02 Setembro 2022
“Gostaria de saber se existe uma forma de escalar, a partir de uma ideia complexa e realista da matéria, para algum tipo de ética ou política. Dos átomos à sociedade”, escreve Alejandro Galliano, professor da Universidade de Buenos Aires e colaborador das revistas Crisis, Nueva Sociedad e Página/12 em assuntos de política, futuro e tecnologia.
Em sua avaliação, “podemos ser uma sociedade consciente de que estamos entrelaçados com as coisas e não sabemos de que lado da fronteira vamos terminar”.
O artigo é publicado por El Diario, 27-08-2022. A tradução é do Cepat.
Durante minha última mudança, percebi que havia esquecido uma coisa: um bambu da sorte. A planta não era minha, nunca quis tê-la, não gostava muito e parece que nem sequer é um bambu, mas pertence à família das dracaena. Nada mais é do que um caule com duas folhas em um recipiente com água.
Mesmo assim, senti que era uma ingratidão deixá-lo à mercê do esquecimento ou do próximo inquilino, e fui buscá-lo. Como uma versão mansa de Leon, o assassino protagonista de O Profissional, que age para salvar sua aglaonema entre tiros e emboscadas.
Quando voltava, quis me despedir do antigo bairro com um café. Tomei-o com o bambu como única companhia. Enquanto escrevo isto, está ao lado do computador, com essas folhas lânguidas como se fossem dois dedos em V. O sinal da vitória. Ou do companheirismo.
É comum que as pessoas sintam apego afetivo, tradicional ou racional a um objeto, mais ainda se é algo vivo como uma planta, um cachorro ou um filho. No meu caso, houve certa culpa, uma estranha sensação de correspondência a uma coisa com o qual não tinha maior compromisso do que o tempo que passamos juntos.
Há algum tempo, escrevi sobre os objetos como uma ecologia a mais. O materialismo está na moda: DeLanda, Parikka, Bratton. Mas é um materialismo mais preocupado com os algoritmos e a crise climática do que com a tabela periódica. Mais ocupado em criticar o pós-modernismo do que em aperfeiçoar uma ideia útil de matéria. Gostaria de saber se existe uma forma de escalar, a partir de uma ideia complexa e realista da matéria, para algum tipo de ética ou política. Dos átomos à sociedade.
Um recurso proveniente do pós-modernismo contra qualquer pretensão de materialismo ou realismo filosófico é apelar à “física quântica”. Ou melhor dito, à física quântica que um leitor de filosofia francesa pode (e quer) entender: “nunca vemos a onda, apenas o elétron. Não há realidade independente da percepção. Não há objeto fora do sujeito”.
O Prêmio Nobel de Física Niels Bohr contribuiu para essa lírica: “Não há um mundo quântico. Há apenas uma descrição quântica. É incorreto pensar que a tarefa da física é descrever como é a Natureza. A física só se ocupa do que podemos dizer sobre a Natureza”.
As coisas são mais complexas. Bohr e Heisenberg tiveram que disputar sua interpretação da teoria quântica com Einstein e Schrödinger, que não queriam renunciar a uma imagem realista dos fenômenos. Helgoland, o ensaio do físico Carlo Rovelli, publicado por Anagrama, reconstrói aqueles debates com calor e qualidade, dando-lhes uma perspectiva filosófica.
Rovelli não é um divulgador neutro, na disputa entre bohristas e einsteinianos, toma partido pelos primeiros e desenvolve sua interpretação “relacional” da quântica: a teoria não descreve a forma como os objetos quânticos se manifestam para nós (entidades especiais que observamos), mas descreve como qualquer objeto se manifesta e atua sobre qualquer outro objeto. O mundo quântico de Rovelli deixa de ser um conjunto de objetos com propriedades definidas para se tornar uma rede de relações cujos nós são os objetos.
Rovelli não nega que existam observadores de fenômenos físicos (o que seria difícil sendo o responsável pela equipe de gravidade quântica da Universidade de Aix-Marselha), só quer estender a categoria. “Não há nada de especial nos “observadores”: qualquer interação entre dois objetos físicos conta como uma observação, e devemos tomar qualquer objeto como observador... A teoria quântica é a teoria de como as coisas se influenciam e constitui a melhor descrição da natureza que dispomos”.
Rovelli também não quer negar a realidade, mas descentralizá-la de nós. Por isso, interessa-se tanto pelo budismo de Nāgārjuna (as coisas estão vazias, não existem por si mesmas), como pelo debate bolchevique entre o materialismo histórico de Lenin e o realismo machista (por Ernst Mach) de Bogdanov: uma realidade sem pressupostos metafísicos, como, por exemplo, “a matéria”.
No entanto, após ler Helgoland, as coisas ainda permanecem aí: nossas costas doem, esbarramos na mesa, a fumaça dos incêndios florestais irrita nossas gargantas. Rovelli sabe disso e se chateia: “O mundo nos parece determinado porque os fenômenos de interferência quântica se perdem no zumbido do mundo macroscópico”. Mesmo para um físico quântico extasiado no Nirvaṇa, as coisas são uma perturbação, um zumbido incômodo.
“O zumbido estático da não-identidade” é o termo usado por Jane Bennett (a filósofa norte-americana, não a personagem de Orgulho e Preconceito) para nomear a perturbadora existência de objetos alheios a nós, que não se reduzem a seu conceito, que parecem estar além de nosso conhecimento e controle. Historicamente, esse limite ao nosso saber residia no Absoluto (por exemplo, Deus). A filosofia moderna varreu isso.
Contudo, hoje, encontra essa exterioridade ininteligível nas coisas: o lixo, o alimento, as células-tronco, odradek. Objetos tenazes que, após anos de teorias discursivas, permanecem aí. Eles nos cercam, condicionam e formatam. Como a fumaça ou o meu bambu da sorte.
Em Materia vibrante (Caja Negra, 2022), Bennett coloca toda a sua erudição humanística em ação para resolver nossa relação com as coisas. Assim com os átomos de Rovelli, os objetos de Bennett não são entes definidos, mas interações mútuas que nos incluem. Vivemos em um conjunto de coisas que atuam.
Para conviver melhor, Bennett propõe um “materialismo vital” que flerta com ideias um tanto desprestigiadas, como o vitalismo ou o antropomorfismo, como “primeiro passo para uma nova sensibilidade pelas coisas”. E se arrisca a propor um espaço público que inclua os objetos, inclusive que compartilha com eles a responsabilidade pelo que acontece.
Bennett é uma pessoa sensata e não pretende liquefazer responsabilidades humanas: os incêndios florestais têm culpados e essa dor nas costas demanda um especialista. Também admite que é impossível incluir os objetos em pé de igualdade com os humanos. Ao contrário de outros materialistas, está consciente de que “a divisão ontológica entre pessoas e coisas deve ser mantida, pois, caso contrário, carece-se de qualquer fundamento moral para privilegiar o homem sobre o germe, ou para condenar a instrumentalização dos humanos”.
Em todo caso, seu materialismo é uma consciência, uma forma de atenção: diferenciar as pessoas das coisas permitiu prevenir muito sofrimento humano, mas à custa de “uma instrumentalização da natureza não humana que pode ser pouco ética e ir contra os interesses humanos a longo prazo...
Esse novo tipo de atenção à matéria e a seus poderes não resolverá o problema da exploração ou da opressão humana, mas pode estimular uma maior consciência sobre até que ponto todos os corpos são parentes, no sentido de que estão inextricavelmente imersos em uma densa rede de relações”.
No fundo, o novo materialismo pede para superar uma fronteira que há tempo vem se movendo. Em dezembro de 2014, a Câmara de Cassação Penal estabeleceu que Sandra, uma orangotango do zoológico de Buenos Aires, é “um sujeito não humano”.
Nas audiências da causa, Ricardo Ferrari, antropólogo e amicus curiae, disse “…se você está lidando com um programa e não pode decidir se é uma pessoa ou não, então é uma pessoa. Entre o objeto e o sujeito há uma gradação do ser à qual não estamos prestando atenção o suficiente”.
Outros brandiram como antecedente a abolição da escravidão. O coletivo urbanista m7red lembrou as inúmeras oportunidades em que a sociedade decidiu estabelecer fronteiras para os seres: da criação do Zoológico ao falido Ecoparque, da Conquista do Deserto aos Direitos da Natureza da Constituição equatoriana. São fronteiras espaciais, mas também ontológicas, porque decidem até que ponto algo é uma coisa e a partir de que ponto deixa de ser.
Nesse sentido, o pós-modernismo tem razão: a matéria também precisa ser definida. Sandra ou o pântano tiveram que ser humanizados ao menos um pouco para respeitá-los. Mas sempre restará algo não humano para além, interagindo conosco, forçando a fronteira. O zumbido das coisas persiste.
Durante as audiências do caso Sandra, o técnico veterinário alertou “...atenção ao abrir a porta dos direitos aos animais de produção e consumo, isto é a caixa de Pandora”. Para qual sociedade o novo materialismo nos levaria? Para uma em que a garçonete de uma lanchonete tem que servir água para nosso cachorro pomerânio, enquanto do outro lado do rio tudo queima? Para uma que não se atreve a procurar gás, nem lítio, enquanto a economia agoniza? Para uma que vende fetos e implanta chips?
Isso não será resolvido em uma coluna de opinião. Em todo caso, podemos ser uma sociedade consciente de que estamos entrelaçados com as coisas e não sabemos de que lado da fronteira vamos terminar.
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A fronteira das coisas. Artigo de Alejandro Galliano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU