04 Dezembro 2021
“O que o vírus trouxe como evidência é o crescimento inaudito de uma massa que agora segrega de outra forma, ao menos em nível do Eu. Porque se a característica primeira da massa é a coesão entre aqueles que a integram em torno de um ideal, agora o individualismo denota uma posição muito mais idiota: o ideal é a própria mais-valia”, escreve Sebastián Piasek, psicanalista, professor e pesquisador em Psicologia, Ética e Direitos Humanos, na Universidade de Buenos Aires, em artigo publicado por Página/12, 25-11-2021. A tradução é do Cepat.
Os ideais revolucionários de outra época assinalavam a eliminação de qualquer diferença de classe como meio para a equidade social. Embora o norte ecoe tentador, hoje sabemos que a segregação lamentavelmente constitui o miolo da espécie humana.
Em Psicologia das massas e análise do eu, Freud destacava que toda massa tende a um aumento na afetividade – dirigida a alguma espécie de líder ou ideal – e a uma diminuição da capacidade intelectual que, para além de toda sede de submissão, implica um sacrifício necessário para fazer parte desse laço entre pares.
Embora nunca de forma consciente, quem sacrifica uma posição intelectual o faz porque existe o risco da exclusão, e a exclusão é uma possibilidade porque sempre deve existir um resto que a massa estrangeiriza.
Jacques Lacan retoma essa leitura freudiana sobre o laço social e a massa, especialmente em O avesso da psicanálise, para ressaltar que a única origem da fraternidade é a própria segregação, porque “... não existe fraternidade que possa ser concebida, se não for por estarmos separados juntos, separados do resto”.
No que diz respeito à distinção entre fraternidade e sororidade, é evidente que os movimentos de mulheres e dissidências demonstram uma enorme potência emancipatória para uma sociedade mais saudável, no entanto, o problema da segregação habita todos os espaços, demonstrando uma origem muito mais estrutural. Ou seja, feito de palavras. De toda essa pasta significante que “serve” para nos advertir que existimos, e com a qual paradoxalmente tentamos desmentir diariamente a falta de sentido de nossa existência.
Dois problemas derivam dessa evidência, e os dois contribuem para a impotência reflexiva com a qual Mark Fisher caracteriza a sociedade atual, no livro Realismo capitalista.
O primeiro tem a ver com a pretensão de um horizonte totalmente equitativo para evitar qualquer segregação, núcleo duro dos golpes mais fortes das lutas revolucionárias, no último século (em parte porque desconheciam que, nas palavras de Lacan, uma revolução sempre leva ao ponto de partida, na física e na política, e que toda essa volta revolucionária nunca prescinde de um novo amo na direção). Essa pretensão insiste hoje e nos leva a um purismo intelectual e partidário que se esgota no discursivo, fomentando um confronto entre formas progressistas que desconhecem a potência que uma discussão em conjunto poderia ter.
O segundo problema é quase o oposto, embora paradoxalmente surja como efeito do primeiro: há aqueles que acreditam que basta a impossibilidade de um sistema perfeito para defender uma coalizão de governo que, sem querer querendo, acredita mais no devir capitalista do que diz que acredita, como quem aceita um destino já escrito, que só poderia ser preenchido com políticas de curto prazo. E há aqueles que acreditam ter um nível de vida o suficientemente aceitável para que a discussão política nunca mais exceda o descritivo. Porque o privilégio mata a desconstrução, tanto na Grécia antiga como na Argentina atual.
O que se deduz desses problemas? Seja a partir do purismo moral ou do conformismo que negocia, falamos do sistema capitalista como se fosse um ente maligno alheio, ficamos surpresos com suas novas formas e comentamos sua violência com intelectualizações que nos mergulham em um pessimismo inerte. O que não percebemos em todo esse processo é o nível de violência que nossa cumplicidade encarna e a enorme contribuição que damos à coconstrução de um cenário cada vez mais absurdo.
Se a segregação é um fenômeno de estrutura, a verdadeira mão de obra do capitalismo contemporâneo é encarnada por aqueles que mais acreditam estar contra todo esse sistema, enquanto o reproduzem. Assim se desenha hoje o laço social capitalista, e o 1% do sistema tira proveito dessa modalidade.
Um discurso neofascista se sustenta com a ideia de que a segregação econômica, racial e de gênero (entre outras formas) não remete a uma questão de privilégios, mas à falta de esforço individual, deixemos de lado a tese de que há segregação desde que existe comunidade. Porque seja por estrutura ou falta de compromisso, enfrentamos hoje uma evidência incontestável: o crescimento dos fenômenos de segregação, nos últimos dois anos, é abismal na Argentina e no mundo.
O que ainda não podemos dimensionar, porque poucas pessoas querem pensar no que aconteceu nestes dois anos, é como aprendemos a naturalizar uma série de contradições já existentes, mas agora de forma muito mais brutal. Isso, como tudo na vida, tem efeitos.
Constrói-se progressivamente um “saber” em nada teórico sobre a atualidade da catástrofe, uma espécie de panorama geral premente que confronta qualquer pessoa com dilemas que poderiam ser resumidos em uma fórmula: assumir essas contradições, questionando as próprias ações que as reproduzem diariamente, ou se desinteressar por completo. A primeira alternativa não tem retorno, porque quem assume fortemente seus privilégios em uma crise, não pode seguir com essa roupagem. A segunda sim, mas o chamado é urgente.
O que o vírus trouxe como evidência é o crescimento inaudito de uma massa que agora segrega de outra forma, ao menos em nível do Eu. Porque se a característica primeira da massa é a coesão entre aqueles que a integram em torno de um ideal, agora o individualismo denota uma posição muito mais idiota: o ideal é a própria mais-valia. Como Esther Díaz destacou em uma nota recente, neste jornal, na Grécia antiga, o termo idiota se referia à ausência de vínculo com os assuntos públicos: se a forma da massa conseguia segregar com a sua própria consolidação, a distinção hoje está na corrida de cada sujeito para se desligar do social.
A liberdade individual não gira mais apenas em torno da propriedade privada, como destacou Alain Badiou em seu retorno ao seminário, há poucas semanas, mas reúne toda uma atitude em relação ao real, desinteressando-se do próximo, como condição de um laço onanista: “Eu sou eu-eu-eu, e sou eu quem tem que decidir se se fura ou não o ombro para salvar outras pessoas que são naturalmente indiferentes para mim, porque seu grave defeito é que não são eu...”.
Como com a imunidade celular, a catástrofe pandêmica inoculou em grande parte da civilização a ideia de que não há mais saída fora do eu. Fomenta-se em todos os laços sociais a construção de uma escultura identitária individual, cuja lógica perfectível convoca sempre a mais - como destaca Freud, via superego -, seja com seguidores virtuais ou com dólares.
É verdade que a necessidade de guardar alguma moeda de troca para a sobrevivência não é nova, e a história do capitalismo é a história da acumulação. Mas, hoje, guardar dinheiro não é para a troca, mas para a sua multiplicação, pelo simples fato de tê-lo, o principal pilar da ideologia individualista que a crise pandêmica exacerbou: os efeitos da financeirização da vida cotidiana no laço social.
Quem tem um excedente em seus ingressos compra dólares, apartamentos ou qualquer coisa que renda mais dinheiro no curto prazo. Não se trata de uma conduta reprovável. Mas que esse seja o norte de nosso dia a dia, para além de qualquer ofício ou profissão, também tem efeitos.
Quanto mais a vida se concentra em torno dessa lógica, mais qualquer posicionamento político para desconstruir a ginástica capitalista cotidiana fica em déficit. A acumulação de dinheiro se torna solidária à acumulação de privilégios, que ninguém quer ceder porque em época de catástrofe a única “epopeia” realmente existente no imaginário coletivo tem a ver com a acumulação como refúgio e como identidade.
De tudo isto decorre que quanto mais tempo alguém passa replicando ações capitalistas, diariamente, mais cômoda é aquela ideia do capitalismo como um ente maligno diante do qual nada pode ser feito, porque sempre será neuroticamente muito mais cômodo projetar a responsabilidade por todas essas microações capitalistas para fora.
Isso explica por que certos contradiscursos como a psicanálise são tão criticados hoje: uma psicanálise que não trapaceie busca situar a responsabilidade por uma posição diante do desejo. Se a relação com esse desejo é interrompida com uma gozosa ingestão de privilégios ainda mais apetitosa, é porque as formas ideológicas mais ligadas à mais-valia (e ao plus do gozar solidário, que sempre pede um pouco mais) assumiram a cena pela via do eu. E o eu não lida bem com a aceitação da responsabilidade por uma posição mais desejante, porque isso, como tudo o que é impagável, não tem valor de troca em nível social.
A única coisa que pode iluminar uma saída dessa cilada é o envolvimento político de todos os cidadãos, que não se consegue com um pedido voluntarioso de militância - porque a pulsão de morte é mais forte que a vontade -, mas com acordos sociais realmente participativos. Se uma democracia adormece mais do que empodera, é melhor suspeitar de suas coordenadas. É possível um sistema de representação mais direto, em que cada pessoa assuma sua responsabilidade pelo que afirma e pelo que omite para sustentar um privilégio.
Se o gasto obsceno em campanhas vazias se impõe naturalmente à possibilidade de uma lógica mais plebiscitária que questione a sociedade sobre a dívida, o Rio Paraná, o lítio, as florestas ocupadas por magnatas estrangeiros ou o imposto fixo sobre a fortuna, é melhor que questionemos quais teorias estamos utilizando para não admitir o jogo que continuamos jogando.
Antes que a tela tome completamente nossa subjetividade, o político pode ser pensado de forma subversiva.
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O que seria a subversão hoje - Instituto Humanitas Unisinos - IHU