25 Janeiro 2022
Escrituras e economia: novo livro cruza aspectos financeiros dos nossos dias com dados e números da tradição bíblica.
O comentário é do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 23-01-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
De modo simplificado, pode-se afirmar que existem dois caminhos principais para abordar o texto bíblico. Por um lado, são sondadas as várias páginas, fruto de um arco histórico milenar e escritas com tintas literárias e teológicas diferentes, de acordo com as várias tradições e autores, de modo a resenhar os seus dados por meio de uma abordagem fenomenal: são famosas as enciclopédias bíblicas que muitas vezes no passado eram classificadas no gênero do Reallexikon, ou seja, dos realia, propondo verbetes referentes aos personagens, aos movimentos socioculturais, aos usos e costumes, à botânica, à fauna e assim por diante, em um imenso arco-íris de informações.
Por outro lado, essa massa documental pode ser submetida à hermenêutica que obedece a diversos critérios e métodos: aqui também, para exemplificar, pensemos na interpretação histórico-crítica, na sociológica (são famosas a teologia da libertação ou as análises de Gerd Theissen sobre o cristianismo primitivo), na psicanálise (Eugen Drewermann foi o seu arauto), na leitura semiótica ou feminista e assim por diante.
Neste caso o movimento é inverso: se, na abordagem fenomenológica, o procedimento era “centrípeto” e remontava à matriz e lá se detinha, agora se assume aquele núcleo de dados, que é transferido, por meio de um processo “centrífugo”, para a mostra contemporânea para uma comparação. Uma comparação atualizadora sobretudo quando o que está sobre a mesa é um texto religioso não meramente informativo, mas também, por sua natureza, performativo, como é o caso da Bíblia, que para o fiel é “lâmpada para os passos no caminho da vida” (Salmo 119,105).
Tra cielo e terra: Economia e finanza nella Bibbia
Essa premissa, talvez um pouco evidente, visa a enquadrar o curioso trabalho de um renomado professor de Finanças Empresariais da Universidade Católica de Milão, Carlo Bellavite Pellegrini, que cruzou a economia e as finanças dos nossos dias precisamente com os dados bíblicos, aparentemente inscritos em categorias histórico-sociais remotas.
Por isso, na leitura do texto, o que impressiona é que, ao lado das normas sobre a instituição sociossacral do jubileu ou da estratégia adotada pelo judeu José, que se tornou vice-rei egípcio, para resolver uma crise econômica faraônica, ou da célebre parábola evangélica dos talentos, onde aparece até a palavra “banqueiros” (trapezítai em grego), e de muitos outros dados bíblicos, a linguagem técnico-financeira atual pode ser encontrada justaposta, criando no leitor comum um efeito surpreendente e até desorientador.
Só para nos fazermos entender, por exemplo, a questão nada rara na Bíblia do preço de um campo é examinada segundo o paradigma da “precificação de um ativo real”. Quando abordamos o tema, frequente também em nível bíblico, dos contratos e dos mandatos, deparamo-nos com linhas de corte requintadamente técnico que falam de “Governança Corporativa”, lembrando “o mandato de um diretor executivo, no contexto da uma enlightened shareholders vision ou de um capitalismo temperado”.
E, assim, será preciso saber que, além do stakeholder, presente em outros lugares, existe também o shareholder. Imediatamente, porém, devemos desmentir a impressão de que o livro é concebido apenas para quem trabalha nas salas assépticas da academia ou nas barulhentas de uma Bolsa de valores.
De fato, Bellavite Pellegrini – que se esforça para oferecer na introdução e na conclusão uma trama límpida do seu tratamento comparativo – avança pelos capítulos de forma quase narrativa, mostrando todas as encruzilhadas da economia, além das já mencionadas: do rendimento com os seus riscos até a moeda-empréstimo-juros, das dívidas-créditos-doações aos patrimônios e à família, do trabalho-salário-incentivo-férias à justiça-equidade, até à sustentabilidade e aos recursos ambientais, confessando também os sujeitos por ele não tratados, mas relevantes, como a tributação, a demografia, as migrações etc.
A descoberta mais inesperada que o leitor experimenta, no entanto, está na constante inserção da autobiografia, que torna o seu discurso bíblico justamente “narrativo” e verdadeiramente atualizado (no qual, além disso, ele revela um ótimo conhecimento do hebraico, adquirido por meio de um curso especial).
Assim, temos uma hermenêutica existencial no sentido mencionado acima. Ela não hesita em se referir a mestres espirituais como o cardeal Martini, a escritos religiosos de referência como os Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola (caros até mesmo a Roland Barthes!), a experiências sacrais como a referência a espaços e tempos litúrgicos, mas também a evocação de interlocutores postos nos antípodas, como Brecht, transitando também pelo canto das poetisas do século XVI e assim por diante.
É claro que tudo isso é possível porque o Primeiro e o Novo Testamento respondem a um cânone típico da fé judaico-cristã, expressada de modo fulgurante no célebre prólogo joanino: “O Verbo se fez carne” (Jo 1,14), isto é, cultura, história, sociedade e, justamente, economia.
O título do ensaio, “Tra terra e cielo” [Entre terra e céu], adverte que a autêntica mensagem bíblica não nos exorta a decolar da realidade concreta e imanente rumo a horizontes transcendentais míticos e místicos. Mas também não nos exorta a perder a nossa respiração interior ascensional na poeira da história e da matéria.
E é interessante que esse discurso surja da pena de quem escreveu uma história do Banco Ambrosiano e, depois, do Banco Intesa, tornando-se assim capaz – como ele mesmo afirma – de propor eficazmente “um modo de pensar sobre os fatos econômicos e financeiros ontologicamente diferente daquele a que estamos acostumados”.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Acertando as contas com a Bíblia. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU