediências monásticas são definidas.
Também são oferecidas orientações sobre as regras internas, o ritmo de vida, o horário dos serviços litúrgicos e as características da obediência monástica. Deixando os espaços necessários para que cada mosteiro especifique suas próprias normas.
Documentos posteriores desenvolveram os materiais de apoio para facilitar aos abades e às abadessas a elaboração de estatutos monásticos, as indicações necessárias para a formação dos jovens postulantes tanto espiritualmente quanto no viés da formação teológica.
Outro texto é dedicado à tarefa monástica do guia espiritual e à regra pessoal dos monges. No Guia Espiritual dos Monges, o pai espiritual é assim definido: "A orientação espiritual é um serviço especial confiado a uma pessoa espiritualmente provada e que consiste numa ajuda multiforme ao discípulo no seu caminho para Cristo". Na tradição russa o pai espiritual é o abade que é também o confessor, ao contrário do que acontece na Igreja ocidental que mantém a figura do superior separada daquela do confessor, o foro externo do foro interno. A questão dos abusos de poder e de consciência parece ainda não ter nenhuma relevância no monaquismo russo.
Outros textos dizem respeito aos aspectos práticos da admissão ao mosteiro e à relação com o mundo exterior.
Normas mais restritivas do que no passado são as que regulam a atividade pastoral dos monges nas comunidades dos fiéis. Só será possível com mandato direto do abade e por tempo determinado.
Outro texto é dedicado aos serviços dos monges nos conventos femininos. Nele se estabelece que a pessoa responsável pela orientação espiritual é a abadessa, enquanto o confessor, que não pode morar no mosteiro, deve ser escolhido entre aqueles que têm longa experiência de vida espiritual.
Está em preparação um documento sobre a utilização da Internet e das redes telemáticas. O computador não estará nas celas, mas em um lugar comum e seu uso será regulado pelo abade.
A ampla intervenção do Patriarca Kirill variou desde os temas básicos da vida monástica até algumas indicações relativas aos meios de informação. Citando alguns clássicos do monaquismo, como Silvano do Monte Athos, Simeão, o novo teólogo, Serafim de Sarov, ilustrou a singularidade da vocação ("Toda vez que vemos uma pessoa escolher o caminho monástico, testemunhamos um milagre de Deus"), da ascese ("Eu gostaria de alertar a todos nós contra cairmos na turbulência mundana”), da oração (“Hoje mais do que nunca o mundo precisa de oração”), algumas virtudes como humildade, paciência, vigilância, compaixão, mansidão, obediência.
Insistiu no grande ganho das novas gerações: o de poder buscar recurso sem dificuldade nos textos clássicos do monaquismo e dos sílogos dos Padres. “Apenas algumas décadas atrás, em nossa pátria, a Sagrada Escritura e os livros dos santos padres eram proibidos. Com muita dificuldade, podia se encontrar uma reimpressão de textos publicados antes da revolução... Hoje esse tesouro está aberto para nós e todos têm a oportunidade de ler e aprender a ciência da vida monástica”.
“Em nossos dias há uma tentação perigosa que pode extinguir o fogo espiritual mais forte. Gostaria de dizer algumas palavras sobre isso. Trata-se dos numerosos fluxos de informação que são derramados sobre cada um de todos os lados. Hoje pede-se aos monges um tipo particular de ascetismo que significa abster-se da informação excessiva, das visitas frequentes ao espaço mediático, do seu envolvimento invasivo na vida”.
Entra-se nesse mundo com a simples pressão de seu dedo, mas ainda não sabemos o quanto o espaço virtual modifica a vida. "Quando um monge visita o espaço da internet, mesmo que o faça por obediência, deve estar ciente de que está entre as ondas do mar da vida em um mundo furioso que jaz no mal" com o perigo de se tornar um prisioneiro de paixões grosseiras como a vaidade, a presunção, a mentira. Muitas vezes os usuários não estão cientes de que são "controlados" passo a passo e se iludem de ficar invisíveis.
A assembleia é uma ocasião de grande importância e certamente de consolo para a Igreja Ortodoxa Russa.
No entanto, uma questão permanece. Não há menção à guerra em curso com a Ucrânia nas comunicações públicas do evento. Como se o mundo monástico pudesse se abstrair do que irá caracterizar a história do país por décadas e não fosse chamado a formular um juízo espiritual sobre o que está acontecendo. Como se sua dimensão profética não fosse chamada a dialogar e criticar a orientação do episcopado e do próprio patriarca.
Algumas centenas de padres diocesanos tiveram, nos primeiros dias da guerra, a coragem de denunciar a loucura da operação "especial" na Ucrânia. Nenhuma voz do mundo monástico. Há apenas uma passagem na saudação final do patriarca à “luta que a Igreja está travando com as forças do mal” e “aos tempos difíceis em que temos que viver”.
Certamente não surpreende a referência à oração contínua ou oração do coração diante da assembleia dos abades e das abadessas. Surpreende a oração do Patriarca Kirill de 25 de setembro: “Senhor, Deus da força, Deus da nossa salvação... tende piedade de nós: aqui estão diante de nós aqueles que querem lutar contra a Santa Rússia, que esperam dividir e destruir o teu povo. Levanta-te, ó Deus, para ajudar o teu povo e dar-nos a vitória com o teu poder... Confirma os soldados e todos os defensores da nossa pátria em teus mandamentos, envia sobre eles a força do Espírito, salva-os da morte, das feridas, do aprisionamento!... Concede o perdão dos pecados a todos aqueles que nestes dias foram mortos e morreram por feridas ou doenças... Tu és intercessão, vitória e salvação para aqueles que confiam em ti”.
Na mesma ocasião, o patriarca afirmou a salvação eterna para os combatentes: "A Igreja está ciente de que se alguém, movido pelo sentido do dever, pela necessidade de cumprir um juramento, permanece fiel ao seu intento e morre no exercício do dever militar, então ele sem dúvida realiza um ato que equivale a um sacrifício. Ele se sacrifica pelos outros. Acreditamos que esse sacrifício anule os pecados que uma pessoa cometeu”.
Com amarga ironia, um comentarista, Peter Anderson, pergunta-se: "O Patriarca Kirill afirmaria que até mesmo os soldados ucranianos que morrem na guerra são perdoados de todos os pecados?".
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Monaquismo russo: números e desafios. Artigo de Lorenzo Prezzi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU