24 Junho 2022
A jornalista inglesa Jan Rocha veio ao Brasil pela primeira vez em 1964, após assistir uma palestra em seu país sobre a Amazônia. Tinha 24 anos e voltou pra casa sabendo que voltaria, e que acabaria morando aqui. Em 1969, retornou, para sempre. Casou com o gaúcho Plauto Rocha e teve três filhos: Camilo, Ali e Bruna, que tiveram que dividir a mãe com a sua grande paixão: o jornalismo, e suas intermináveis viagens por todo o território brasileiro, especialmente pela Amazônia.
Desde 1973, quando virou correspondente da BBC de Londres, Jan vem percorrendo o Brasil atrás de personagens e histórias que mostrem o Brasil que muitas vezes não aparece sequer no noticiário brasileiro, muito menos no exterior. Passou vinte anos na BBC, retratados no livro Nossa correspondente informa: Notícias da ditadura brasileira na BBC de Londres: 1973-1985) e depois emendou dez anos escrevendo reportagens de fôlego para o jornal The Guardian.
Escrever sobre a floresta Amazônica, índios, indigenistas, garimpos, violência, viajar em busca de informações que possam mostrar ao mundo a realidade brasileira, faz parte de sua vida até hoje. Pelo seu trabalho, recebeu ligações desaforadas, mas nunca foi ameaçada de morte. Nem mesmo durante a Ditadura.
Nesta entrevista para a Marco Zero, a correspondente inglesa fala sobre seu trabalho jornalístico, o impacto emocional que sentiu ao saber da morte do também jornalista inglês Dom Phillips e do indigenista brasileiro Bruno Pereira, no Vale do Javari, a emoção ao assistir à chegada dos restos mortais de ambos em Brasília, a relação do garimpo com a política, e diz que o presidente Jair Bolsonaro, ao dizer que “A Amazônia é nossa”, está, na verdade, dizendo que “a Amazônia é do crime”.
A entrevista é de Samarone Lima, publicada por Marco Zero, 22-06-2022.
Qual foi o teu sentimento ao saber da morte do Bruno Pereira e do Dom Phillips?
O que eu senti quando vi a Policia Federal trazendo aqueles sacos plásticos pretos, sabendo que dentro deles tinha os restos, os restos de duas pessoas tão legais, tão dedicadas, pessoas vivendo, fazendo as coisas, tão vibrantes, o Bruno com dois filhos pequenos, dois homens tão queridos, e ver eles chegando daquele jeito, dentro de sacos plásticos pretos, nem mais corpos, mas restos… me deu uma revolta muito grande, mas uma enorme tristeza…
Algo que ficou muito evidente, na atuação das forças de segurança, foi uma tentativa de esconder a importância da atuação dos indígenas do Vale do Javari no esclarecimento do crime. Como você viu isso?
Ver aquela coletiva de Imprensa, em Manaus, que tem aquela fila de gente de uniforme, militares, bombeiros, policiais, e nenhum, nenhum representante da Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari), que na verdade liderou as buscas e foi quem sempre achou as coisas… O fato é que eles simplesmente foram excluídos, como se não tivessem feito nada de importante. Na verdade, era um exemplo do desprezo, da desconsideração e da ignorância das autoridades brasileiras com relação aos indígenas.
Todos os comentários feitos por Bolsonaro, e agora Mourão, mostram sua ignorância deliberada sobre a contribuição dos povos indígenas.
O Bolsonaro continua falando deles como uma espécie de “subespécie”, que vive como selvagens, e que seria muito melhor para eles serem incorporados à sociedade branca, apesar de sabermos, e toda a história mostra, que quando os povos são incorporados, é sempre no nível mais baixo. Para ser empregado, para ser peão, para ser sujeito a todos os vícios da periferia.
Esse é o destino que eles querem para os povos indígenas. Não querem povos independentes, capazes, mostrando que são pessoas humanas normais, muitas vezes superiores aos brancos, certamente muito superiores ao Bolsonaro, em termos de inteligência, capacidade e conhecimento. Porque eles têm este enorme conhecimento da Amazônia, que as autoridades querem simplesmente jogar fora, querem tripudiar em cima.
Então, realmente toda essa história de Dom e Bruno deu muita tristeza e muita revolta – em qualquer pessoa que conhece eles, que conheceu eles, e que conheça a Amazônia.
Por outro lado, houve uma resposta ríspida do presidente da República ao Dom Phillips, quando ele fez uma pergunta sobre desmatamento na Amazônia, em 2019.
Hoje vejo o que o presidente estava dizendo quando falou que “a Amazônia é nossa”. Nossa sendo o garimpo ilegal, madeira ilegal, grileiros, traficantes etc. É deles, é “nossa”, não é de vocês.
E quando ele fala “vocês”, são os indigenistas, os próprios indígenas, as pessoas, as ONGs que trabalham para ajudar as comunidades, os ribeirinhos, os quilombolas, as pessoas que realmente vivem na Amazônia. Bolsonaro estava dizendo “A Amazônia não é de vocês. É do crime”.
Como você vê a questão política, envolvendo a Amazônia?
Esse é um dos problemas da Amazônia. É que os políticos eleitos, particularmente em Roraima, mas em outros estados também, na verdade são eleitos para defender interesses econômicos. Os interesses deles, muitas vezes ilegais e clandestinos. Clandestinos não, ilegais.
Fui para Roraima várias vezes. O meu interesse realmente era mostrar o terrível impacto nos Yanomamis de milhares de garimpeiros espalhando doenças, prostituindo as meninas, alterando os costumes alimentícios etc.
Acabei publicando um livro sobre o tema [Haximu: o massacre dos Yanomami e as suas consequências, Editora Casa Amarela, 2007]. Foi um massacre que houve em 1993, cometido por garimpeiros. Foi a primeira vez que um tribunal brasileiro baixou um veredito de genocídio, por causa da matança de 16 indígenas, quase todos velhos, mulheres e crianças.
Antes disso, fui ao Acre para entrevistar Chico Mendes. Isso foi em 1987, um ano antes de ele ser morto. Era muito difícil encontrar com o Chico, porque ele estava vivendo meio clandestino. Mas finalmente, consegui encontrar com ele numa cidadezinha de fronteira, chamada Brasiléia. Eu o entrevistei sentado num banco de praça, eu com um microfone, e percebi que ele nunca olhava pra mim, olhava sempre para os lados. Aí percebi que ele estava esperando que alguém pudesse estar chegando com uma arma, para matá-lo. Aí percebi também que eu estava na linha de fogo… Infelizmente, um ano depois ele foi assassinado em casa.
E o mundo do garimpo ilegal parece tem uma forte conexão com os políticos…
Fui correspondente do The Guardian entre 1984 e 1994, mas continuei escrevendo sempre para a BBC. Fiz várias matérias sobre a Amazônia. Fui várias vezes a Roraima, para cobrir a questão dos garimpeiros, porque no fim dos anos 1980, houve uma invasão muito grande, em 1989 principalmente, estimaram 40 mil garimpeiros. Eu fui pra lá e queria ir para um lugar chamado Papuí, e tentei alugar um avião em Boa Vista, mas todos os pilotos me recusaram, com várias desculpas. Depois fiquei sabendo que o chefão dos garimpeiros, um senhor chamado Altino Machado, tinha proibido que qualquer piloto me levasse pra lá.
Hoje, esse mesmo Altino Machado é candidato a senador ou deputado federal, mas é candidato no Congresso. Ele continua mandando nos garimpeiros e nos garimpos, durante todos esses anos.
(José Altino Machado é pré-candidato a Deputado Federal pelo PL. É responsável pela instalação de garimpos nas terras Yanomami entre os anos 1970 e 1980. Chegou a ter uma frota de 410 aviões)
O mundo dos garimpos ilegais parece um mundo sem leis… Você acompanhou isso também fazendo documentários para a BBC.
Nos anos 1980, fiz muitos documentários para a televisão. Trabalhei como pesquisadora e produtora também. Então nós filmamos no rio Tapajós, para mostrar as balsas, e como os garimpeiros usavam muito mercúrio, viajando sempre em pequenos aviões. Lembro que uma vez fomos para um lugar chamado Caporizão, e o avião ia sair, e depois pediram para esperar, e chegou um garimpeiro ferido a tiros, numa maca…. Essa era a vida nos garimpos, muita violência, bebida, prostituição. E também nas balsas.
Muita gente morreu nas balsas, porque eles mergulhavam, para achar o ouro, às vezes tinha alguma coisa errada com o equipamento, eles morriam. E muitas vezes não era possível avisar à família, porque eles eram conhecidos apenas pelo apelido: Piauí, Maranhão, ninguém sabia a verdadeira identidade. A verdadeira vida nos garimpos era muito precária, muito violenta, também.
Você chegou a ser ameaçada, pelo seu trabalho?
Fomos ao Mato Grosso do Sul, fazer um documentário sobre trabalho infantil nas carvoarias. Os donos locais não gostaram, porque a gente estava visitando as carvoarias, entrevistando as pessoas miseráveis, que era uma espécie de escravidão, por dívida, muita criança trabalhando.
Um dia, quando saímos do hotel, no final da tarde, o carro, que era um 4×4, de repente derrapou na estrada e quase caiu. A gente descobriu que um dos pneus tinha sido cortado.
Você acha que a repercussão internacional com o assassinato do Bruno e do Dom Phillips, pode provocar mudanças nesta questão indígena?
Eu acho que, infelizmente, o Brasil é um país onde tudo cai logo no esquecimento, não é? O que foi notícia principal, depois de uns dias, cai no esquecimento. Então eu acho que cabe aos próprios jornalistas, jornais, revistas, sites, manter esse assunto em evidência, mandando repórteres para lá, inclusive fazendo matérias sobre o assunto.
Esse negócio de a Polícia Federal dizer que o crime não tem mandantes, que era só aqueles dois pescadores, é óbvio que não pode ser verdade. Tem que continuar a pressão.
Agora, do lado de fora, do lado internacional, eu acho que sim, a coisa da presença de um jornalista inglês, foi um assunto que causou muita comoção, muito interesse, muito espanto, que vai provocar pressão sobre o governo brasileiro.
Isso não vai ter efeito nenhum sobre o Bolsonaro. Ele vai chorar aquelas lágrimas de crocodilo, vai fazer aquelas promessas falsas, mas a gente sabe que o desmatamento é o pior de todos os tempos nos últimos três meses, e a época dos incêndios nem começou ainda. Então não vai ter nenhum efeito, eu acho, sobre a política governamental.
Mas, se por acaso o Lula for eleito, essa pressão internacional vai ser muito importante, porque ele vai se sentir obrigado a fazer alguma coisa. Ele já prometeu criar o Ministério dos Indígenas. Então tem que ser cobrada, essa promessa dele. E tem que manter a pressão sobre o governo Lula, para realmente reverter esta situação.
Agora… sobre o governo Bolsonaro, que vai até o fim do ano, mais seis meses, eu duvido que ele vá mudar alguma coisa… infelizmente.
Você tinha algum contato com o Dom Phillips?
Conheci ele só um pouquinho, aqui em São Paulo. Na verdade, meus filhos realmente o conheciam bem melhor, porque ele veio ao Brasil atrás de música, atrás de música eletrônica. Era o grande interesse dele. Escreveu um livro sobre isso. Então meu filho, que escreveu um livro sobre música eletrônica, ficou muito amigo dele, passou trabalhos pra ele, que escreveu trabalhos sobre a cena daqui, acabou conhecendo minha filha, a Ali.
Mas sei que foi um cara muito bom … todo mundo gostava dele. Era um cara muito simpático, acabou casando com uma brasileira, ficou aqui, como vários outros ingleses, inclusive eu.
A gente vem pra cá para ficar um ano, dois, e acaba ficando. E, no meu caso, é pelo resto da vida.
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Ao falar que “A Amazônia é nossa”, Bolsonaro diz que “A Amazônia é do crime”, afirma jornalista britânica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU