21 Julho 2022
"Apresentamos aqui a primeira quantificação do risco que os grupos isolados remanescentes na Amazônia Legal brasileira enfrentarão em um futuro próximo se a mineração for legalizada em terras indígenas", escrevem Sara Villén-Pérez, Luisa F. Anaya-Valenzuela, Denis Conrado da Cruz e Philip M. Fearnside, em artigo publicado por Amazônia Real, 20-07-2022.
Sara Villén-Pérez, tem doutorado em ecologia pela Universidad Autónoma de Madrid. Trabalha com mudanças globais e biogeografia, incluindo uma série de trabalhos sobre mineração e povos indígenas no Brasil. É bolsista de pós-doutorado “Talento” no Grupo de Investigación en Ecología y Evolución del Cambio Global, Departamento de Ciencias de la Vida, Universidad de Alcalá, Madri, Espanha.
Luisa Fernanda Anaya-Valenzuela é formada em engenharia pela Facultad del Medio Ambiente y Recursos Naturales, Universidad Distrital Francisco Jose de Caldas, Bogotá, Colômbia. Ela tem trabalhado com impactos de mineração a céu aberto na Colômbia. Foi bolsista no Departamento de Ciencias de la Vida, Grupo de Ecología y Restauración Forestal, Universidad de Alcalá, em Madri, Espanha, e hoje trabalha como cientista de dados em uma firma na área ambiental (TAUW Iberia), em Madri.
Denis Conrado da Cruz é engenheiro florestal pela Universidade Federal Rural da Amazônia, e mestre em tecnologia de informação Geográfica e doutor em ecologia, conservação e restauração de ecossistemas pela Universidade de Alacalá de Henares, Madri, Espanha. Foi pesquisador assistente no laboratório de geoprocessamento no Instituto do Homem e Meio Ambiente (Imazon) em Belém. Atualmente é associado à Aliança pela Restauração na Amazônia (ARA), em Belém. Tem experiência na área de recursos florestais e engenharia florestal, com ênfase em SIG.
Philip Martin Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 700 publicações científicas e mais de 500 textos de divulgação de sua autoria que estão disponíveis aqui.
Leia o primeiro e o segundo artigos da série.
A mineração pode afetar povos indígenas isolados de várias maneiras. Primeiro, as operações extrativistas impulsionam o desmatamento, reduzindo o território utilizável por grupos isolados e aumentando as chances de contato indesejado [1-3]. Cerca de 20% da floresta amazônica brasileira já foi perdida [4, 5], e aproximadamente 9% disso se deve às consequências diretas ou indiretas da mineração [6]. As áreas no entorno das operações de mineração normalmente passam por uma expansão da infraestrutura de urbanização e transporte, e o aumento das taxas de desmatamento pode ser percebido até 70 km das operações de mineração [6, 7]. Além disso, as mudanças demográficas associadas à chegada da força de trabalho contribuem para o esgotamento dos recursos alimentares nas florestas e rios da área, comprometendo os meios de subsistência das comunidades isoladas [8, 9].
A mineração também pode afetar povos isolados por meio da poluição ambiental [10]. Como resultado da mineração intensiva de ouro, os povos amazônicos estão entre os mais expostos ao mercúrio no mundo e relatam graves problemas de saúde [11], e não há razão para esperar que esses problemas de saúde não tenham atingido povos isolados por meio de poluição recursos hídricos e alimentares. Por fim, a invasão de territórios indígenas por não indígenas traz doenças que podem dizimar populações indígenas [12]. Povos isolados não têm imunidade a doenças comuns na sociedade majoritária, o que significa que mesmo um breve contato pode provocar uma catástrofe demográfica, como já ocorreu repetidamente no passado [13].
Por exemplo, a recente invasão maciça da Terra Indígena Yanomami por garimpeiros propagou a COVID-19, provocando centenas de mortes indígenas [14-16]. A mineração também pode ter impulsionado a infecção de grupos isolados próximos às operações de mineração durante as incursões de membros isolados que foram relatados em campos de mineração [9, 17]. Mesmo na ausência de interação direta, os povos isolados podem sofrer aumentos regionais na incidência de malária impulsionados pelos campos de mineração [18]. Assim, abrir as portas para a mineração em terras indígenas com grupos isolados deve resultar na crônica de uma morte anunciada.
Dado os amplos interesses de mineração em terras indígenas, é óbvio que a mineração representa uma ameaça para os 90 grupos isolados que ocupam territórios indígenas na Amazônia Legal brasileira [9]. No entanto, a magnitude exata da ameaça nunca foi avaliada antes. Isso dependerá da coincidência espacial entre os pedidos de mineração e os grupos isolados, e nossa hipótese é que as terras ocupadas por povos isolados não são necessariamente as mais atrativas para as mineradoras por diversos motivos.
Em primeiro lugar, pode-se esperar que a mineração seja mais lucrativa em regiões mais desenvolvidas com melhores infraestruturas operacionais e de transporte (por exemplo, [19]). Essas regiões desenvolvidas são menos propensas a manter um grande número de grupos isolados, uma vez que os povos indígenas permaneceram predominantemente isolados em áreas remotas [20]. Em segundo lugar, o estabelecimento de operações de mineração em regiões ocupadas por grupos indígenas isolados tem o risco de afetar negativamente a reputação da empresa. Como consequência, as empresas podem evitar o planejamento de operações de mineração próximas a grupos isolados. Além disso, dada a polêmica em torno da regulamentação das atividades de mineração em terras com reconhecidos povos isolados, as mineradoras podem preferir investir em áreas sem povos isolados ou onde estes são pouco conhecidos.
A polêmica começou quando a FUNAI recomendou a proibição das operações de mineração em terras indígenas com grupos isolados, recomendação que foi desconsiderada no projeto de lei PL191/2020 [21]. O projeto exclui as operações apenas dentro do perímetro frequentado pelos grupos isolados (PL191/2020, Art. 1º § 2º). O texto especifica que a FUNAI se encarregará de delimitar esse perímetro, mas isso é muito difícil, pois existem poucas informações para 60 dos 90 grupos isolados identificados nas terras indígenas da Amazônia Legal brasileira até o momento, e essas informações não incluem qualquer quantificação do território que ocupam [9]. Em um cenário de incerteza política em que o PL191/2020 está em discussão, as mineradoras podem antecipar maiores dificuldades na obtenção de licenças de operação em terras indígenas com conhecidos povos isolados, o que pode reduzir seu interesse por essas áreas.
A mineração de ouro legal e ilegal desempenha um papel central entre as commodities minerais exploradas na Amazônia [6] e tem provocado impactos sociais e ambientais em sucessivos períodos de corrida do ouro [22-24]. Em 2021, o preço do ouro atingiu valores sem precedentes depois de aumentar em aproximadamente 800% em 20 anos de sucessivas crises mundiais [25]. A demanda internacional por ouro está aumentando a pressão sobre áreas relativamente inexploradas, como os territórios indígenas brasileiros [26] e tornou o Brasil um dos dez maiores produtores de ouro do mundo [27, 28]. A maioria dos pedidos de mineração em terras indígenas amazônicas é para mineração de ouro [29, 30], e esses territórios estão atualmente experimentando uma explosão de atividade ilegal de mineração de ouro [31-33]. Em um cenário de nova corrida do ouro, espera-se que os interesses da mineração ilegal e oficial coincidam, de modo que a mineração ilegal de ouro em terras indígenas deve espelhar os pedidos das mineradoras oficiais. As mineradoras poderiam até estudar a localização de atividades ilegais para identificar pontos potencialmente lucrativos. Se este for o caso, a aprovação do PL191/2020 afetaria grupos indígenas que atualmente estão em situação de vulnerabilidade devido a atividades ilegais.
Muitos pesquisadores documentaram o impacto que a mineração e outros projetos de desenvolvimento historicamente tiveram sobre os povos indígenas contatados e isolados da Amazônia (por exemplo, [3, 9, 15, 34-37]), e chamaram a atenção para as consequências generalizadas do enfraquecimento da proteção ambiental e da regulamentação das atividades de mineração em terras indígenas brasileiras [38-41]. No entanto, nenhum deles analisou as consequências futuras dessas mudanças de política para os povos indígenas isolados.
Apresentamos aqui a primeira quantificação do risco que os grupos isolados remanescentes na Amazônia Legal brasileira enfrentarão em um futuro próximo se a mineração for legalizada em terras indígenas. Também realizamos uma nova análise para entender se a presença de grupos isolados ou o nível de conhecimento sobre eles influencia a preferência das mineradoras por um território indígena. Combinamos bancos de dados espacialmente explícitos sobre pedidos de mineração (da Agência Nacional de Mineração), grupos indígenas isolados (do Instituto Socioambiental) e terras indígenas (da FUNAI), para analisar o número e a extensão geográfica dos pedidos de mineração em terras indígenas onde povos indígenas isolados foram e não foram relatados.
Primeiro, testamos se a presença de grupos isolados está significativamente relacionada ao número de pedidos de mineração em todas as terras indígenas na Amazônia Legal brasileira. Em seguida, focamos no subconjunto de terras indígenas com grupos isolados para avaliar o impacto relativo sofrido por cada terra e testar se o número de solicitações de mineração está relacionado ao número de grupos isolados, ao nível de conhecimento sobre esses grupos e à presença anterior de atividades de mineração ilegal. Esses resultados são essenciais para as discussões do projeto de lei PL191/2020 e para o desenvolvimento de estratégias para mitigar o impacto potencial de futuras operações de mineração em povos isolados.[42]
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[42] Este texto é traduzido de: Villén-Pérez, S., L.F. Anaya-Valenzuela, D.C. da Cruz & P.M. Fearnside. 2022. Mining threatens isolated indigenous peoples in the Brazilian Amazon. Global Environmental Change 72: art. 102398.
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Mineração ameaça povos indígenas isolados: 3 - Como mineração afeta esses povos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU