Água que causa coceira e diarreia, lama com cheiro de óleo que quando seca parece cimento. Dados inéditos de um estudo realizado por pesquisadores mineiros e de outros estados, com apoio do Núcleo de Análise de Resíduos e de Pesticidas da Universidade Federal do Maranhão, revelam que a água que chegou até alguns rios de Minas Gerais com as enchentes de janeiro contém elementos químicos como arsênio, ferro, manganês e chumbo acima dos valores máximos permitidos nas legislações vigentes para qualidade da água.
A reportagem é de Naiana Andrade, publicada por Agência Pública, 23-02-2022.
Essas substâncias são comuns em rejeitos do beneficiamento de minério e em excesso podem causar danos à saúde. Ao serem identificadas em rios próximos a mineradoras, levantam suspeitas de que esse material possa estar sendo despejado nos rios por negligência das empresas.
As amostras de água foram coletadas nos dias 16, 17 e 28 de janeiro nas cidades e nos distritos de Piedade do Paraopeba (Brumadinho), Nova Lima, Macacos (São Sebastião das Águas Claras), Rio Acima, Honório Bicalho e Raposos e em São Joaquim de Bicas. Os rios cujas águas foram analisadas pertencem à bacia do rio Paraopeba e à bacia do rio das Velhas, ambas parte do quadrilátero ferrífero-aquífero, região onde se concentra grande parte das barragens de mineração do estado. Uma outra fase da pesquisa vai analisar também o que há no solo vindo dessas enchentes.
“O cheiro, a textura e a cor da lama e da água já indicavam uma quantidade significativa de elementos que poderiam ser metais e metaloides tóxicos”, explica a professora e pesquisadora da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) Dulce Maria Pereira, uma das responsáveis pelo estudo. Segundo ela, esses materiais existem de forma natural, mas situações como atividade minerária podem inseri-los nos solos e rios e causar a contaminação das águas e da superfície no entorno. “Há uma mudança significativa que é o resultado de várias interações físico-químicas, e o que se tem ali está longe da normalidade do material de uma lama normal, que se encontra na natureza, sobretudo nos rios.”
Após a análise química da água, os pesquisadores encontraram ferro, manganês e estanho em todas as amostras e arsênio, chumbo e zinco em parte delas. As quantidades de arsênio, ferro, manganês e chumbo ultrapassaram os valores máximos permitidos pela Deliberação Normativa do Conselho Estadual de Política Ambiental (Copam 01/2008) e pelo Conselho Estadual de Recursos Hídricos de Minas Gerais [íntegra do estudo pode ser acessada aqui].
No caso do arsênio e do manganês, as maiores concentrações foram encontradas nas amostras de água recolhidas próximas a barragem da mineradora Vallourec, localizada na BR-040, em Nova Lima, e na estrutura da empresa no córrego das Taquaras, em Macacos, ambas na região metropolitana de Belo Horizonte.
Gráfico: Agência Pública/Bruno Fonseca
No dia 8 de janeiro, debaixo de forte chuva, o dique Lisa, que pertence à estrutura da Mina de Pau Branco, da Vallourec, transbordou depois que uma pilha de estéril, como é chamado o depósito de solo e de rochas descartados diretamente dos processos para extrair o minério do local, desabou. A lama que invadiu a rodovia BR-040 arrastou carros e ameaçou uma instalação do Ibama.
Responsáveis pela mineradora culparam as chuvas pelo que trataram como incidente, mas ambientalistas e pesquisadores ouvidos pela reportagem acreditam que parte das estruturas das barragens e dos rejeitos de mineração de outras empresas, que também teriam transbordado durante a chuvarada, pode ter sido liberada por falta de cuidado adequado com o material.
Dois dias depois, o governo de Minas Gerais impôs uma multa de R$ 288 milhões à Vallourec para custear os danos ambientais causados, mas a empresa recorreu. Em nota, a mineradora disse que “apresentou defesa administrativa em relação à penalidade aplicada, uma vez que a multa foi emitida quando ainda não era possível saber a extensão do ocorrido e os efeitos sobre o meio ambiente”, mas “que não se exime das responsabilidades”.
Quanto aos resultados do estudo, a Vallourec afirmou que não utiliza nenhum produto químico durante o seu processo de mineração e que abandonou as barragens de rejeito em 2015. “A separação do óxido férrico é por meio do processo magnético. Todo o rejeito do nosso processo é classificado como inerte – classe 2”, afirma a empresa. “Não há liberação de material contaminante nos rios.”
Já os maiores valores de ferro e chumbo foram encontrados nas amostras de água do rio Paraopeba, localizado na cidade de São Joaquim de Bicas, próximo à mineradora Vale. Nessa região também vive a nação indígena Naõ Xoã, que fez diversos protestos cobrando providências da mineradora e das autoridades locais. Questionamos a Vale, que não respondeu até a publicação desta reportagem.
Gráfico: Agência Pública/Bruno Fonseca
O geólogo Paulo Rodrigues, do Pesquisa em Educação, Mineração e Território (EduMiTe), que também participou do estudo, explica que o teor do minério de ferro exigido no mercado internacional é alto e muitas áreas mineradoras já não atingem esses dados naturalmente, sendo necessário um processo de beneficiamento para a “elevação forçada dos teores”, que envolve o uso de produtos tóxicos e eventualmente libera elementos tóxicos do próprio material beneficiado.
“O que é interessante para a mineradora? É a venda do produto beneficiado. Isso dá dinheiro. O rejeito dá despesa. É o passivo ambiental. Então, para essas empresas, quanto menos tiver que investir na segurança do rejeito, melhor!”, afirma Rodrigues.
Ao demonstrar a presença dessas substâncias nos rios após as enchentes, os resultados das análises químicas das amostras também indicam, segundo pesquisadores, uma possível negligência das mineradoras ao não monitorarem os efeitos das fortes chuvas em suas barragens, permitindo a descida para os rios de rejeitos de minério de ferro e de outros materiais possivelmente tóxicos.
Gráfico: Agência Pública/Bruno Fonseca
De acordo com o coordenador do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais, Marcelo Seluchi, as chuvas, apesar de fortes, estão dentro do esperado para a região nesta época — a tendência, no entanto, é que, com o aumento da temperatura e a intensificação das mudanças climáticas, eventos como esses se tornem cada vez mais frequentes.
Após a enchente, várias empresas alegaram que “choveu demais e que não estavam preparadas; então aconteceram todos esses problemas”, critica o engenheiro e professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Bruno Milanez, que há anos acompanha a situação das barragens no estado. “O que a gente viu acontecer parece ser mais uma falta de preparo das mineradoras para a situação e que as mineradoras estão querendo colocar os problemas na conta dos eventos extremos.”
Para o pesquisador do Instituto Federal de Minas Gerais Daniel Neri, que estuda conflitos socioambientais no quadrilátero ferrífero, se for comprovado que existe algo nas águas ou no solo após as enchentes que exponha as pessoas a situações de adoecimento, a polícia ambiental, os órgãos de licenciamento e a própria Agência Nacional de Mineração (ANM) precisam ser acionadas.
“Parece que tem rejeito de minério na lama da enchente e esse rejeito provavelmente veio de armazenamentos malfeitos, pilhas de estéril e ou barragens que não conseguiram controlar o fluxo de água excedente nas chuvas de janeiro. Então, isso precisa ser investigado”, diz. “Como um resíduo industrial vai para dentro da casa das pessoas?”, questiona, ao lembrar a lama que também veio com a enxurrada e invadiu diversas residências.
Em nota, a ANM afirmou realizar “visitas de vistoria e acompanhamento dos empreendimentos minerários, avaliando as condições e fazendo exigências quando verificadas situações anômalas”, mas que a análise de água e outros materiais é uma atribuição específica dos órgãos ambientais.
No mapeamento do Sistema de Gestão de Segurança de Barragem de Mineração (SIGBM) da ANM, é possível identificar que a maior parte das barragens em Minas Gerais está dentro do quadrilátero ferrífero-aquífero. Ou seja, na mesma região onde se concentra grande parte das barragens de mineração há, também, importantes bacias hidrográficas, como as bacias do Rio Doce, das Velhas e do Paraopeba, com seus rios e afluentes — não por acaso, rios em que foram encontradas amostras de água contaminada. Segundo levantamento da ANM, no Brasil existem atualmente 905 barragens registradas. Destas, 41 estão com nível de emergência 3 acionado — ou seja, com risco de rompimento elevado —, e 38 delas estão em municípios mineiros.
“O caminho da lama é o caminho dos rios. E o caminho da lama também mostra a questão da segurança hídrica, lembrando que as bacias do rio Doce e Paraopeba já sofreram impactos com desastres de barragens da Samarco, em Mariana, e Vale, em Brumadinho”, frisa a pesquisadora Daniela Campolina, do EduMiTe, que também participou do estudo.
Acostumado a acompanhar com atenção as possíveis movimentações da barragem Casa de Pedra, da mineradora Companhia Siderúrgica Nacional (CSN-Mineração), e de uma encosta natural ao lado da estrutura, localizada em Congonhas, a 75 quilômetros da capital mineira, o líder comunitário Sandoval de Souza foi um dos moradores que questionaram a origem da lama que veio com a enxurrada. Segundo ele, a enchente do rio Maranhão, importante afluente do Paraopeba, devastou boa parte do município com uma lama viscosa e de cor diferente daquela que costumava vir com as enchentes em anos anteriores.
A Casa de Pedra é a maior barragem em área urbana da América Latina. Na cidade, há ao menos 3.500 moradores que podem ser atingidos imediatamente caso ela se rompa. Para eles, o tempo para autossalvamento é de apenas 30 segundos, de acordo com estudos da Promotoria de Justiça do município. No dia 9 de janeiro, diversas pessoas registraram a queda de parte de uma encosta natural ao lado da estrutura da mineradora.
Em outros municípios atingidos pelas chuvas, mais pessoas integraram uma rede de coleta inédita de solo pós-enchente, que ajudou os pesquisadores — a coleta da água foi feita exclusivamente pelos especialistas. Segundo os organizadores da força-tarefa de pesquisa, foram recolhidas amostras de 63 pontos que tiveram suas coordenadas confirmadas por GPS.
Material da lama de enchente recolhido por voluntários em João Monlevade e rio Piracicaba (Foto: Agência Pública/Geraldo Magela)
“O que chama a atenção é que a população ribeirinha disse que o cheiro da lama parece de óleo”, diz Geraldo Magela Gonçalves, jornalista e conselheiro do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Piracicaba, que também participou como voluntário da força-tarefa de recolhimento das amostras. “Logo após a cheia, locais onde havia plantações simplesmente secaram, matou tudo.”
Ele conta que normalmente, quando há uma cheia, o rio vai baixando e vai “lavando” a lama que ficou pelo caminho. “Só que dessa vez esse material praticamente cimentou. Em João Monlevade [município na bacia do rio Piracicaba], o pessoal teve que levar um caminhão com bomba de alta pressão para desobstruir os bueiros”.
Prefeitura utiliza bombas de pressão para retirar lama (Foto: Agência Pública/Geraldo Magela)
O estofador Leandro Alves de Almeida, de 38 anos, mora bem no caminho da lama, em Raposos (MG), cidade cercada por cerca de 80 barragens de rejeitos de várias mineradoras, segundo dados do SIGBM. Durante a enchente de janeiro, a casa dele e a oficina onde trabalhava consertando sofás foram invadidas pela água do rio das Velhas, que fica apenas 40 metros de distância do imóvel. Além dos quase R$ 50 mil que contabiliza ter perdido, ele relata problemas de saúde.
“Entrei naquela água com cheiro forte e ruim para tentar tirar os móveis. Quando foi baixando o nível d’água dentro de casa, passei a ter contato direto com a lama para fazer a limpeza. Meus braços, mãos e pernas ficavam o tempo todo cheios de barro”, lembra. Depois disso, conta, passou a sentir muita coceira e diarreia, além de ter visto surgirem algumas manchas esbranquiçadas pelo corpo. Outras pessoas de sua família também apresentaram sintomas parecidos.
De acordo com o epidemiologista Alfésio Braga, há diferentes tipos de efeitos adversos associados aos quatro elementos químicos encontrados nas amostras da água das enchentes em concentrações acima do permitido: chumbo, arsênio, ferro e manganês.
A exposição crônica ao chumbo, exemplifica, está associada ao comprometimento da capacidade cognitiva de aprendizagem, especialmente em crianças. “Existe um comprometimento neurológico importante que se dá a médio e longo prazo, mas as exposições agudas também levam a quadros de perda da capacidade de concentração, dificuldade de aprendizado e dificuldade na coordenação motora fina e rebaixamento de QI, além de danos aos rins e quadros de anemia”, entre outras situações.
O arsênio em contato excessivo com o ser humano pode provocar lesões de pele, manchas na unha (tiras esbranquiçadas) e, a longo prazo, até causar câncer de pele, fígado, bexiga ou rins, diz Braga. Já o ferro, quando inalado — o que ocorre quando a lama seca —, está relacionado a doenças respiratórias e cardiovasculares. “Inalar o ferro produz um processo inflamatório nas vias aéreas”, afirma.
Quanto ao manganês, o epidemiologista explica que, apesar de o metal não trazer efeitos adversos muito relevantes, não deve ser ingerido. Segundo ele, quantidades como as apresentadas nas amostras, ao serem ingeridas com água ou consumidas com peixes contaminados, podem ser tóxicas e levar a alterações no trato digestivo ou no aparelho neurológico. Em especial, ele alerta para os perigos associados à exposição de mulheres grávidas a esses materiais.
Para a pesquisadora Dulce Pereira, em vários locais do mundo onde houve derrame de resíduos nos rios, a prioridade foi a retirada do material, o que poderia ser feito em Minas Gerais — se as mineradoras quisessem. “É mais fácil e econômico retirar resíduo do rio do que se ficar perdendo vidas humanas e destruindo o ecossistema. Isso é uma questão de escolha estratégica das mineradoras”, afirma.
A rede que recolheu as amostras de água e de solo é coordenada e composta pelos pesquisadores Dulce Pereira, ex- diplomata e professora da UFOP, coordenador do Núcleo de análises de resíduos e pesticidas, Ulisses Nascimento da UFMA; Daniela Campolina, Paulo Rodrigues e Lussandra Gianasi do Pesquisa em Educação, Mineração e Território (EduMiTe); professora Adriana Monteiro do Laboratório de Solos e Meio Ambiente da UFMG; Luciano Corrêa integrante do MovSAM e integrantes do Projeto Manuelzão da UFMG. Parte dos recursos para viabilizar os estudos veio do gabinete da Deputada Federal Área Carolina do PSOL.