28 Setembro 2022
O ano de 2022 registra um marco histórico para a igreja católica. Trata-se do anúncio em maio e criação em agosto, do primeiro cardeal da Amazônia: Dom Leonardo Ulrich Steiner. A escolha é cheia de significados.
A entrevista é de Marcelo Menna Barreto, publicada por Extra Classe, 23-09-2022.
A cerimônia de criação ocorreu em 27 de agosto, no oitavo consistório do pontificado do Papa Francisco que, desde sua eleição em 2013, tem investido no que chama de “periferias geográficas e existências”.
A escolha do Papa Francisco é mais uma indicação da nova cara que está sendo dada à milenar instituição após a renúncia do conservador Bento XVI.
Mostra também a importância da região amazônica não só para a geopolítica e interesses de grupos econômicos dentro e fora do país, mas também como zona de influência da Sagrada Igreja.
Dom Leonardo passa agora a fazer parte do Sacro Colégio que é composto por 229 integrantes, também conhecidos como Príncipes da Igreja.
Por estar com 71 anos de idade, ele está na categoria dos 132 cardeais eleitores, aqueles que, com menos de 80 anos de idade, adentrarão à Capela Sistina para eleger um novo Papa no caso da morte ou renúncia de Francisco.
Nesta entrevista exclusiva ao Extra Classe, Dom Leonardo, primo de um Príncipe da Igreja que marcou a história do Brasil, o também franciscano Dom Paulo Evaristo Arns (1921-2016), fala um pouco dessa sua nova missão que, nada mais é, segundo suas palavras, a de auxiliar o Papa em seus propósitos.
Em 2020, após o Sínodo da Amazônia, Francisco escreveu a exortação apostólica Querida Amazônia. No documento, ele afirmou querer ver uma região com mais justiça social onde o cristianismo não elimina, mas enriquece as culturas locais; onde a ecologia seja defendida, com missionários que não se envergonhem de Jesus Cristo.
Em toda a história da Igreja nunca houve um Cardeal no Amazonas. Como o senhor se sente sendo o primeiro?
O cardinalato é uma escolha pessoal do Papa. Não é mérito da pessoa. Às vezes, ele nomeia um bispo de uma região que ele considera importante, como no caso, agora, da Amazônia. Aqui sempre havia uns comentários do tipo “bem que o Papa poderia nomear um bispo da região como Cardeal; seria tão importante para a Igreja e para a região”. Então, se falava. Caiu sobre a minha pessoa a escolha do Papa e eu fiquei feliz pela alegria das pessoas daqui. Eu não imaginava que houvesse tantas manifestações de alegria pela nomeação de alguém para ser Cardeal na região da Amazônia. Não só internamente na Igreja, mas na própria sociedade.
Depois de dois pontificados mais voltados para um rigorismo na Fé católica, disciplina eclesiástica e litúrgica, surgiu Francisco com uma mensagem de misericórdia e de uma fé mais encarnada em um mundo que precisa ser mudado. Como é ser criado Cardeal dentro dessa perspectiva?
Ser Cardeal nesse tempo – se é que aquilo que se diz que o Cardeal é – aquele que o Papa escolhe para ajudá-lo, significa nós sermos presença misericordiosa. Quando nós refletimos o pontificado do Papa Francisco, você tem toda a razão, ao falar da misericórdia. O ano da misericórdia nos ajudou a compreender essa perspectiva, essa dimensão profunda que ele está dando ao ministério dele. Eu diria que a misericórdia é o fundamento do ser da Igreja. Ele (o Papa) tem sempre demonstrado isso com gestos concretos. Palavras também, mas, em especial, gestos. Como o que fez com a questão da imigração, a questão dos pobres, a questão de sermos mais atentos aos casais de segunda união, sermos mais atentos aos homoafetivos, sermos mais atentos aqueles que são excluídos que tem, para nós, indicado uma proximidade maior com os povos indígenas, com os povos originários.
A questão da justiça?
Tudo isso, veja, tem a ver com a misericórdia, esse modo de Deus de ser no meio de nós em Jesus Cristo que sempre esteve próximo daqueles que sofreram. Sempre esteve próximo. Não é que os Evangelhos escolheram o modo de Jesus. Esse é o modo de Deus. Ao recordar a misericórdia, o Papa Francisco está dizendo assim: “olha, o fundamento da Igreja é a misericórdia”. Se para a sociedade civil o fundamento é a ética – com as relações todas se pautando pela ética, educação, justiça – na Igreja, nossas relações se baseiam, estão fundamentadas, alicerçadas, na misericórdia.
A cerimônia de criação do cardeal Dom Leonardo Ulrich Steiner ocorreu em 27 de agosto, no oitavo consistório do pontificado do Papa Francisco
Foto: Assessoria de Comunicação da Arquidiocese de Manaus | Divulgação
E a fome?
Não é por nada que o Papa colocou no seu texto sobre a misericórdia um final que é, digamos assim, o ápice do texto de Mateus: estava nu e me deste de vestir, estava com fome, me deste de comer, estava com sede, me deste de beber, era peregrino e me recebeste, estava na prisão, me visitaste. Ora, essas chamadas obras de misericórdia fazem com que a Igreja se torne uma obra de Deus e que nós nos tornemos modelos de obra de Deus.
Como um Cardeal das Florestas, como o senhor já vem sendo chamado, pode dar mais visibilidade às lutas dos marginalizados da região?
Veja o que está acontecendo aqui na Amazônia com a morte do Bruno e do Dom. Isso não é uma coisa esporádica. Não é! Se tornou notícia porque um deles é estrangeiro e da imprensa. Fora isso, nós, graças a Deus, estamos percebendo setores que são muito atacados como os povos indígenas, os povos originários, cada vez mais organizados. Eles hoje têm uma consciência muito nítida do ser deles e do seu modo de vida; da sua casa. Nós falamos território; quando eles falam de território, estão falando da sua casa.
E a violência na busca por territórios para garimpo, grilagem e outras atividades predatórias?
A grande dificuldade é esta violência que vem de fora, que está em busca de terra, da madeira, da pesca predatória. Nesse sentido, eu penso que uma das tarefas nossas como Igreja é incentivar cada vez mais a organização e que os povos da região tenham cada vez mais a percepção de quem são e os ajudar na questão da preservação do seu meio ambiente. Graças a Deus, a Igreja nos últimos anos não tem se ausentado. O Cimi (Conselho Indigenista Missionário) dá um belíssimo testemunho. O Cimi não só apoia; o Cimi está junto com os povos indígenas, os escuta, não impõe, assessora, ajuda. Mas, existem outras questões que nós temos também em nossa região, como os quilombolas, apesar de em menor número, os catadores – não no sentido de catar lixo, mas os que vivem da coleta de frutas e sementes. Eles estão, também, cada vez mais organizados.
Fora isso, na Amazônia, algum outro ponto de atenção?
Talvez nós tenhamos que pensar mais é em relação às nossas comunidades ribeirinhas. Elas têm uma vida mais autônoma, tem uma determinada harmonia, mas nelas também cresce devagar a violência. Os nossos rios, devagar, se tornam violentos. Não existia essa violência entre os ribeirinhos. Ela vem através da ganância. Da ganância que vem atrás de terra, de madeira, como já disse e do garimpo que aqui é uma desgraça. Como, agora, agirmos? Penso que temos que exigir do governo uma maior fiscalização, mas também indo, cada vez mais, fortalecendo as entidades, as organizações.
À exemplo do período ditatorial, vemos hoje questionamentos do papel social da Igreja Católica. Se Médici sugeriu que Dom Paulo e padres que combatiam as arbitrariedades devessem ficar na sacristia, hoje vemos empresários como Luciano Hang chamando um padre Júlio Lancelotti de membro da “turminha do PT” pelo seu trabalho com a população de rua. Como o senhor vê isso?
Olha, o Dom Helder (Câmara) tinha uma expressão muito interessante. Dizia que quando ele ia ao encontro dos pobres e cuidava deles, era chamado de santo. Agora, quando perguntava por que eles eram pobres, o chamavam de comunista. Então, o padre Júlio Lancelotti questiona, além de ir ao encontro e estar no meio da população de rua, dos desassistidos. É uma grandeza o ver servindo todo mundo e ouvindo. Agora, quando ele começa a dizer que o Estado tem uma responsabilidade, aí ele começa a ser um estorvo. E eu acho que é assim mesmo. É assim mesmo. Enquanto você está dando o pão, dando comida, está bem; mas, quando você começa a questionar a estrutura, as relações que levaram a uma situação de injustiça, aí envolve o poder, envolve o legislativo, envolve o Executivo, envolve o Judiciário. Envolve todas as camadas sociais.
Assim mesmo?
Quando você faz determinadas perguntas, você desperta para a responsabilidade da sociedade que, no fundo, foi quem criou essa possibilidade de exclusão, que está empurrando as pessoas para fora. Esse modo de convivência baseada apenas no lucro, no prazer, leva devagarzinho as pessoas à margem e as pessoas que buscam reintegrar essas pessoas, encontram dificuldades. Mas, nós como Igreja, temos uma responsabilidade. Nós não podemos fazer uma ação meramente assistencialista. A nossa ação tem que ser caritativa, dar de comer mesmo, mas, ao mesmo tempo, tentar mudar as estruturas para que as pessoas possam participar ativamente da vida social e se sentirem cidadãos. Se não se sentem cristãos, se sentem cidadãos.
O senhor foi secretário geral da CNBB e, não de hoje, ela sofre questionamentos por ter posições críticas quando entende que a dignidade humana está sendo violada. De um lado, por quem defende pautas como a descriminalização do aborto e questões de gênero; por outro, por quem vê uma postura “comunista” dos bispos na defesa de pautas como moradia para sem tetos, reforma agrária, defesa dos povos indígenas, melhoria da saúde pública e das condições de trabalho. Como é se ver no meio desse fogo cruzado?
O que ajuda muito é nós (bispos) tentarmos permanecer fiéis ao Evangelho e não tomar as críticas, mesmo que sejam violentas, como uma questão pessoal. É tentar ouvir isso tudo não como uma agressão, mas como uma tentativa de as pessoas dizer o que estão pensando. Eu, mais de uma vez cheguei diante do Santíssimo e disse: “olha, isso aqui também é teu. Também é teu. Não me deixe guardar rancor”. Quando a CNBB se pronuncia, ela vê que o que está em jogo são os filhos e filhas de Deus. Sempre isto. Se quisermos resumir em uma palavra: a questão da vida. Todos os textos da CNBB quando, por exemplo, falam de política, da democracia, estão falando da questão da convivência humana, da vida humana, porque democracia tem tudo a ver com isto.
Explique melhor?
Quando falamos de eleições, falamos da vida; quando falamos de aborto, falamos da vida; quando falamos dos idosos, falamos da vida; quando falamos dos jovens, falamos da vida; quando falamos da justiça, falamos da vida. Não tem como a CNBB ter outra postura. As vezes é um momento difícil. Eu me lembro sobre um dos textos sobre o aborto. Não havia muita concordância sobre o modo de dizer, mas a nossa perspectiva era a de como dizer melhor que nós queremos que a vida seja preservada e que o ser humano seja respeitado. Quando a gente faz isto, as vezes até podemos tropeçar em palavras, mas a ideia é se manter fiéis ao mandato que Jesus nos deu.
Quando o senhor era secretário geral da CNBB, o agora presidente Bolsonaro chamou uma vez a entidade de lado podre da Igreja Católica. Como viu isso?
Aí se percebe o que ele pensa, se isso é pensar. É uma expressão que mostra como a pessoa é. Se dizer católico e agredir desse jeito? Durante a campanha eleitoral (2018) alguns grupos recordaram a fala dele por ocasião da CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) em que queriam atacar o Cimi. Um grupo de deputados veio à CNBB para dizer que iriam enviar o resultado ao Santo Padre, assim querendo intimidar um pouco. Eu disse, olha podem mandar sim, mas mandem também para a CNBB que tem todo o interesse de saber os resultados do que foi discutido. Eram coisas que envolviam o Cimi, o Incra, a Funai. Naquela ocasião se atacou muito o Cimi e, com isto, se tentava também atacar a CNBB dada a ligação. Em um determinado momento ele (Bolsonaro) usou essa expressão que no momento das eleições foi recordado. Na época nós não demos nenhuma resposta.
Por quê?
Não achamos necessário ficar respondendo porque nós sabíamos o que estávamos fazendo. Depois houve um apelo até, nas eleições, para que a CNBB soltasse uma nota a esse respeito. Foi quando a quem nos procurou eu disse: olha, isso já aconteceu no passado, não é no momento agora, está sendo recordado, não é conveniente que tanto tempo depois a CNBB se manifeste. Mas, nós na CNBB estamos acostumados a isto. O que as vezes, digamos, atrapalha um pouco é o povo simples ficar pensando assim: nossa, mas é verdade mesmo? Nossa, até os bispos. Aí, sim, atrapalha. Mas, devagar o povo que é mais próximo logo começa a perceber que não é assim, porque eles conhecem os bispos, conhecem os padres. Convivem. A maior dificuldade que eu vejo é quando nós internamente começamos a não nos querer bem.
O que o senhor diz sobre setores da própria Igreja que questionam os temas das Campanhas da Fraternidade e chegam até a estimular que não sejam feitas doações para a Coleta do Domingo de Ramos, sob argumento de que o dinheiro seria revertido para ações de cunho político?
Eu estive à frente da Campanha da Fraternidade por oito anos. Quem é responsável pelo texto da Campanha e pela própria Campanha é o Conselho de Pastoral da CNBB, o presidente e o secretário geral. Tudo isso ainda passa pela Comissão de Doutrina. Ou seja, não é um texto que seja qualquer texto. A escolha do tema não é uma escolha da presidência. É debatido, pensado, refletido. O próprio hino. Tudo é debatido. A oração. Tudo feito com bastante critério. É claro que existe uma reação, especialmente quando são temas que envolvem aspectos sociais e políticos.
Como o senhor define esses grupos?
Os grupos que se manifestam eu chamaria, assim, de mais voltados para uma “tradição” que se esquecem que tradição tem outra compreensão na verdade. Esses grupos reagem e reagem violentamente. Eu penso que isto também faz parte das dificuldades do mundo de hoje, uma insegurança que existe na fé e, em alguns casos, oportunismo político. Então, as pessoas as vezes ficam apegadas a estruturas, a determinados conceitos e tem dificuldades de aceitação.
Mas, atrapalham, não?
A impressão de que as vezes se tem é que é um grande grupo. Na realidade não é tanto assim, mas como têm muitos meios de comunicação, fazem um certo barulho. Isso também não deveria nos incomodar não. Deveríamos, assim, ouvir muito para ver o que existe de verdade e, se existir alguma verdade, levar em consideração. Nós (bispos) é que precisamos ser maduros na fé, ter um profundo amor à Igreja e eles que fazem parte da Igreja, que dizem que o bispo nem é mais católico até, temos que saber acolher. Ao mesmo tempo, saber admoestar. Admoestar no sentido de sermos todos fiéis ao Evangelho. A dificuldade maior que eu vejo é essa falta de caridade no modo de dizer. Esses ataques têm acontecido, inclusive, ao Papa Francisco.
Por falar em oportunismo político. Estamos às vésperas das eleições deste ano. Como vê o cenário?
Nós vivemos uma situação muito difícil no Brasil. A política foi muito atacada. Há uma necessidade de se ‘reencarnar a política’ ainda mais neste momento em que a democracia está em jogo. A Igreja tem se manifestado e, graças a Deus, a sociedade brasileira também tem. A Igreja sempre se preocupou com a democracia, antes mesmo do tempo da ditadura, mas é muito importante que a sociedade se manifeste para que não pensem que a Igreja tem tomado partido, decidido apoiar um determinado candidato.
Para finalizar, em 1998 Extra Classe entrevistou Dom Paulo Evaristo. Perguntamos se, como franciscano, ele gostava de ser chamado de o bispo dos pobres. Agora, é a sua vez: como franciscano, como é ser chamado de bispo das florestas?
Olha. É uma ideia interessante. Isso dá uma percepção de que você não se pertence. Você tem outro pertencimento e uma exigência de um pastoreio mais abrangente. É claro que eu não posso ficar interferindo em outras dioceses, mas as questões sociais, culturais, do meio ambiente que se referem à Amazônia e que o Papa se preocupa eu posso dar mais voz. O título eu entendi por que me deram. Deveria ser da ecologia, porque eu não moro na floresta, moro no meio de uma cidade de mais de dois milhões de pessoas, a cidade de Manaus. Mas, vamos ver. O tempo é quem vai dizer quem eu vou ser. Nós vamos sendo aquilo que a realidade e a Igreja vão pedindo para cada um de nós.
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