Guy Standing (1948) é doutor em Economia pela Universidade de Cambridge, pesquisador associado da Escola de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres, professor honorário da Universidade de Sydney e cofundador e copresidente honorário da Rede Mundial de Renda Básica (grupo de acadêmicos interessados em desenvolver esta ideia).
Também foi diretor do Programa de Segurança Socioeconômica da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Foi diretor de pesquisa para a Labour Market Policy Commission do presidente Nelson Mandela e atuou como assessor de vários organismos internacionais.
Entre seus livros, destacam-se O precariado: a nova classe perigosa (2011); Precariado. Una carta de derechos (2013); The corruption of capitalism (2017); La renta básica. Un derecho para todos y para siempre (2017); Plunder of the Commons: A Manifesto for Sharing Public Wealth (2019) e Battling Eight Giants: Basic Income Now (2020).
Por ocasião de sua visita a Palma [Espanha] para dar uma conferência no Es Baluard Museu d'Art Contemporani, que encerrou um programa com especialistas em ecologia e sustentabilidade, feminismos, migrações e trabalho, no último domingo, Guy Standing atendeu o elDiario.es para analisar o contexto atual da política, da economia e do precariado, conceito que cunhou para se referir a uma nova classe social que considera ter surgido.
A entrevista é de Nicolás Ribas, publicada por El Diario, 21-06-2022. A tradução é do Cepat.
Há mais de 30 anos, você pesquisa a evolução da economia capitalista e as desigualdades geradas por ela. O que aconteceu?
Acredito firmemente que quando a economia neoliberal se apoderou da comunidade econômica mundial, nos anos 1970 e 1980, lançou-se uma revolução econômica neoliberal que impulsiona o individualismo, a diminuição do tamanho do Estado, a privatização dos mercados financeiros, e se falava muito do capitalismo de livre mercado. Essa era a sua ideologia.
Contudo, pouco a pouco, as finanças e as grandes corporações tecnológicas, as farmacêuticas, mas sobretudo as financeiras, criaram um sistema que eu chamo de “capitalismo rentista”, que está muito longe do livre mercado. É um sistema de mercado manipulado, no qual cada vez mais se direciona renda para os donos da propriedade, a propriedade física, a propriedade financeira e a propriedade intelectual. E cada vez menos para as pessoas que dependem de seu trabalho.
Isso fez a desigualdade de renda crescer, mas a desigualdade de riqueza cresceu muito mais, e a riqueza cresceu em relação à renda. Assim, por exemplo, agora o valor da riqueza herdada na Espanha é muito maior em comparação ao que costumava ser e é maior em comparação com a renda nacional. A mesma coisa acontece na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos: é uma tendência global. Então, o que aconteceu é que a quantidade de dinheiro que fica para as pessoas que são trabalhadoras diminuiu.
Ao mesmo tempo, surgiu uma nova estrutura de classes, em nível mundial, em todos os lugares onde há uma plutocracia no topo dos multimilionários e, abaixo, uma elite de multimilionários. Não é apenas o 1%. São uns 20% que ganham dinheiro com a propriedade e os antigos assalariados que tinham emprego em tempo integral, pensões e férias remuneradas. Tudo foi encolhendo e o antigo proletariado, a antiga classe trabalhadora, praticamente desapareceu.
Já faz mais de uma década que você escreveu "O precariado: a nova classe perigosa" (2011). Como você define o precariado?
Quando escrevi o livro, fiquei muito surpreso por ter sido vendido em todo o mundo. Desde então, foi traduzido para 24 idiomas, incluindo o espanhol, claro, e o catalão, e me levou a dar palestras em mais de 800 cidades, em mais de 40 países, porque é um fenômeno global.
Dentro do precariado, há três dimensões. Primeiro, as pessoas que fazem parte do precariado se sentem inseguras em relação ao trabalho. Seus trabalhos são inseguros, instáveis e voláteis. Não sabem o que vão fazer daqui a três ou seis meses. Hoje, você pode ser jornalista, e da próxima vez que nos encontrarmos, garçom. As pessoas sentem que não sabem para onde vão.
Também acontece, principalmente em países como Espanha e Itália, de essa pessoa precária ser superqualificada, ou seja, seu nível de educação é, muitas vezes, muito superior ao trabalho que desempenha. Isso nunca aconteceu antes. É único na história. Qualquer um que disser que é o mesmo fenômeno que tivemos no século passado está dizendo bobagem.
A segunda dimensão é que as pessoas do precariado dependem de seu salário, mas não têm férias remuneradas, licença médica, licença-maternidade remunerada... com a perspectiva de ter no futuro uma aposentadoria por seu trabalho. Se você faz parte do precariado, está sendo explorado pela dívida. Você é economicamente frágil porque um acidente, uma decisão equivocada ou uma doença pode deixá-lo sem casa porque você não consegue pagar suas dívidas.
A terceira dimensão, que para mim é a mais importante, é que se você faz parte do precariado, está perdendo direitos sociais e econômicos. Você não tem acesso a uma renda garantida e não pode fazer o que foi formado para fazer. Você também está perdendo direitos culturais porque não pode pertencer à comunidade que deseja participar. E você está perdendo direitos políticos porque olha ao redor do sistema político da Espanha ou da Grã-Bretanha e não vê um partido político que represente suas aspirações.
Do ponto de vista político e econômico, considera que os partidos social-democratas europeus estão entendendo as demandas do precariado?
Não creio que os velhos partidos social-democratas as entendam. Pensam que a resposta para o precariado é um trabalho seguro e de tempo integral. Mas essa não é a resposta. As pessoas do precariado querem trabalhar, mas querem ter a sensação de poder se desenvolver, de se sentir seguras e querem uma parte da renda que vai para os proprietários.
Não se trata apenas de trabalho, trabalho e trabalho. Os social-democratas tendem a falar de vagas de trabalho o tempo todo. Alguém do precariado dirá: “Olha, eu faço um trabalho. Porque tenho que fazer um trabalho. Mas não me diga que tenho que encontrar minha felicidade em um trabalho.”
A resposta está em permitir que as pessoas tenham uma vida melhor, que sejam capazes de fazer diferentes formas de trabalho, perseguir seus sonhos, ser ecológicas, encontrar formas de reduzir a ameaça de extinção. As pessoas no precariado tendem a se preocupar com essas coisas.
Conforme argumentei em meus livros, dentro dessa nova classe social existem três grupos. O primeiro grupo é formado pelos perdedores da antiga classe operária industrial. Seus pais podem ter sido construtores de barcos ou operários do setor de automóveis e não têm muita formação. Esta parte do precariado escuta os populistas neofascistas. Escutam Donald Trump, Santiago Abascal, Boris Johnson, Viktor Orbán e Vladimir Putin, pois prometeram trazer o passado de volta, que dizem ser melhor que o presente.
O segundo grupo é formado pelos imigrantes, as minorias, os refugiados etc. Essas pessoas, que não votarão nos populistas neofascistas, mantêm a cabeça baixa porque estão privadas de direitos. Isto constitui um tipo de perigo diferente, porque se você tem uma grande porcentagem de sua população que não participa do processo político, isso é uma má notícia para a democracia.
E a terceira parte é formada pelos jovens que ouviram de seus pais e professores: “Se você for para a universidade, terá um futuro, terá uma carreira.” Vão para a faculdade e saem com dívidas, sem carreira, sem futuro. Essas pessoas estão muito bravas e com muita razão. Não vão votar em populistas neofascistas. Buscam uma nova política ilustrada, que represente uma ameaça ao establishment.
A política espanhola, nos últimos anos, tinha um movimento político que, potencialmente, podia representar a classe precária, mas se aburguesou e, por fim, fracassou. Mesmo assim, a Espanha tem um Governo de coalizão e me impressionou muito que a segunda vice-presidente do Governo, Yolanda Díaz, tenha criado uma comissão para estudar o precariado espanhol. Então, espero que isso signifique que haja uma nova abertura para tentar entender o que é o precariado.
Em relação ao primeiro grupo de precariado, filhos da antiga classe operária industrial que está se voltando ideologicamente para a extrema direita, o que é possível ser feito para que mudem suas posições do ponto de vista político?
Penso que temos que lhes oferecer uma agenda que não seja reacionária, que lhes dê uma segurança básica. Essa é uma das razões pelas quais acredito que, caso seja adequadamente planejada, avançar para uma renda básica contemplaria cada vez mais essa parte do precariado. A parte jovem e progressista do precariado compreende isso facilmente.
Quando dou palestras por todas as partes, os jovens entendem a renda básica. É muito interessante que uma pesquisa de opinião na Espanha tenha indicado que 68% dos adultos na Espanha agora apoiam uma renda básica real. Penso que temos que convencer os sindicatos, e começo a ser otimista.
Há duas semanas, dirigi-me aos sindicatos de Gales: é bom que comecem a apoiar a renda básica. Em outros países, os velhos sindicatos não a apoiam. Mas os jovens, e sobretudo as mulheres, sim, entendem a renda básica. Não significa o desmantelamento do Estado de bem-estar social. Trata-se de fortalecer o poder de negociação das pessoas. Então, eu acredito que isso ajudará nessa direção.
Boa parte dos críticos da renda básica argumenta que não é possível financiá-la sem aumentar a carga tributária sobre a classe média e trabalhadora.
Penso que durante a pandemia muito dinheiro foi desperdiçado com o plano de permissões de trabalho, que foi objeto de fraude (em referência ao ERTE). Se a Espanha ou a Grã-Bretanha tivessem usado a mesma quantia de dinheiro que gastaram nos planos de subsídio, poderiam ter pagado a todos os seus cidadãos uma renda básica sem aumentar os impostos.
Encontraram milhares de milhões de euros e libras para os bancos e o setor de serviços financeiros, tanto após a crise financeira de 2008, como durante a pandemia de COVID. Sendo assim, encontraram dinheiro para essa finalidade, o que fez com que o dinheiro não chegasse ao precariado e aumentaram as desigualdades. Se tivessem gastado a mesma quantia de dinheiro em uma renda básica, estaríamos muito melhor porque mais pessoas teriam tido uma segurança básica para construir suas vidas.
Mas, a longo prazo, o essencial é fazer uma reforma tributária para alterar os impostos em termos relativos e, assim, parar de tributar os rendimentos do trabalho. Por exemplo, precisamos de um alto imposto sobre o carbono, pois, caso contrário, não reduziremos o consumo de combustíveis fósseis. Só alcançaremos isso politicamente, se prometermos que a receita dos impostos sobre os combustíveis fósseis seja destinada para financiar uma renda básica, ou parte dela.
Caso contrário, se você tiver apenas um imposto sobre o carbono, aumentará a desigualdade, porque uma pessoa de baixa renda pagará mais, proporcionalmente, do que uma pessoa de alta renda. Se o governo diz que a receita desse imposto sobre o carbono será devolvida a todos como um pagamento igual, então será progressivo e reduzirá a desigualdade.
Existem também outras maneiras de criar impostos “verdes” que podem ser usados da mesma forma. Você pode criar um fundo de capital muito semelhante ao que existe na Noruega ou no Alasca (Estados Unidos): entra dinheiro nesse fundo, o fundo investe e os rendimentos do investimento são usados para pagar uma renda básica que aumenta gradualmente, de modo que, a longo prazo, o mecanismo pelo qual a renda é reciclada é alterado.
Os governos cortaram impostos para os ricos e os benefícios para os pobres. Isso significa que existe margem para aumentar a receita tributária. E as receitas fiscais para financiar uma renda básica cortam os subsídios.
Um dos escândalos na Grã-Bretanha é que existem muitos subsídios para os grandes produtores rurais, proprietários de terras e para vários outros grupos. Um dos escândalos na Espanha é que também há subsídios, um terrível sistema de subsídios concedidos para suas pescas industriais. A indústria pesqueira recebe subsídios para o combustível, com o qual se pratica a sobrepesca e se rompe com as regras internacionais.
A Espanha é um mau exemplo de destruição ecológica no mar. Não é o único país, mas é um. E temos que acabar com esse tipo de prática porque está causando um dano terrível para nossos filhos. Porque não haverá peixe, a menos que os subsídios sejam cortados.
Qual a relação entre renda básica, trabalho e saúde? Seria o caso de trabalhar menos? E que benefícios teria do ponto de vista psicológico?
Nossos experimentos em todo o mundo (agora existem mais de 80 programas-piloto de renda básica) mostram que quando as pessoas têm uma renda básica, sua saúde mental melhora. Significa que têm mais energia, que são mais produtivas em seu trabalho e que gastam menos com saúde, o que supõe menos dinheiro para o Estado. Também melhora a eficiência do gasto na escolarização.
Nos projetos-piloto, descobrimos que quando as pessoas têm uma renda básica, trabalham mais e são mais produtivas. Os críticos da classe média que dizem que se as pessoas tivessem uma renda básica se tornariam mais preguiçosas, não sabem do que estão falando. São preconceitos. Se fosse esse o caso, deveríamos tirar todo o dinheiro dos milionários porque obviamente não precisam trabalhar. É ridículo.
O governo da coalizão PSOE e Unidas Podemos aprovou o Ingresso Mínimo Vital (IMV), em maio de 2020. É suficiente para combater a precariedade que existe na Espanha?
Quando ouvi falar pela primeira vez sobre esse plano, em 2020, imediatamente disse que era mais uma oportunidade perdida. Quando olhei para os detalhes do plano, pensei: “isso é uma loucura.” É um plano elaborado por pessoas que não entendem de política social.
Em primeiro lugar, porque só os pobres recebem o subsídio. Isso desencoraja as pessoas de tentar não ser pobres, porque se você recebe o benefício e passa a trabalhar mais e a ganhar um pouco de renda extra, vai perdê-lo e não receberá mais dinheiro. Sendo assim, chama-se armadilha da pobreza.
Além disso, a regra se baseava na unidade familiar, o que é injusto com as famílias grandes porque é dada uma quantia muito menor para as famílias grandes em relação a um lar com uma única pessoa. Então, fomenta a separação das famílias. E em terceiro lugar, baseava-se na receita do ano passado, do ano anterior.
Qual é a sua opinião a respeito de outras medidas realizadas pelo governo progressista, como o aumento do salário mínimo para 1.000 euros brutos ou a reforma trabalhista?
Representa uma política que era adequada em uma sociedade industrial, quando a maioria das pessoas tinha empregos estáveis e de tempo integral, ia para um local de trabalho, registrava o ponto e saía 8 horas depois. Então, calculava-se o salário mínimo, calculava-se o piso salarial etc.
Hoje, temos uma situação em que cada vez mais e mais pessoas realizam trabalhos e formas de trabalho nos quais realmente não sabemos quantas horas fazem. Eu provavelmente trabalho 12 horas por dia. Não sou pago, mas trabalho 12 horas por dia. Algumas pessoas trabalham 5 horas no local de trabalho e 5 horas fora: em casa, em uma cafeteria ou em outro lugar. O que conta como uma hora de trabalho?
Não sou contra um salário mínimo porque queremos que os salários sejam mais altos, mas também acredito que em uma economia globalizada, o trabalho será cada vez mais feito online por meio de aplicativos móveis. Assim, até o final desta década, uma em cada três transações de trabalho será feita online com um aplicativo, e você não poderá calcular quantas horas trabalhou, nem qual deve ser o piso salarial.
Ou seja, é uma política antiquada, não é muito eficaz e não alcançará a maioria do precariado. Então, realmente se torna um gesto: uma velha ferramenta social-democrata utilizada no século XX.
Em vez disso, uma renda básica ajudaria a reorientar nossa economia para dedicar mais tempo ao cuidado de outras pessoas, ao cuidado do meio ambiente, para fazer um voluntariado, para fazer um trabalho que não é um trabalho etc. Por que não valorizar essas coisas da mesma forma que qualquer outro tipo de trabalho?
No momento, o salário mínimo não se ocupa de coisas como os cuidados não remunerados. Certamente, vimos durante a COVID que esta é a parte mais vital do trabalho e, no entanto, não a tratamos como trabalho. Se as pessoas tivessem direito a uma renda básica, também poderiam obter um ganho, é claro, e pagar seus impostos.
Qual é o papel que as mulheres e o movimento feminista podem desempenhar na implementação de uma renda básica?
Acredito que em todos os nossos experimentos-piloto comprovamos que as mulheres ganham mais com a renda básica do que os homens. Os homens também ganham, mas as mulheres ganham mais, no sentido de independência. Esse sentimento de independência fortalece o seu poder de negociação na família, na comunidade e no mercado de trabalho.
As mulheres solteiras com filhos pequenos vivem uma situação de insegurança crônica e são facilmente exploradas. Mas se tivessem uma renda básica, poderiam dizer não. Penso que é uma ferramenta de libertação feminista, não a única, não estou dizendo que é uma panaceia. É claro, precisamos de uma legislação mais forte para proteger todos os grupos, incluindo as mulheres.
É preciso também levar em consideração as pessoas com deficiência que têm custos adicionais e que necessitariam de um complemento acima da renda básica, pois a renda deve ser igual em termos de poder de compra. Mães solteiras com filhos pequenos também têm despesas mais altas para atender. Por isso, acredito que é uma tremenda ferramenta feminista de libertação.