Nos rastros do amor: Um homem, uma mulher – Claude Lelouch. Artigo de Faustino Teixeira

Cena de Um Homem, Uma mulher | Foto: Divulgação

16 Julho 2022

 

"Ao falar sobre o roteiro, Lelouch sublinha que o filme é completamente diverso de sua personalidade. Trata-se da projeção de um sonho. Uma história que ele adoraria viver, mas que nunca poderia ocorrer, dado a sua personalidade nada terna".

 

O artigo é de Faustino Teixeira, teólogo, colaborador do Instituto Humanitas Unisinos - IHU e do canal Paz Bem.

 

Eis o artigo. 

 

No evento Filmes em Perspectiva de 05 de julho de 2022, patrocinado pelo Canal Paz e Bem em parceria com o IHU, foi comentado o filme de Claude Lelouch, Um Homem, Uma mulher, com as presenças de Faustino Teixeira e Mauro Lopes.

 

 

Um Homem, Uma Mulher (Un Homme et Une Femme), lançado em 1966, é um dos filmes mais românticos de todos os tempos. Foi o filme que despertou os olhares do mundo para a obra de Claude Lelouch, nascido em 30 de outubro de 1937 e que hoje está com 84 anos.

 

Foi um filme muito premiado. Ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1966 e também o Oscar de melhor filme estrangeiro no mesmo ano, incluindo o melhor roteiro original (Lelouch e Pierre Uytterhoeven). Foi também vencedor do Globo de Ouro em 1967, com os prêmios de melhor filme estrangeiro e melhor atriz na categoria drama.

 

Há informações especiais sobre o filme, no DVD da Warner Bross, que acompanha o filme, com a colaboração de Julie Cohen na produção de 37 anos depois com Claude Lelouch e de Max Allemand, na entrevista que está nos documentário de bastidores. As citações aqui utilizadas são tomadas dessas informações específicas, bem como dos diálogos que ocorrem no filme mesmo.

 

O filme foi produzido quando Lelouch tinha apenas 28 anos. Era o seu quinto filme ficcional, sendo o primeiro em 1960. Sua carreira começou por volta de 1957, um início que se deu contemporaneamente à Nouvelle Vague, que também inspirou o diretor.

 

Lelouch vinha de uma experiência de fracasso, no seu quarto filme: “Les Grands moments” (1965). Revelou em entrevista que “foi uma catástrofe, pois ninguém queria lançá-lo”. Não tinha conseguido um distribuidor e estava praticamente arruinado financeiramente.

 

Na ocasião, para lidar com os problemas, saiu de carro sem destino, rodando até se cansar. Era a maneira que encontrava para sozinho refletir e pensar. Foi o que ocorreu antes de nascer a nova ideia. Ele pegou seu carro, tomando a rota do litoral, alcançando a praia de Deauville, um luxuoso balneário na Normandia, a cerca de 200 quilômetros de Paris. Parou o carro à beira da praia, por volta das duas da madrugada, e dormiu no veículo. Ao acordar, por volta de seis da manhã, ele avistou do para-brisa de seu carro uma mulher com uma criança e um cachorro.

 

A mulher andava na praia, e a maré estava baixa. Ela estava a cerca de dois quilômetros de distância. Lelouch ficou admirado ao ver uma mulher, naquele horário, já caminhando com uma criança e seu cachorro, que pulava em volta dela. A cena aguçou a curiosidade do diretor, que pensou: “Se ela está aqui nesse horário, talvez com o filho, é porque quer aproveitar o máximo seu tempo com ele. Talvez porque não o veja com frequência, ou esteja num internato”.

 

Foi quando então ocorreu a chispa, a ideia do filme. Segundo o diretor, a história veio por inteiro à sua cabeça. O filme nasceu de forma rápida, pois Lelouch precisava recuperar-se financeiramente e salvar sua empresa cinematográfica, que estava quase falindo. O filme foi escrito em um mês ou mês e meio; sua preparação também se deu em um mês. As filmagens levaram três semanas, e a montagem mais três semanas. E logo o filme estava terminado.

 

O diretor pensou em Jean Louis Trintignant (1930-2022) como ator. Um nome que veio espontaneamente. Para atriz pensou em Romy Schneider ou Anouk Aimée (1932 -). Ele não a conhecia, mas o ator sim. Era amigo dela. Lelouch ligou para ela e depois os dois se encontraram em Paris. Ela também aceitou imediatamente o convite. Estava morando na ocasião em Roma, e vinha de uma experiência de filmagem com Fellini.

 

No início a relação de Lelouch com ela foi difícil. Quase não fizeram o filme juntos. Ela estranhou a fragilidade da produção, que contava com apenas 10 pessoas, bem como a carência dos acessórios comuns ao cinema. O filme foi rodado com um câmera emprestada, e operada no ombro mesmo. O diretor nem tinha recursos para comprar uma câmera nova. A câmera do filme foi alugada.

 

A atriz também reagia à ideia de fazer uma cena em barco no mar. Dizia que “não subia em barcos”. Porém, na sequência, às duas da manhã ela ligou para o diretor, dizendo que poderia fazer uma tentativa, e quem sabe os dois pudessem assim se entender. Na manhã seguinte ocorreu a filmagem da cena no mar. Daí em diante, como disse o diretor, nasceu uma história de amor fabulosa.

 

Lelouch tem um jeito peculiar de trabalhar com seus filmes. Busca criar um clima de máximo realismo. A técnica que utiliza é a da filmagem direta. Os ensaios com os atores ocorrem sempre antes da filmagem. A direção dos atores é feita durante a noite ou de manhã, antes da saída para a filmagem. Uma vez no set, o cuidado é apenas com a marcação e os detalhes técnicos. O resto fica por conta dos atores, que são instruídos no que é essencial, mas ficam livres para algum improviso.

 

Eles sabem o que devem fazer: concentrar-se no texto deles. Como diz Jean Luis Trintignant, o trabalho com Lelouch “é quase uma improvisação”. O roteiro também não era apresentado para os atores. O diretor dava uma instrução para o ator e outra um pouco diferente para a atriz, “de modo que um pudesse pegar o outro de surpresa”. Nunca ocorriam duas tomadas iguais. Havia sempre lugar para a espontaneidade, uma autenticidade rara no cinema. Tudo vem ajudado também pelo entusiasmo do diretor.

 

O roteiro é simples, uma história de amor que começa com uma coincidência, quando duas pessoas se encontram casualmente no carro, depois de deixarem os filhos num internato em Deauville. Em menos de 120 minutos o diretor consegue traçar uma história de amor, que foi crescendo ao longo de três semanas, até o encontro amoroso decisivo, quando pela primeira vez os dois dormiram juntos. O primeiro beijo só acontece nos vinte minutos finais.

 

O personagem, Jean-Luis Duroc, era piloto de corridas e ela, Anne Gauthier, era roteirista de cinema. Os dois tinham perdido os seus companheiros em situações dolorosas. A companheira do piloto, tinha se suicidado após um difícil acidente com o marido; o companheiro da roteirista, tinha morrido numa explosão de bomba, em cena de filmagem onde atuava como doublé.

 

Lindas cenas de amor acontecem na paisagem nublada da praia de Deauville, a mítica praia dos encontros fortuitos, dos ventos e do refúgio, “dos milagres que embalam e encharcam o imaginário e a alma de uma geração”. Aquela praia carrega a “doçura despretensiosa” de Anouk Aimée e o “charme arrebatador” de Jean-Louis Trintignant, com seu Ford Mustang, que entra também como personagem. O Mustang era na época um “ícone cultural”. Um carro que já nasceu como estrela no ano de 1964, sendo o preferido das grandes celebridades.

 

O filme faz diversas incursões no passado dos personagens. Como sublinhou o diretor em entrevista, trata-se de um casal que passou por muitas experiências, que já teve alegrias e dramas, e que por volta dos 35 anos, aproximadamente, guardam um passado, mas com um futuro pela frente.

 

Numa das vezes em que viajaram juntos de carro, depois de deixarem as crianças no internato, durante o retorno a Paris, Jean-Luis perguntou sobre o marido de Anne e ela refletiu: “Um encontro, um casamento, um filho, são coisas que acontecem com todos, talvez o que seja original é quem se ama”.

 

Ao indagar sobre a originalidade do marido, ela responde: “Ele é tão apaixonante, tão único, tão inteiro. Ele se apaixona por coisas, por pessoas, por ideias, por lugares. Por exemplo, Passei uma semana no Brasil sem nunca ter estado lá. Ele fez um filme ali. Quando retornou a Paris, falou de samba uma semana inteira. O samba entrou na nossa vida”. Durante sua fala sobre o marido, ocorrem cenas maravilhosas do encontro dos dois, ao som da música de Baden e Vinícius, Samba da Bênção, na versão francesa interpretada por Pierre Barouh, que no filme faz o papel do marido de Anne [1].

 

 

Gosto em particular da cena onde os dois passeiam de barco, com os filhos. São momentos extraordinários e imagens magníficas dos quatro, dos encontros de amizade e carinho, da presença das crianças. Em certo momento, ele aproxima sua mão da mão de Anne, mas não a alcança. Mais tarde, quando os dois retornam de carro para Paris, ele coloca sua mão sobre a mão dela, e ela deixa, voltando o seu olhar para ele. É o primeiro gesto explícito de amor do romance. E logo depois, ela pergunta sobre a esposa dele.

 

Outra cena maravilhosa é quando os dois, finalmente, fazem amor... As cenas são lindas, com a câmera pegando em close os dois rostos, o movimento das mãos, os lindos cabelos dela, em ondas de ternura. Em certo momento, porém, ela começa a se lembrar dos encontros de amor com seu marido, o carinho que os unia, a força de uma paixão. A partir de então ela se distancia mentalmene daquele momento de amor com Jean.

 

Aos poucos, ele se dá conta de que está fazendo amor sozinho. Diz o diretor: “É muito desagradável sentir que se está a fazer amor sozinho”. Em certo momento, Jean percebe que ela não está ali. Ele pergunta, duas vezes “Por que?”. E ela responde: “Por causa do meu marido”. E ele retoma a conversa: “Ele morreu”. Ela guarda silêncio... É quando então ele resolve separar-se dela. Curiosamente, como lembra o diretor, para ela, é ali, no momento do amor entre os dois, que ela é tomada pelo desejo é reconquistá-lo, porque é justamente ali que ela se apaixona por ele.

 

Em cena de olhares sentidos, ao amanhecer, os dois encontram-se ainda no hotel, no quarto 41, e ela então diz a ele que é melhor pegar o trem. Ele saem juntos, sem se darem as mãos, tristes, até a estação de trem. Ao subir nos degraus do vagão, ela se volta para ele, que indaga: “Por que me disse que seu marido estava morto?”. E ela responde: “Ele morreu, mas para mim ainda não...”.

 

Ainda com o trem parado ele reflete: “Certos domingos começam bem e terminam mal, incrível”. “É incrível não permitir ser feliz”... E o trem parte... Ele retoma o pensamento: “Se tivesse que recomeçar, o que eu faria? O que eu poderia fazer? Ter um amigo por meses e meses e, de tanto sermos amigos, acabamos virando amigos”.

 

Intrigado ele se pergunta pela razão escondida naquele telegrama que ela tinha remetido, depois que ele vencera uma corrida em Mônaco, onde dizia: “Eu te amo”. Para ditar o telegrama ela tinha titubeado. Inicialmente, dizia simplesmente: “Parabéns, eu vi a TV. Anne”. Depois corrigiu: “Parabéns. Amo você, Anne”.

 

Ao falar sobre o roteiro, Lelouch sublinha que o filme é completamente diverso de sua personalidade. Trata-se da projeção de um sonho. Uma história que ele adoraria viver, mas que nunca poderia ocorrer, dado a sua personalidade nada terna.

 

Um dos segredos do filme é a fotografia, belíssima, a cargo do próprio Lelouch. As tomadas de cena, naquela atmosfera invernal, são magníficas, com a presença constante de uma bruma que inebria o olhar. Alias, o diretor sublinha que o inverno é a estação propícia para as histórias de amor, pois provoca a aproximação e o aconchego das pessoas. Como indicou Lelouch, “o mau tempo é um dos atores do filme”. Ficam na memória as cenas do ator no carro, dirigindo sob a chuva, com o movimento constante do limpador de para-brisas.

 

A trilha sonora é igualmente bela, com uma canção em especial que ficou na memória de uma geração e que ainda hoje é um grande sucesso: Un homme et une femme, de Francis Lai (1932-2018). Ainda na trilha, com destaque bem especial, a canção de Vinícius de MoraesBaden Powell, Samba da Bênção, na versão francesa cantada por Pierre Barouh. Há ainda bonitas incursões da voz singela de Nicole Croisille (1936 -), que faz um solo na canção Aujoud'hui c'est toi e outros duetos com Pierre Barouh.

 

O diretor Lelouch fez ainda dois outros filmes com os mesmos atores, retomando e dando continuidade à versão anterior : “Um homem e uma mulher: 20 anos depois” (1986) e “Os melhores anos de uma vida” (2019). Algo muito raro no cinema: produzir uma trilogia. Na última versão, realizada cinquenta anos depois, os dois atores estão perto de 90 anos. A atriz segue firme e lúcida, enquanto o ator está lúcido, mas já alquebrado.

 

Nesse último filme, os dois amigos se encontram depois de 50 anos. Ele está numa casa de repouso (num asilo), debilitado pela idade avançada. Mal consegue se locomover sozinho, lutando também contra a perda da memória. Ele recebe a visita da amiga, que não reconhece ao início.

 

Os diálogos são muito bonitos, como as imagens e a trilha sonora. Numa das conversas entre os dois, ela pergunta se ele tentou entrar em contato com a sua amiga antiga e ele responde: “Não tentei porque não estava à altura dela”. E retomou: “O marido dela era dublê. Ele encrencava bastante conosco”. Ela indaga por que, e ele responde: “Porque ele estava morto, mas não para ela. É difícil fazer amor com a morte”. E complementa: “Todas as histórias de amor acabam mal. Elas só acabam bem nos filmes”.

 

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