10 Setembro 2022
Administração de Campinápolis não obteve licença ambiental nem autorização da Funai.
A reportagem é de Marcos Hermanson Pomar, Tatiana Merlino e João Peres, publicada por O Joio e o Trigo, 08-09-2022.
Ladeada pelo Cerrado, a estrada de chão que corta a Terra Indígena Parabubure reserva, ao final, uma surpresa: a mata dá lugar a um descampado. Em algumas partes, a terra está preta, há cinzas. Em outras, as raízes e os troncos ainda estão pelo chão, e pequenas árvores permanecem de pé, indicando que se trata de um processo de desmatamento recente, ainda em curso. Caminhamos alguns metros, dirigimos de um lado a outro, erguemos o drone na tentativa de dimensionar a área derrubada.
Antes de viajarmos a Mato Grosso, a notícia informal trazida por líderes indígenas e pesquisadores era de que mais uma lavoura para plantio em larga escala estava sendo aberta. A exemplo da também terra Xavante Sangradouro, Parabubure estaria pronta para aderir ao modelo de “parceria” com fazendeiros estimulado pela atual direção da Funai.
Mas a realidade era mais complexa do que isso: sem autorização da Funai e de órgãos ambientais competentes, a Prefeitura de Campinápolis desmatou em abril deste ano o equivalente a 150 campos de futebol de mata nativa em Parabubure.
Lideranças da terra indígena – que em 2010 abrigava 7,7 mil xavantes, segundo o IBGE – contaram ao Joio que não houve consulta à comunidade para implementação do projeto.
Segundo despacho emitido pela sede da Funai em Barra do Garças (MT) em 28 de abril deste ano, a área foi desmatada também sem qualquer autorização do órgão, por tratores com adesivos do Governo do Estado do Mato Grosso.
“A partir de informações preliminares obtidas em comunicações com servidores que estariam realizando diligências diversas na TI Parabubure durante os meses de março e abril, este Segat [Serviço de Gestão Ambiental] foi informado de indícios de desmatamento na referida TI”, diz o documento. “Segundo o informe dos servidores e registros fotográficos, os tratores que estão presentes no local do desmatamento estão identificados com adesivos do Governo do Estado de Mato Grosso.”
Uma consulta feita pelo Joio ao Ibama e à Secretaria de Meio Ambiente do Mato Grosso (Sema) por meio da Lei de Acesso à Informação não revelou processos administrativos relativos à lavoura em quaisquer dos órgãos – o que significa que não houve concessão de licença ambiental.
O Governo do Estado do Mato Grosso e a Prefeitura de Campinápolis foram procurados através de seus órgãos oficiais de comunicação, mas não responderam até o fechamento da reportagem. Caso haja resposta, ela será adicionada ao texto.
Campinápolis é uma das cidades que foram surgindo em meio às terras Xavante. Retalhados por sucessivos governos desde os anos 1940 e 50, quando começaram os contatos dessa etnia com o Serviço de Proteção ao Índio, os territórios Xavante são um mosaico de demarcações, ora bem-feitas, ora malfeitas.
Parabubure, na verdade, foi reconhecida após intensa luta do povo Xavante, que retomou à força seu antigo território e conseguiu expulsar a enorme fazenda “Xavantina” da região – que era de propriedade de um militar – em plena ditadura. E Campinápolis é um município no qual fica clara a presença da população Xavante. Foi a base eleitoral dos Xavante que alçou o vereador Epaminondas Conceição à Secretaria de Assuntos Indígenas da cidade.
Numa manhã de junho, ele conversou conosco na mesa de café da manhã de um hotel. Conceição assumiu a autoria da prefeitura pela abertura da área, e disse que o intuito do desmatamento era criar uma lavoura para atender as necessidades da população indígena.
“É uma lavoura para atender realmente a necessidade do índio, para que eles possam ter uma vida mais tranquila. E foi um pedido de várias lideranças do município”, nos disse, na ocasião.
Segundo Epaminondas, o projeto de plantio na terra indígena foi uma demanda dos vereadores indígenas do município, Geninho Tseredzapriwe (PSDB) e Azevedo Tserebuto (PROS), que, após consultas às lideranças da TI Parabubure, resolveram solicitar à prefeitura que ajudasse a viabilizar a lavoura mecanizada.
“Foi um pedido feito pelo nosso povo Xavante e pelas lideranças que têm representante, que é dois vereadores, o vereador Geninho e o vereador Azevedo”, diz. “Esses vereadores foi que nos procuraram. Daí então a gente se reuniu com as lideranças, com os caciques, que representam as aldeias.”
Conceição também disse que conta com o apoio da Coordenação Regional da Funai em Barra do Garças, “um parceiro muito importante”, assim como de Agnaldo Santos, superintendente de Assuntos Indígenas de Mato Grosso. “São pessoas que estão dando respaldo muito grande para o município”, garante.
Embora a área tenha sido desmatada sem autorização da Funai, Conceição nos disse que a abertura foi autorizada pelo órgão indigenista. “Essa área nós começamos a quebrar porque a gente estava arrumando a documentação, aí paramos. E agora estamos acabando de legalizar. Temos autorização da Funai, estamos esperando autorização da Sema para que a gente possa dar continuidade do trabalho”, diz.
A Sema nos informou, via assessoria de imprensa, que “não foi encontrada autorização em nome do requerido [Prefeitura de Campinápolis]” e que o seu Sistema Integrado de Monitoramento e Licenciamento Ambiental (Simlam) é configurado para não receber requerimentos de autorização em áreas sobrepostas a Terras Indígenas.
A princípio, há uma diferença importante em relação ao projeto Agro Xavante, da Terra Indígena Sangradouro. Lá, fazendeiros foram os responsáveis por desmatar e cultivar na área de 1.475 hectares. Em Parabubure, ao menos até aqui, Conceição diz que não há intenção de estabelecer relações com produtores rurais para que explorem a lavoura.
“Olha, é muito difícil, porque teve alguns municípios aqui no estado que fizeram essa parceria e parece que não está dando muito certo. Agora, no momento, o foco nosso é a Prefeitura, que está participando junto a Secretaria de Agricultura do Estado.”
Depois de percorrer a área desmatada, dirigimos por pouquíssimo tempo até chegar à aldeia São Pedro, a maior da TI Parabubure, e uma das mais próximas à área desmatada. É um meio de tarde, horário em que os anciães se reúnem para conversar sob a copa das árvores frondosas deixadas entre as casas e a praça central da aldeia, onde crianças e adolescentes se divertem.
Ninguém sabe dizer ao certo como se iniciou o desmatamento: só se recordam de serem informados de que a área estava sendo derrubada. O cacique e as lideranças desmentem a versão de que a lavoura é fruto da vontade da comunidade.
“A população daqui não foi consultada pela Prefeitura e pela Funai”, nos contou o cacique da aldeia, Xisto Paratse Nomotse, cercado por crianças Xavante que escutavam a conversa curiosas. “Eu não estou aceitando a lavoura mecanizada porque afeta o Cerrado e a vida dos povos indígenas do povo Xavante da aldeia São Pedro.”
“Ninguém acertou [projeto com a prefeitura]”, nos disse outro morador da mesma aldeia, o ancião Angelo Sobrinho. Ele reforçou que a terra foi devastada sem consulta à comunidade. “Eu não aceitei. A comunidade não aceitou. Foi o prefeito que fez. [Fizeram] sem autorização da aldeia. Por isso não pode continuar.”
Pelo menos outros dois moradores da aldeia confirmaram que não houve consulta prévia para desmatamento da área de 170 hectares pela Prefeitura de Campinápolis e que a comunidade não deu anuência ao projeto de lavoura.
Precisávamos, então, conversar com os vereadores apontados como responsáveis pelo pedido à prefeitura. Quando os mais velhos se retiram, Geninho Tseredzapriwe, vereador de primeiro mandato em Campinápolis, e um dos cabeças do projeto, aparece. Para nossa surpresa, ele é morador da aldeia São Pedro.
“A nossa prioridade é buscar a segurança alimentar para o nosso povo”, justificou Geninho, sob o lusco-fusco do fim de tarde na aldeia.
“O governo municipal doava o alimento como cesta básica, mas não suficiente para todos. Então eu propus essa ideia para que o nosso governo municipal buscasse esse projeto”, disse. “O nosso nosso plano é plantar primeiro o arroz, no primeiro cultivo. E segundo, o milho e o feijão e pode ser também plantado, se a comunidade quiser, para gerar uma renda, a soja.”
Na conversa, Geninho confirmou que eles farão uso de agrotóxicos na lavoura e que, apesar de não terem recebido autorização formal da Funai, o presidente do órgão indigenista, Marcelo Xavier, foi consultado e deu apoio ao projeto.
“Ainda não conversamos com a Funai, mas a gente acionou o presidente da Funai lá de Brasília e eles estão totalmente a favor com esse projeto para que o povo indígena também seja o protagonista da sua própria história”, nos disse ele.
Nesse caso, há uma semelhança relevante com o projeto de Sangradouro: lá, também, a área técnica do órgão indigenista tem sido atropelada e mantida sem informações. Rompendo o que seria a praxe, tudo é tratado diretamente com as instâncias da fundação em Brasília.
Quando perguntado se houve consulta à comunidade para instalação da lavoura, Geninho foi evasivo. “Então, algumas aldeias a gente deu uma consultada. Alguns aceitaram e alguns não aceitam. Então, com essa maioria de aceitação, o governo municipal está executando esse projeto e a gente vai tocando essa lavoura.”
O jovem Xavante Tserenho Wadawe, filho do cacique da aldeia São Paulo – que fica a apenas um quilômetro da lavoura – é um dos moradores de Parabubure que são favoráveis ao projeto.
“Vocês podem ver pelos próprios olhos, as crianças estão sem chinelo e a gente não tem emprego para poder comprar esses materiais para nossos filhos”, contou ele à reportagem, logo depois de autorizar o uso de um drone para registrar a proximidade da aldeia com a lavoura.
Wadawe nos disse que, antes da campanha eleitoral de 2020, os Xavante de Parabubure foram procurados pelo atual prefeito de Campinápolis, Zé Bueno (DEM), que visitou algumas aldeias e prometeu abrir o plantio de arroz. Segundo ele, Bueno também se comprometeu a não utilizar agrotóxicos e afirmou que o projeto já estava aprovado pela sede do Ibama em Cuiabá.
“A gente perguntou se essa lavoura seria legalizada”, conta Wadawe. “Ele falou que tinha ido atrás do projeto [em] Cuiabá, [no] Ibama, e já tinha sido tudo aprovado.” Ainda segundo o filho do cacique, a Funai não participou desse processo de conversa com as aldeias para implementação da lavoura.
Na entrevista concedida ao Joio, o secretário de Assuntos Indígenas de Campinápolis havia afirmado que existe a previsão de utilização de agrotóxicos na lavoura, mas sem risco às aldeias.
“A gente sabe que tem muitos insumos [agrotóxicos] que batem e que não são convenientes para a saúde, então foi tudo planejado para não trazer transtorno pra ninguém”, explicou ele na ocasião. “A aldeia mais próxima deve dar uns cinco, seis quilômetros”.
Como mostram imagens de satélite levantadas pelo Grupo de Pesquisa Ambiente, Território e Ações Coletivas, coordenado pelo professor da UFMT Magno Silvestri, e como o Joio pôde constatar no local, as aldeias São Paulo, São Pedro, Salvador e Tseredzatsé, que são as mais próximas à lavoura, ficam todas a uma distância de 1 km a 3,5 km da área desmatada pela Prefeitura.
Segundo processo administrativo da Funai referente à área desmatada em Parabubure – que o Joio obteve via Lei de Acesso à Informação – Ibama, Governo do Mato Grosso e Prefeitura de Campinápolis foram oficiados pela Funai de Barra do Garças no dia 03 de maio deste ano, para que prestassem esclarecimentos sobre a área desmatada, mas não responderam aos questionamentos enviados pelo órgão.
Mapa elaborado pelo Grupo de Pesquisa Ambiente, Território e Ações Coletivas, da UFMG, mostra proximidade das aldeias com a área desmatada
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Sem licença ou consulta, prefeitura no MT desmata terra Xavante para plantar arroz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU