23 Agosto 2022
Criticar o capitalismo é fácil. E, no entanto, sem defendê-lo, muitos de nós aderimos a ele contra a nossa vontade. Por quê? Essa é a pergunta feita por Denis Colombi, professor de economia e ciências sociais e sociólogo, em seu último livro, Pourquoi sommes-nous capitalistes (malgré nous)? [Por que somos capitalistas (contra a nossa vontade)?], publicado pela Editora Payot.
A entrevista é de Aude Martin, publicada por Alternatives Économiques, 20-08-2022. A tradução é do Cepat.
Da praça do mercado a uma determinada relação com o tempo, ou mesmo com a legitimação progressiva de uma certa visão de lucro, o autor decifra todos esses pequenos elos que, mesmo sem parecer, influenciam nossos comportamentos. A priori, há motivos para desanimar, mas outros modos de organização da esfera econômica e da sociedade são sempre possíveis.
De modo geral, diz-se que o capitalismo é sinônimo de propriedade privada dos meios de produção. Mas você explica em seu livro que o capitalismo é antes de tudo a difusão, em um dado momento da sociedade, de uma determinada visão de lucro. O que isso quer dizer?
A sociedade capitalista na qual vivemos surgiu durante a revolução industrial. Antes dela, alguns grupos já estavam voltados para a busca do lucro, como os mercadores ou os comerciantes. E isso desde a Antiguidade, como mostram as pesquisas arqueológicas. Já existiam “comportamentos capitalistas”, mas não uma “sociedade capitalista”. De fato, esses comportamentos permaneceram escanteados às margens da sociedade.
A partir de meados do século XVIII, esses comportamentos deixaram de ser marginais e passaram a ser o cerne da produção econômica, pois a percepção do lucro mudou. Difundiu-se então a ideia de que a busca do lucro por alguns acabaria por beneficiar a todos e seria a forma mais natural e desejável de organizar a sociedade.
A forma mais acabada desse raciocínio é a teoria do gotejamento, que é discutível do ponto de vista econômico. As reações aos “Uber Filles” (Arquivos do Uber), por exemplo, mostraram que, para muitos políticos, a precarização dos motoristas e a violação do código de trabalho por parte da empresa de VTC [serviço de transporte de particulares] são aceitas pela crença nos supostos efeitos coletivos positivos.
Nem todos os indivíduos valorizam o lucro, e nossa sociedade não é unicamente capitalista, mas a busca do lucro tornou-se legítima, valiosa e defensável. Nas sociedades pré-capitalistas, o lucro podia ser obtido através de saques, despojos ou expedições militares. O desaparecimento da violência explícita fez com que as pessoas esquecessem que o lucro de uns é a consequência da perda de outros. A violência, neste caso econômica, persiste. Mas ela é simplesmente negada.
Vivemos em uma sociedade capitalista durante mais de duzentos anos. Ela evoluiu ao longo do tempo?
A busca pelo lucro é uma constante. Mas, por outro lado, o capitalismo transformou-se ao longo da história. Em Sociologie historique du capitalisme, Pierre François e Claire Lemercier definiram várias eras do capitalismo: primeiro, uma era do comércio, depois uma era da indústria e, finalmente, uma era das finanças.
Por sua vez, é nesses setores que os comportamentos capitalistas têm sido mais visíveis e, a partir daí, que novos métodos de busca de lucro se espalham para o restante da sociedade. Os comerciantes e os mercadores, especialmente de escravos, lançaram-se primeiro em buscas frenéticas por lucro. Prova de que o capitalismo foi construído sobre bases coloniais.
Na sequência, os capitães da indústria racionalizaram e organizaram o trabalho para produzir sempre mais. Hoje, finalmente, o lucro é buscado principalmente através da atividade financeira e visa recompensar os acionistas. Cada era não substituiu a anterior, mas se sobrepôs a ela.
Você escreve que não existe “nenhuma força manipuladora e organizada que produza androides em cadeia a serviço do grande capital”. Quais são os mecanismos que nos fazem aderir ao capitalismo mesmo contra a nossa vontade?
Criticar o capitalismo é fácil. É quase suficiente descrevê-lo para considerá-lo absurdo. Mesmo assim, muitos de nós nos comportamos como ele espera que façamos. Alguns acreditam que é o resultado de uma vasta operação de lavagem cerebral. Ou o resultado de uma restrição. Constrangimento autoritário, ou resultante de uma ameaça de pobreza brandida pelo poder político.
Há alguma verdade em tudo isso, mas nenhuma dessas explicações é suficiente para justificar a adesão cotidiana de cada um de nós ao capitalismo. Da mesma forma, a ideologia e a crença na eficiência dos mercados não são suficientes. Para que os indivíduos tenham as razões necessárias para consagrar seu tempo, sua energia, sua vida para manter a máquina funcionando, deve haver também um “espírito do capitalismo”, ou seja, um conjunto de crenças associadas à ordem capitalista para justificar essa ordem e apoiá-la, legitimando os modos de ação compatíveis com ele. Em outras palavras, os indivíduos precisam de motivações compreensíveis.
E quais são essas motivações?
O “novo espírito do capitalismo”, explicam os sociólogos Luc Boltanski e Ève Chiapello, incitam todos a serem “empreendedores de si mesmos”. Promete emancipação e individualização através do trabalho. Os dois autores veem nisso uma resposta das empresas e dos gestores à “crítica artística” do capitalismo que, principalmente nos anos 1960 e 1970, o acusava de desumanizante e “padronizador”.
As empresas e os teóricos da gestão, portanto, procuraram na época não preservar o capitalismo a todo custo, mas muito concretamente fazer com as pessoas voltassem a se empenhar em seu trabalho. O Toyotismo veio para valorizar, pelo menos na aparência, a polivalência dos trabalhadores. A organização por projeto prometia variedade e realização.
O modelo das start-ups, com suas relações horizontais, seus espaços de trabalho lúdicos e suas esperanças de transformar o mundo, completa esse movimento. Pelo menos por enquanto. Pouco a pouco, o artista tornou-se o modelo do capitalismo, seu ideal. As empresas agora esperam que os trabalhadores, como um artista, sejam móveis, flexíveis, criativos e... precários.
Que outros mecanismos levam à adesão ao capitalismo?
O capitalismo baseia-se especialmente numa relação muito particular com o tempo. A representação do futuro é aberta, cheia de promessas, de oportunidades tão inesperadas e excitantes, tanto umas como as outras. Sem a promessa de amanhãs brilhantes, ou pelo menos lucrativos, não poderia haver capitalismo.
O empresário moderno não quer apenas obter a mesma colheita do ano passado; ele espera desenvolver seu negócio, aumentar seus ganhos, conquistar novos mercados etc. O futuro que ele vislumbra não é a reprodução do passado, nem a realização de um plano divino escrito com antecedência. Pelo contrário, é o lugar de todas as possibilidades. As promessas de Elon Musk ou Jeff Bezos de conquistar o espaço vão nessa linha. As duas operações mais centrais da atividade capitalista, o investimento e o crédito, são, aliás, operações temporais. E as finanças nunca são apenas um conjunto de cálculos sobre o futuro.
Acabar com o capitalismo significa renunciar a toda esfera mercantil?
Costumamos assimilar, erroneamente, o capitalismo ao mercado. Os mercados, certamente, nem sempre existiram. Mas eles antecedem em grande parte o capitalismo. O próprio mercado não é necessariamente capitalista. Além disso, se busco ter um consumo mais ético, alguns diriam até anticapitalista, é provável que eu frequente a feira do meu bairro.
Portanto, não é tanto a existência dos mercados como tais que é problemática, mas o lugar que lhes é dado. Nós passamos da ideia dos “mercados” para o “tudo é mercado”. Nossa vida transformou-se em um gigantesco supermercado, obrigando-nos a pensar cada decisão, por menor que seja, com base em mecanismos de mercado. Tomemos o exemplo da escola: cada vez mais, visa proporcionar aos alunos um estoque de habilidades que possam ser utilizadas no mercado de trabalho. Ferramentas muito concretas, como o LinkedIn, permitem avaliar seu valor no mercado de trabalho a todo momento.
Alguns, no entanto, tentam viver fora desses mecanismos. Estão condenados?
Quando você é colocado em um mercado pelas instituições, é difícil não operar dessa forma. As políticas escolares, por exemplo, ao permitirem que os estabelecimentos se diferenciem, em particular oferecendo opções especiais, ou subsidiando massivamente os estabelecimentos privados, criaram um verdadeiro mercado da educação.
Os pais que afirmam ser de esquerda e matriculam seus filhos no setor privado são frequentemente taxados de hipócritas. Mas se o Estado oferecesse as mesmas condições de ensino para todos, esse tipo de comportamento não existiria, pelo menos seria marginal. Se fazemos da escola um mercado, não surpreende que os cidadãos acabem se comportando como clientes.
Não é impossível ser anticapitalista, mas é preciso um esforço significativo. Nem todos podem se permitir isso, especialmente aqueles com renda mais baixa. Para dar apenas um exemplo: se comprar produtos locais em circuitos curtos é mais caro, eu realmente tenho outra escolha a não ser consumir produtos mais poluentes?
Se o capitalismo é tão poderoso, o que pode ser feito para reformá-lo? Aboli-lo? Que margens de ação coletiva nos restam?
Se amanhã uma força política anticapitalista tomar o poder e estiver em condições de decidir, isso não levaria automaticamente a uma saída do capitalismo. As mudanças legislativas e institucionais não acabarão com o capitalismo se as socializações e as formas de ver o mundo que incorporamos persistirem.
Mesmo a abolição da propriedade privada dos meios de produção ou a substituição dos mercados por outros sistemas de alocação de recursos escassos serão ineficazes se os próprios determinantes do comportamento econômico não tiverem mudado. Não é impossível mudar de sistema, mas levará tempo.
Sobretudo, é provável que só percebamos que saímos do capitalismo quando a transição tiver sido completada. Que a mudança só seja visível a posteriori graças ao retorno dos historiadores.
O importante, para mudar, é tomar consciência de maneira coletiva de que o capitalismo é apenas uma organização possível entre outras. Claro, precisamos repolitizar o capitalismo. Isso também nos permitirá imaginar o depois, porque podemos sair do capitalismo de diferentes maneiras, e nem todas são equivalentes.
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“Nem todos podem se dar ao luxo de ser anticapitalistas.” Entrevista com Denis Colombi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU