"O governo Bolsonaro também trabalhou para tornar a política ambiental mais permissiva e desmantelar IBAMA, ICMBio e FUNAI, que são os órgãos governamentais encarregados de conter o desmatamento, conservar a biodiversidade e proteger os povos indígenas. Essas instituições foram reestruturadas, oficiais militares foram nomeados para muitos dos cargos-chave e o pessoal e os orçamentos foram reduzidos a ponto de suas atividades serem quase completamente interrompidas. Isso ameaça diretamente os grupos indígenas isolados da Amazônia brasileira", escrevem Sara Villén-Pérez, Luisa F. Anaya-Valenzuela, Denis Conrado da Cruz e Philip M. Fearnside, em artigo publicado por Amazônia Real, 05-07-2022.
Sara Villén-Pérez, tem doutorado em ecologia pela Universidad Autónoma de Madrid. Trabalha com mudanças globais e biogeografia, incluindo uma série de trabalhos sobre mineração e povos indígenas no Brasil. É bolsista de pós-doutorado “Talento” no Grupo de Investigación en Ecología y Evolución del Cambio Global, Departamento de Ciencias de la Vida, Universidad de Alcalá, Madri, Espanha.
Luisa Fernanda Anaya-Valenzuela é formada em engenharia pela Facultad del Medio Ambiente y Recursos Naturales, Universidad Distrital Francisco Jose de Caldas, Bogotá, Colômbia. Ela tem trabalhado com impactos de mineração a céu aberto na Colômbia. Foi bolsista no Departamento de Ciencias de la Vida, Grupo de Ecología y Restauración Forestal, Universidad de Alcalá, em Madri, Espanha, e hoje trabalha como cientista de dados em uma firma na área ambiental (TAUW Iberia), em Madri.
Denis Conrado da Cruz é engenheiro florestal pela Universidade Federal Rural da Amazônia, e mestre em tecnologia de informação Geográfica e doutor em ecologia, conservação e restauração de ecossistemas pela Universidade de Alacalá de Henares, Madri, Espanha. Foi pesquisador assistente no laboratório de geoprocessamento no Instituto do Homem e Meio Ambiente (Imazon) em Belém. Atualmente é associado à Aliança pela Restauração na Amazônia (ARA), em Belém. Tem experiência na área de recursos florestais e engenharia florestal, com ênfase em SIG.
Philip Martin Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 700 publicações científicas e mais de 500 textos de divulgação de sua autoria que estão disponíveis aqui.
A Amazônia brasileira abriga mais sociedades indígenas isoladas do que qualquer outra região do planeta, com pelo menos 120 grupos que vivem isolados da sociedade majoritária [1-5] e falam aproximadamente 50 idiomas nativos [6]. Esses grupos indígenas carecem de relações permanentes com outras sociedades, indígenas ou não. Muitos deles estão cientes da existência de outras sociedades, mas optaram voluntariamente por exercer seu direito ao autoisolamento como estratégia de sobrevivência após sofrerem episódios históricos de contato associados a violência ou epidemias [7-9].
Assim, seu isolamento constitui manifestação expressa de sua autonomia e de sua vontade. Seus direitos de autodeterminação e autoisolamento são protegidos no Brasil pelo mais antigo e robusto conjunto de políticas da América Latina. Essas políticas foram estabelecidas em 1987 após as trágicas consequências de práticas cujo paradigma era o contato com grupos isolados [8]. A Fundação Nacional do Índio (FUNAI) possui, inclusive, um departamento específico dedicado à identificação e monitoramento de grupos indígenas isolados (FUNAI – Coordenação Geral dos Povos Indígenas Isolados e Recentemente Contatados). Apesar disso, esses povos são pouco conhecidos: a maioria dos registros são apenas notificações de terceiros, e apenas um quarto deles foi verificado através de sobrevoos ou outros meios pela FUNAI [4].
A persistência de sociedades isoladas está intimamente ligada à proteção de terras indígenas, pois três quartos dos grupos isolados conhecidos (90 de 120 grupos) ocorrem nesses territórios [4]. As terras indígenas foram projetadas para defender os direitos dos povos indígenas isolados e não isolados e cobrem 23% da floresta amazônica brasileira [10]. Apesar de sua eficácia na proteção, os territórios indígenas têm historicamente sofrido pressão pela exploração de seus recursos naturais [4, 11-14]. A invasão de terras para pecuária, extração de madeira e mineração resultou no contato indesejado e na extinção de muitos povos indígenas no passado e continua ameaçando os grupos que permanecem isolados [5, 15-18].
Um terço das terras indígenas na Amazônia brasileira têm interesse registrado para mineração, e a região é um dos maiores potenciais fornecedores mundiais de minerais [19, 20]. A mineração em terras indígenas brasileiras não é oficialmente permitida, apesar de inúmeras solicitações de mineração serem continuamente enviadas à Agência Nacional de Mineração do Brasil [21, 22], sugerindo que as mineradoras estão confiantes na aprovação futura. O lobby da mineração vem pressionando desde 1996 para que a legislação reguladora seja aprovada, até agora sem sucesso.
Em 2020, o presidente de extrema-direita do Brasil, Jair Bolsonaro, apresentou ao Congresso Nacional o projeto de lei PL191/2020 que permitiria tanto mineração quanto hidrelétricas em terras indígenas. O presidente prometeu abrir a Amazônia para negócios e especificou as terras indígenas como alvo principal [23, 24]. Bolsonaro se comprometeu repetidamente a não demarcar “um único centímetro” de novo território indígena e integrar os povos indígenas à sociedade brasileira; ambas as declarações desrespeitam a Constituição do Brasil de 1988 e as obrigações legais sob acordos internacionais sobre direitos humanos dos quais o país é signatário, incluindo a Convenção sobre Povos Indígenas e Tribais OIT 169 [25].
Enquanto o projeto de lei PL191/2020 tramita no Congresso Nacional, o presidente prepara um decreto para permitir a mineração por empresas internacionais em 177 terras indígenas localizadas próximas às fronteiras do país, e os EUA foram especificamente incentivados a investir nessa exploração [26]. O governo brasileiro também está apoiando propostas legislativas que buscam paralisar a demarcação de novas terras indígenas (Proposta de Emenda Constitucional PEC 215) e reduzir terras já demarcadas, abrindo caminho para privatizações e invasões ilegais (PL490/2007). O projeto de lei PL490/2007 abre até mesmo a porta para contato sem o consentimento de grupos indígenas isolados caso determinada área seja considerada de utilidade pública, conceito amplo o suficiente para incluir qualquer projeto de desenvolvimento, como as operações de mineração.
O governo Bolsonaro também trabalhou para tornar a política ambiental mais permissiva e desmantelar IBAMA, ICMBio e FUNAI, que são os órgãos governamentais encarregados de conter o desmatamento, conservar a biodiversidade e proteger os povos indígenas [27, 28]. Essas instituições foram reestruturadas, oficiais militares foram nomeados para muitos dos cargos-chave e o pessoal e os orçamentos foram reduzidos a ponto de suas atividades serem quase completamente interrompidas [29]. Isso ameaça diretamente os grupos indígenas isolados da Amazônia brasileira [27].
Por exemplo, as autorizações para expedições da FUNAI às terras indígenas têm sido bastante burocratizadas, dificultando as atividades in loco do órgão [30]. Além disso, um total de 35 grupos ficaram desprotegidos quando a fiscalização oficial de terras indígenas com demarcação incompleta foi cancelada [31] e quando as bases de monitoramento nas terras indígenas Yanomami e Vale do Javari foram fechadas [32]. Além disso, a FUNAI abriu agora a possibilidade de contatar grupos isolados mesmo durante a pandemia de COVID-19, violando seu direito à autodeterminação e ameaçando sua saúde [33].
Além disso, um ex-missionário evangélico foi nomeado para chefiar a divisão da FUNAI para grupos indígenas isolados da Amazônia [34]. Sua participação anterior em uma seita extremista que focava sua atividade no contato com grupos indígenas isolados o torna uma ameaça óbvia para os 120 grupos indígenas que estão voluntariamente isolados na Amazônia Legal brasileira e podem ver seus números dizimados devido a epidemias derivadas do contato, seja intencional ou não. [35]
[1] Black, F. L. (1992) Why did they die? Science 258: 1739-1741.
[2] Hemming, J. (1978) Red gold: the conquest of the Brazilian Indians. Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts, EUA.
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[22] ANM (Agência Nacional de Mineração) (2021) Geoinformação Mineral.
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[24] Artaxo, P. (2019) Working together for Amazonia. Science 363: 323.
[25] ILO (International Labour Organization) (1989) C169 – Indigenous and Tribal Peoples Convention, 1989 (No. 169). ILO, Geneva, Suiça.
[26] Teodoro, P. (2020) Funai se cala sobre decreto de Bolsonaro que prevê mineração em 177 terras indígenas por empresas estrangeiras. Forum.
[27] ISA (Instituto Socioambiental) (2020) Ameaças e violação de direitos humanos no Brasil: Povos indígenas isolados. Report for the United Nations Human Rights Council. Março de 2020.
[28] Barbosa, L. G., Alves, M. A. S., Grelle, C. E. V. (2021) Actions against sustainability: Dismantling of the environmental policies in Brazil. Land Use Policy 104: art. 105384.
[29] Ferrante, L., Fearnside, P.M. (2020b). Military forces and COVID-19 as smokescreens for Amazon destruction and violation of indigenous rights. Die Erde 151(4): 258-263.
[30] INA (Indigenistas Associados) (2019) NOTA PÚBLICA Centralização e Discriminação na Autorização de Viagens Paralisam a Funai. 02 dezembro de 2019.
[31] Biasetto, D. (2019) Funai proíbe viagens de servidores a terras indígenas em processo de demarcação. O Globo, 29 de novembro de 2019.
[32] Angelo, M. (2020) Barrage of mining requests targets Brazil’s isolated indigenous people. Mongabay, 26 de fevereiro de 2020.
[33] CIMI (Conselho Indigenista Missionário) (2020) Nota de repúdio à portaria da Funai que possibilita contato com povos indígenas isolados. 20 de março de 2020.
[34] Phillips, D. (2020) ‘Genocide’ fears for isolated tribes as ex-missionary named to head Brazil agency. The Guardian, 05 de fevereiro de 2020.
[35] Este texto é traduzido de: Villén-Pérez, S., L.F. Anaya-Valenzuela, D.C. da Cruz & P.M. Fearnside. 2022. Mining threatens isolated indigenous peoples in the Brazilian Amazon. Global Environmental Change 72: art. 102398.