27 Mai 2022
"Parte-se do pressuposto segundo o qual existe um consórcio de militares (oficiais generais) da ativa e da reserva agindo como se estivesse em um teatro de operações de guerra – que seria a web e as instituições. Eles são responsáveis por desencadear uma guerra híbrida no Brasil, contra os interesses nacionais", escreve Jorge Alexandre Alves, sociólogo, professor do IFRJ e faz parte do Movimento Nacional Fé e Política, em artigo publicado por Iser Assessoria, 24-05-2022.
Na semana passada o multimilionário Elon Musk esteve no Brasil. Foi recebido pelo núcleo duro do governo brasileiro sob um pretexto qualquer. O empresário é visto como um dos expoentes da extrema-direita no mundo.
Na esdrúxula visita, sob o disfarce da conectividade de escolas rurais na Amazônia, o que mais saltou aos olhos foi a presença de membros de alto escalão das Forças Armadas do Brasil. Segundo consta, o comandante da Aeronáutica ofereceu a Base de Alcântara (Maranhão) para lançamento de foguetes de Elon Musk.
Quase ao mesmo tempo, a imprensa noticia uma espécie de um plano estratégico que projeta uma visão de país para o ano de 2035. Os principais artífices dessa iniciativa são militares, oficiais generais que até pouco tempo foram protagonistas dos mais importantes eventos políticos do país.
De uma maneira geral, fica evidente tanto em um quanto no outro evento os esforços de setores da inteligência militar brasileira em refundar o Estado Brasileiro sob novas bases. Para que isso ocorra, é necessário desmontar os pilares da democracia estabelecida nas origens da Nova República.
Não há espaço para políticas de bem-estar social e tampouco para mudanças estruturais na sociedade pelas vias institucionais, através de iniciativas de governo e do fortalecimento do Estado Democrático de Direito. O que esses militares projetam é um futuro com direitos reduzidos para a classe trabalhadora.
Não é à toa que eles projetam a cobrar por serviços médicos no SUS e a instituir mensalidades nas universidades públicas. Aliás, a comunidade científica brasileira é vista como parte de um ambiente ideologicamente contaminado, que precisa ser reconquistado por estes segmentos.
Portanto, a destruição do aparato estatal brasileiro em seus padrões atuais não é fruto da sanha bolsonarista e de seus asseclas. Na verdade, trata-se de um projeto muito maior do qual o atual presidente sequer é protagonista, mas sim um mero ajudante-de-ordem, que se presta a fazer o serviço sujo diante dos olhos estarrecidos da sociedade civil.
Em outros termos, presenciamos dia após dia um teatro de operações militares cuja a lógica é distinta das guerras convencionais de outrora. Se tal estratégia for bem-sucedida, nem os carcomidos tanques vazando óleo e fumaça dos exercícios militares de 2021 serão necessários para consolidar o tipo de dominação que este estamento deseja.
Bolsonaro é operado por outros atores sociais – o alto oficialato das forças armadas – para os quais faz apenas o papel de espantalho. A tese aqui defendida não é uma criação pessoal, mas fruto da análise de quem talvez seja o maior pesquisador das instituições militares no Brasil, o antropólogo Piero Leiner, da Universidade Federal de São Paulo.
Mas Leiner não está só em suas análises. O coronel da reserva do Exército, Marcelo Pimentel, também aponta que há temerária promiscuidade entre um grupo de oficiais-generais e a política no Brasil.
Feito este destaque, parte-se do pressuposto segundo o qual existe um consórcio de militares (oficiais generais) da ativa e da reserva agindo como se estivesse em um teatro de operações de guerra – que seria a web e as instituições. Eles são responsáveis por desencadear uma guerra híbrida no Brasil, contra os interesses nacionais.
Esta iniciativa tem como fundamento elementos anacronicamente vinculados à Guerra Fria, como o anticomunismo e a suposta existência de um marxismo cultural presente sobretudo nos meios de comunicação e na educação. Por isso a enorme desconfiança em relação aos ambientes universitários brasileiros.
Além disso, eles agem baseados na ideia de que existiria um inimigo interno agindo contra os interesses da pátria. Diante do que estamos passando atualmente, cabe questionar quem, de fato, seriam os inimigos internos do Brasil.
Dessa forma, Bolsonaro é operado por eles desde antes de vencer as eleições. Embora o presidente tenha construído uma base social, ele se sujeitou a virar um fantoche destes generais em troca de nacos de poder e de impunidade para suas diatribes.
Portanto, estaríamos em meio a uma tentativa de domínio do espectro total através de operações de natureza psicológica, usando e abusando de mensagens ambíguas. Por isso que neste cenário pré-eleitoral, vemos segmentos das Forças Armadas criando dificuldades para vender facilidades em troca.
Este estado de coisas passaria pela manutenção de seus privilégios de estamento militar. Também incluiria negociações para que militares fossem mantidos na estrutura do Poder Executivo – tutelando as instituições de governo, reproduzindo certo padrão de nossa história republicana, cujo o período pós-1988 é uma exceção.
Em termos geopolíticos, a pressão deste consórcio de generais ocorreria com a intenção de afastar o Brasil dos BRICS. Isso seria fundamental – articulado aos interesses dos Estados Unidos – para evitar nossa participação nos processos internacionais de “desdolarização” da economia internacional, capitaneados pela aliança China/Rússia e acelerados pela guerra na Ucrânia.
Em outras palavras, seria impor o realinhamento da política externa brasileira às demandas dos norte-americanos, incluindo abrir mão de nossa soberania, como já ocorre na exploração do Petróleo. Também seria fazer o país renunciar ao seu papel de “soft power” do Sul Global e de liderança na América Latina.
Internamente, é bastante razoável que entre na mesa de negociação a não revogação dos elementos da chamada reforma do Estado já impostos ao país (trabalhista, previdenciária e BNCC/Novo Ensino Médio). Ao mesmo tempo, certamente tentarão anistiar militares envolvidos na desastrosa gestão da pandemia, sobretudo quando o General Pazuello esteve à frente do Ministério da Saúde.
Logo, o que temos no horizonte é uma reconfiguração das instituições republicanas de forma subliminar, sem a necessidade de governos explicitamente militares, como ocorreu na ditadura de 1964. O objetivo de longo alcance da Guerra Híbrida desencadeada por este consórcio de altos oficiais é criar uma espécie de “Deep State” Tabajara.
Seria inspirado no que representa o Pentágono e as agências de segurança (CIA, NSA e FBI) nos Estados Unidos. Portanto, existe uma agenda de interesses do estamento militar a ser posta em prática. Alguns dos elementos desta agenda possivelmente foram listados nos parágrafos anteriores.
Dessa forma, não é interessante para este consórcio grandes traumas na política brasileira. Já basta toda a escatologia desenvolvida pelo bolsonarismo. Este funciona na verdade como cortina de fumaça para objetivos mais profundos e como estratégia de ampliação de uma base social que dê sustentação a esse projeto de uma “Nova Ordem Nacional”.
De imediato, o que desejam é evitar grandes mobilizações dos Movimentos Sociais e criar um clima favorável para que o atual grupo político continue no Poder. O intento é corroer por dentro as instituições. Dessa forma, se tiverem a certeza de que conseguirão manter parte desta agenda, nada farão.
Talvez, se Lula vencer de forma contundente com uma votação consagradora, sejam obrigados a fazer um recuo tático, para tentar emparedar o futuro governo à frente. Ou pactuar em torno de alguns ítens da pauta do estamento militar. A composição da próxima legislatura no Congresso Nacional será decisiva neste sentido.
Mas se for uma eleição apertada, tudo é possível. De toda a forma, trata-se de uma versão 2.0 da Lei de Segurança Nacional e da lógica do inimigo interno, presente paulatinamente no discurso da direita na última década, tornando-se explícita a partir da campanha de 2018.
O mal deve ser cortado pela raiz, diz a sabedoria popular. E as instituições da República foram lenientes demais com a escalada autoritária no país. As mais altas autoridades dos três poderes vieram a público nos últimos anos dizer exaustivamente que as “Instituições estão funcionando normalmente”. Será?
O que estamos vivendo hoje foi preparado com muita antecedência. Bolsonaro fazia discursos de viés político-partidário em formaturas de cadetes (sobretudo no Exército) há quase uma década. O comando da academia de oficiais deveria ter impedido sua entrada depois do primeiro discurso. Em não fazendo, deveria ser punido pelo comando do Exército por atacar Presidentes da República, comandantes-em-chefe das Forças Armadas.
Diante dos fatos, é difícil crer que tenhamos oficiais-generais que façam oposição ideológica ao Presidente. Cada vez mais parece haver uma tática militar de dissuasão do inimigo. Tentativa de domínio da totalidade do espectro político.
A suposta oposição entre uma ala militartecno-racional e uma fração radicalizada e cooptada pelo Bolsonarismo seria um grande jogo de cena, para consumo público. E com a contribuição de parcela da mídia corporativa.
Aliás, a equação com Bolsonaro é inversa ao que se apregoa na imprensa. Oficiais-generais cooptaram Bolsonaro e não o contrário. Onde Braga Neto esteve no ano de 2018? Como interventor de segurança pública aqui no RJ.
Antes esteve à frente do Comando Militar do Leste. É muito provável que já tivesse conhecimento do esgoto representado por parcela dos apoiadores da família presidencial. Depois ele vira Ministro de Estado e ocupa duas pastas no atual governo.
Em seguida, é substituído pelo ex-chefe de Comunicação do Exército exatamente no período em que muitas instabilidades jurídico-políticas preparavam o terreno para 2018. Tudo isso não foi à toa…
O consórcio militar que paulatinamente tenta tomar de assalto a República não desencadeou uma guerra híbrida contra os interesses do país à toa. Caso o presidente não se reeleja, retornarão aos quartéis ou vestirão o pijama?
Uma derrota eleitoral será suficiente para devolver certa normalidade democrática e fazer o país retomar o aprofundamento da democracia e restituir direitos recentemente usurpados da população? Será suficiente a força das instituições, para além da destruição da máquina de governo?
São questões cujas respostas são muito difíceis de serem dadas na atual conjuntura. Mesmo a vitória eleitoral de Lula será capaz de mudar a correlação de forças?
Uma coisa é certa: não será por dentro das instituições que evitaremos o pior. A eleição de outubro poderá ser a parte mais fácil, talvez a primeira das grandes batalhas pela democracia brasileira no Século XXI.
ALVES, Renato. Comandante da FAB oferece base para operações da SpaceX, de Elon Musk. O Tempo. Contagem, 23 Mai. 2022. Acesso em 23/05/2022. Disponível aqui.
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LEINER, Piero. O Brasil no Espectro de uma Guerra Híbrida: militares, operações psicológicas e política em uma perspectiva etnográfica. São Paulo: Alameda Editorial, 2020.
SOUZA, Marcelo Pimentel Alves. A Palavra convence e o exemplo arrasta. In: Interesse Nacional. São Paulo, Ano 14, n. 54, Jul/Set 2021. pp 43-49. Acesso em 23/05/2022. Disponível aqui.
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A Guerra Híbrida do Brasil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU