Moby Dick: “Das criaturas, quão poucas têm a magnitude da baleia”

Capitão Ahab enfrenta Moby Dick. Ilustração de 1902, autor: I. W. Taber

Foto: Reprodução

15 Março 2022

 

"Em Moby Dick, escrita em 1851 por Herman MelvilleIshmael narra a obsessão do capitão do navio baleeiro PequodAhab, pela caça e morte do cachalote branco. A travessia, portanto, é, entre outras coisas, uma história de vingança, não de perdão".

 

O comentário é de Patricia Fachin, jornalista, graduada e mestre em Filosofia pela Unisinos.

 

"Sim, o mundo é um navio numa travessia sem regresso; e o púlpito é sua proa". Esse pensamento de Ishmael, personagem central e narrador da travessia que acontece em Moby Dick, dá o tom do que é possível observar não só pelos olhos do próprio narrador, como da própria história em que cada um nós é personagem.

 

Na obra, escrita em 1851 pelo escritor Herman Melville, Ishmael narra a obsessão do capitão do navio baleeiro Pequod, Ahab, pela caça e morte do cachalote branco, que em outra ocasião havia arrancado parte da perna do capitão. A travessia, portanto, é, entre outras coisas, uma história de vingança, não de perdão.

 

 

Ishmael, tentando conhecer a si mesmo e compreender seu papel no mundo, inclusive a razão de ele próprio estar naquele barco baleeiro, mesmo não sendo marinheiro, também observa o comportamento e as características de seus companheiros, comparando em que se assemelham e se diferenciam, quais são seus traços culturais, seus sentimentos mais profundos, como se relacionam uns com os outros, como reagem diante das situações inesperadas e do próprio cotidiano banal.

 

Sobre seu amigo Queequeg, que descreve como um "selvagem" porque vinha de uma terra completamente distante, onde era filho do rei de uma determinada tribo, para onde deveria retornar para assumir o reinado, ou seja, alguém radicalmente diferente dele próprio, que pertencia à cristandade, observa:

 

"Digam o que quiserem, mas a verdade é que os selvagens têm um senso inato de delicadeza; é maravilhoso como são polidos nas coisas essenciais. (...) Queequeg era uma criatura num estado de transição - nem lagarta, nem borboleta. Era civilizado o bastante para exibir propositadamente seu exotismo do modo mais estranho. Sua educação ainda não terminara. Ainda não havia se formado. Se não fosse um tanto civilizado, muito provavelmente não teria se preocupado com as botas; mas, se não fosse ainda um selvagem, nunca teria sonhado em ir para debaixo da cama para vesti-las".

 

Sobre o capitão do Pequod, que passa a maior parte da viagem isolado em sua própria cabine, pensava:

 

"Na cabine não havia companhia; socialmente, Ahab era inacessível. Embora estivesse nominalmente incluído na Cristandade, mantinha-se alheio a ela. Vivia no mundo, como vivem os últimos ursos pardos do Missouri. Quando a primavera e o verão terminavam, aquele selvagem das florestas, enterrando-se no tronco de uma árvore oca, ali passava o inverno, lambendo as próprias patas; do mesmo modo, em sua velhice inclemente e tempestuosa, a alma de Ahab se ocultava no tronco cavoucado de seu corpo, e ali se alimentava das patas taciturnas de sua melancolia!"

 

"Assim, pois, estava esse velho homem, grisalho e sem Deus, perseguindo com maldições a baleia de Jonas ao redor do mundo, comandando uma tripulação composta basicamente de mestiços renegados, náufragos e canibais - também debilitados moralmente pela incompetência da mera virtude ou honradez perdida de Starbuck, pela invulnerável jovialidade, indiferente e despreocupada de Stubb, e pela mediocridade que prevalecia em Flask. Tal tripulação, com tais oficiais, parece ser especialmente selecionada e reunida por uma fatalidade diabólica para ajudá-lo em sua vingança monomaníaca".

 

 

Como observador de tudo que se passa com a tripulação, Ishmael pôde assistir a reação de Starbuck, o primeiro imediato, um homem de 30 anos, com "mentalidade realista", depois de ser ignorado por Ahab, após tentar convencê-lo a desistir da expedição que, obviamente, levaria todos ao naufrágio:

 

 

"Porém, controlando a emoção, levantou-se quase calmo e, saindo da cabine, parou um instante e disse: 'Não me insultaste, senhor, mas me ultrajaste; contudo, por isso não te peço que tenhas cuidado com Starbuck; pois apenas te ririas; mas que Ahab tenha cuidado com Ahab; tem cuido contigo mesmo, velho".

 

Inúmeras também são as reflexões de Ishmael sobre o cachalote branco. Enquanto estudava tudo que a ciência até então já havia dito sobre o gigante do mar, através da leitura de compêndios detalhados - e um tanto tediosos -, passava por sua cabeça todo tipo de pergunta: por que o cachalote branco desperta tanto interesse nos baleeiros? Por que tinha propriedades que outros animais marinhos não tinham? Por que tinha uma cor diferente? Qual é o significado desta cor, que é usada como símbolo para tantas representações humanas?

 

As reflexões, o conduziram à conclusão:

 

"Ainda mais surpreendente é saber que, como foi demonstrado por experimento, o sangue de uma baleia Polar é mais quente do que o de um negro de Bornéu em pleno verão.

 

Parece-me que aqui vemos a rara virtude de uma vitalidade individual poderosa, e a grande virtude das paredes espessas, e a grande virtude de uma imensidão interior. Ah, homem! Admira e espelha-te na baleia! Permanece aquecido, tu também, no gelo, Vive neste mundo, tu também, sem pertencer a ele. Sê frio no Equador; mantém o sangue correndo no Pólo. Como a grande cúpula da Catedral de São Pedro, e como a grande baleia, mantém, ó, homem, a tua própria temperatura em todas as estações.

 

Mas quão difícil e inútil é ensinar essas coisas belas! Das construções, quão poucas são as que têm uma cúpula como a Catedral de São Pedro! Das criaturas, quão poucas têm a magnitude da baleia!"

 

 

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