13 Junho 2022
"Para a maioria de nós, existe uma continuidade entre sexo e gênero. Quem nasce fêmea é mulher. Quem nasce macho é homem. E se uma pessoa, ao contrário, nasce fêmea, mas é homem, ou nasce macho, mas é mulher? O que queremos fazer? Impedi-los de serem quem são? Obrigar essas pessoas a viver uma vida inautêntica? Por muito tempo, é o que foi feito; desinteressando-nos por sua dor, embora às vezes seja tão grande a levar algumas delas ao suicídio", escreve Michela Marzano, filósofa italiana e professora da Universidade de Paris V - René Descartes, na França, em artigo publicado por La Repubblica, 10-06-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
“Tenho certeza que há uma palavra para defini-las. Wumben? Wimund? Woomud?" Há alguns anos, J.K. Rowling, autora de Harry Potter, comentou assim um artigo que falava sobre identidade de gênero. Segundo ela, na Inglaterra, em nome da defesa das pessoas trans, aos poucos estava sendo eliminada a noção de sexo. Depois de se colocar ao lado de uma pesquisadora britânica que havia afirmado que "as mulheres trans não são verdadeiras mulheres", Rowling decidiu se juntar às batalhas das Terf, as Transgender exclusionary radical feminists, ou seja, daquelas feministas que querem excluir da categoria "mulheres" todas aqueles que, biologicamente e geneticamente, não são mulheres.
"Quando você abre as portas dos banheiros e dos vestiários para todo homem que se considera mulher, você abre a porta para todos os homens que querem entrar", escreveu ela alguns meses depois no Twitter. Pouco antes de acrescentar: "Esta é a simples verdade." Mas qual é exatamente a verdade de que fala a autora de Harry Potter? O que significa para ela ser mulher? Realmente pensa que ser mulher coincide com o sexo biológico?
Já são algumas semanas que, dentro do Partido Trabalhista britânico, vêm sendo realizadas discussões para encontrar uma solução para o dilema da relação entre sexo e gênero, não apenas para se diferenciar do tradicionalismo dos Conservadores, mas também para dar um sinal os que desde sempre lutam pelos direitos e a emancipação de todos e de todas. E quando outro dia, Sir Keir Starmer, o líder trabalhista, reconheceu no rádio que havia uma "minoria de mulheres que podiam ter um pênis", a comunidade Terf voltou ao ataque.
Embora Starmer, na entrevista, tenha sido bastante cauteloso e, depois de ter aberto as portas para as mulheres trans, imediatamente explicitou que todas as outras mulheres ainda têm o direito de se sentir protegidas em lugares comuns, como banheiros e academias. E então? Haveria mulheres da Série A e mulheres da Série B?
Já são anos que parece que se está assistindo ao mesmo debate, minado desde o início pela enorme confusão em torno das noções de sexo, gênero, orientação sexual e identidade.
“Aqueles que não viveram toda a sua vida como mulher não deveriam chegar a definir nós mulheres”, escreveu a feminista estadunidense Elinor Burkett em um artigo publicado no New York Times em 2015, logo antes de dizer que as mulheres trans não podiam saber o que significava ser mulher, pois nunca tiveram que enfrentar o início da menstruação no meio de um vagão lotado do metrô, nem experimentaram a humilhação de descobrir que os salários de seus colegas homens eram muito mais altos que os delas. Mas Burkett e as outras Terfs, por sua vez, provavelmente não têm a mínima ideia do que significa crescer sentindo-se aprisionado em um corpo que não corresponde ao que se é.
Quando falamos de mulheres trans, aliás, não estamos falando de “homens que pensam que são mulheres”, como J.K. Rowling afirma de maneira superficial. A identidade de gênero não é uma crença, não é um capricho e nem uma sensação flutuante. A identidade de gênero é a percepção precoce, profunda e duradoura de si mesmo como homem ou mulher, ou seja, o que se começa a perceber assim que se reflete sobre a própria identidade, algo extremamente enraizado e, sobretudo, que não muda com o passar do tempo. Perceber-se como mulher, então, significa não poder viver de forma diferente, mesmo que o próprio corpo diga outra coisa.
Para a maioria de nós, existe uma continuidade entre sexo e gênero. Quem nasce fêmea é mulher. Quem nasce macho é homem. E se uma pessoa, ao contrário, nasce fêmea, mas é homem, ou nasce macho, mas é mulher? O que queremos fazer? Impedi-los de serem quem são? Obrigar essas pessoas a viver uma vida inautêntica? Por muito tempo, é o que foi feito; desinteressando-nos por sua dor, embora às vezes seja tão grande a levar algumas delas ao suicídio.
Hoje, porém, não é mais possível se entrincheirar atrás da ideia segundo a qual na base das múltiplas diferenças que atravessam a humanidade existiria sempre e somente a diferença sexual: aquela diferença inscrita no corpo; aquela diferença que leva uma feminista como Sylviane Agacinski a defender que a especificidade da mulher sempre e em qualquer caso reside em sua "capacidade produtiva".
Hoje, talvez, tenha chegado a hora de a esquerda fazer um exame de consciência e se reapropriar das palavras da escritora estadunidense Audre Lorde que, já no final dos anos 1970, havia entendido que a complexidade da realidade e as contradições da existência precisavam uma leitura não simplista da identidade de gênero: “Estar junto com mulheres não era suficiente, éramos diferentes. Estar junto com mulheres homossexuais não era suficiente, éramos diferentes. Estar junto com mulheres negras não era suficiente, éramos diferentes. Cada uma de nós tinha suas próprias necessidades e objetivos e muitas diferentes alianças. Demorou muito para percebermos que nosso lugar era justamente a casa da diferença."
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Não é o sexo que faz a mulher. Artigo de Michela Marzano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU