09 Janeiro 2015
"A Igreja deve voltar e permanecer no meio do mundo moderno, livre, múltiplo, de mil rostos e de mil imprevistos. Só assim poderá evangelizar, não se fechando como em uma fortaleza com uma mentalidade de Reconquista. Essa é a grande mensagem de Francisco. É por isso que estou com ele."
A reportagem é de Andrea Tarquini, publicada no caderno Il Venerdì, do jornal La Repubblica, 27-12-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Enquanto o frio ventoso investe contra a bela e rica Munique e, nas ruas decoradas das compras natalícias, trens e BMWs assobiam silenciosamente, competindo para ver quem é mais ecológico, no suntuoso palácio barroco em pleno centro, que o governo bávaro concedeu em uso à Igreja, escuto as palavras do jovial, dinâmico e incansável líder da Igreja Católica alemã.
É Reinhard Marx, arcebispo de Munique e Freising, um cardeal que, por ironia do destino, chama-se Marx de sobrenome e que recentemente escreveu um irônico livro-carta ao seu homônimo (que começa justamente com "Caro homônimo..."), para falar das diferenças, mas também das profundas afinidades éticas, entre o cristianismo e as inspirações originais e não totalitárias do marxismo.
Eis a entrevista.
Em um momento crítico para a Europa e para o mundo, o Papa Francisco foi eleito. Quais são e o quanto importam na vida da Igreja as mudanças que o pontífice está realizando?
Na Alemanha, como em todo o mundo, uma grande atenção se dirige ao Papa Francisco, que impressiona e chama a atenção das pessoas com a sua autenticidade. Em relação aos papados dos seus antecessores, ele se coloca em primeira linha não como brilhante teólogo ou como portador de grandes visões políticas. Francisco quer conduzir a Igreja à força original do seu testemunho. Ele tem uma clara visão daquilo que quer, mas não segue um plano fixo, pessoal ou preestabelecido, nem um programa de governo. Ele lança sinais e dá exemplos, como fez também com o Sínodo dedicado ao matrimônio e à família.
É melhor que ele não tenha um plano?
Francisco quer empreender as mudanças junto com todos nós. Ele deseja que, se possível, todos possam prosseguir no seu caminho e quer encorajar a Igreja inteira a se encaminhar novamente no caminho do Evangelho. A humanidade percebe isso, sente-se apaixonada e fascinada.
Eminência, como o senhor julga o debate sobre os temas abordados no Sínodo?
Nos últimos séculos, ao contrário de hoje, em nível da Igreja mundial, não havíamos debatido de modo tão intenso e respeitando toda a gama dos problemas, nem sobre os temas do matrimônio e da família, nem sobre as questões da moral sexual. Ainda no consistório, eu senti uma nova atmosfera de frescor e de coragem. Coragem para debater a fundo e de modo controverso esses temas. Eu espero que em todas as discussões que o papa deseja e às quais nos impele, no fim, encontremos a unanimidade e a unidade entre os cristãos, mesmo que, para alcançá-la, seria necessário mais tempo. Não podemos aceitar que haja vencedores e vencidos: precisamos de um sinal de testemunho talvez múltiplo, embora, ao mesmo tempo, unido. Para isso, devemos nos convencer a sair de alguns becos sem saída do pensamento. O desenvolvimento teológico muitas vezes também precisa de novas ideias e propostas, de um novo modo de pensar. Eu confio que o Santo Padre continuará a fazer sentir a sua influência no Sínodo.
A quais temas é preciso dar mais atenção, quais são as prioridades?
A verdade não é um sistema que nós devemos defender, mas é uma pessoa, que fala aos homens e deve ir ao seu encontro: Jesus Cristo. Nós não estamos no mundo para impedir que os seres humanos encontrem Cristo e o recebam no sacramento. Ao contrário: somos chamados a ajudar aqueles que buscam a Cristo e o querem encontrar. Permita-me dizer, dentre outras coisas, que, no Sínodo, as diferenças culturais não estiveram tanto no primeiro plano como alguns pensavam. Em todos os países, assistimos a grandes mudanças no modo de viver das pessoas. Mas ver tudo isso só como decadência moral é enganoso e nos leva para fora da realidade.
Também no Sínodo eu disse que não posso e não quero assumir que, antes, nas décadas e séculos passados, tudo era melhor em relação ao matrimônio e à família. Na Alemanha, por exemplo, nos últimos 50 anos, muita coisa mudou para melhor para a maioria das pessoas. Especialmente no que diz respeito aos direitos e às condições de vida das mulheres. Eu estou preocupado que nós, como Igreja, muito facilmente nos sentimos impelidos a tocar de modo leviano a melodia da decadência do gênero humano, mas, se sucumbirmos a esses lamentos, depois não seremos mais capazes de perceber e entender plenamente a realidade.
Quão grande é esse perigo, também para o papa?
O motivo-melodia da decadência volta a soar em todas as épocas: a Igreja como fortaleza sólida, que resiste às intempéries do tempo. O papa sabe que, com tal posição, nós não estaremos à altura do mundo moderno e, portanto, não seremos capazes de evangelizá-lo. Nós somos parte deste mundo, vivemos neste mundo e estamos presentes para todos os seres humanos, para cada pessoa singular. E devemos nos perguntar como podemos chegar às pessoas com o Evangelho. Um velho princípio-chave da teologia diz: aquele que não é aceito não pode ser salvo. Pois bem, é essa questão-chave da evangelização que impulsiona o papa. E por fim: nós aprendemos com o mundo, a relação entre nós e o mundo também é uma relação de troca recíproca contínua. O caminho para uma maior liberdade, a evolução histórica do conceito de direitos humanos, por exemplo, é uma história inspirada pelo Evangelho, mas às vezes se volta contra a Igreja, como instituição. E, então, a própria instituição deve aprender a repensar e a compreender de modo novo as fontes bíblicas da dignidade e dos direitos humanos.
Mas é difícil, para a Igreja e para o Papa Francisco, manter unidas todas essas diferentes tendências?
A Igreja Católica é uma instituição mundial. O papa, na sua pessoa e no seu ofício, é um dom para nós, porque leva à unidade essa comunidade mundial. Os conflitos são inevitáveis, às vezes até necessários, mas, acima de todos os outros valores, está a unidade da Igreja, como nos diz o papa na exortação Evangelii gaudium (n. 228). A unidade na Igreja é a premissa para nós, para poder cumprir a nossa tarefa para o mundo: levar adiante a família do gênero humano. Quem deveria fazer isso se não a Igreja Católica? A Igreja deve ser o sacramento da unidade entre Deus e todos os seres humanos, como diz o Concílio (Lumen gentium, n. 1).
Mas, então, os aspectos positivos do Iluminismo, para o senhor, têm um conteúdo cristão?
O cristianismo é exatamente a sua premissa: sem ele, não poderíamos entender a história do Ocidente. Por isso, é bom que o papa, no seu discurso ao Parlamento Europeu, tenha lembrado que não devem ser esquecidas as raízes cristãs. Elas se tornaram realidade política, embora, às vezes, por caminhos indiretos, como, por exemplo, na tradução em realidade do princípio dos direitos humanos. Nós encontramos uma das frases mais revolucionárias da história mundial justamente no início da Bíblia: Deus criou o ser humano como homem e mulher à sua imagem e semelhança, para que, desde o início, haja uma única família original e que todos os seres humanos sejam irmãos e irmãs. Toda imagem de Deus, sem diferenças. Nem sempre tiramos as devidas consequências dessa mensagem universal, mas a sua força explosiva é incrivelmente poderosa. Nós, como cristãos, não podemos esquecer também uma parte importante do caminho da humanidade rumo à liberdade.
Mas a sociedade alemã e, com ela, muitas outras se secularizaram amplamente. Isso significa que a Igreja perdeu o contato com a realidade?
Não existe uma situação especial alemã. A chamada secularização é um desenvolvimento necessário da liberdade. E uma sociedade livre é progresso, segundo o verdadeiro ponto de vista do Evangelho. A pergunta que nos é feita é se queremos anunciar o Evangelho nessa sociedade moderna, livre, aberta e pluralista. E como queremos fazer isso. Queremos nos dirigir apenas a um pequeno grupo ou queremos falar para todos, em um mundo cada vez mais complexo? Eu digo: com uma mentalidade de Reconquista, não se pode evangelizar. Restaurar o que existia no passado não é evangelização. Como método, poderia valer a regra: restauração não, renascimento sim. Devemos reagir a essa nova situação, à sociedade moderna, livre, e evangelizá-la de um modo novo. Devemos, hoje, anunciar a todos que uma vida segundo o Evangelho traz uma inestimável mais-valia espiritual humana. A meu ver, é justamente isso que está no coração do papa.
Sacramentos para os divorciados, ordenação de mulheres-padre, papel dos homossexuais cristãos: o que o senhor pensa a respeito, Eminência?
São três temas muito diferentes. E, de acordo com alguns, são testes para verificar se verdadeiramente a Igreja se põe a caminho. Para mim, está fora de questão que as mulheres devem ter mais responsabilidade na Igreja. Todas as tarefas que não estão ligadas ao ofício do sacerdócio, até o alto da Cúria, poderiam serem confiadas a leigos, homens e mulheres. Por que não se poderia confiar a mulheres a liderança de alguns dicastérios, como uma Congregação para os Leigos? Eu não vejo como isso não possa ser possível, do ponto de vista do direito eclesiástico. Eu falaria de bom grado de uma "descurialização" da Cúria, o que também vale para as dioceses.
Quanto à indissolubilidade do matrimônio, é um valor que deve ser compreendido como uma mensagem positiva, um dom, uma ajuda. Mas devemos refletir sobre como encontrar novos caminhos – quando a união fracassa – que tornem, acima de tudo, possível às pessoas envolvidas reencontrar o caminho rumo aos sacramentos e à reconciliação. Eu fiquei sabendo em muitas conversas como as pessoas sofrem por causa da situação atual. Elas têm saudade da Santa Comunhão e rezam para que os Sínodos e os bispos, junto com o papa, encontrem um caminho para elas. E eu estou decidido a me comprometer com a solução desse problema. Rejeito a posição do "tudo ou nada". Nós não podemos dizer às pessoas: "Aceitamos você apenas se você satisfizer todos os requisitos em 100%". Mesmo em casamentos celebrados apenas com o direito civil podem-se criar situações boas, pode-se realizar o bem.
E, se em uma relação homossexual baseada na fidelidade, duas pessoas se ajudam mutuamente e estão presentes uma para a outra, por que eu poderia dizer que isso não tem nenhum valor? Isso não significa que, para nós, seja equiparável com igual dignidade todos os tipos de relação: o matrimônio sancionado pelo sacramento, para nós, deve continuar sendo a estrela guia da orientação. E eu acho que, sobre esse tema, o princípio da gradualidade, sobre o qual discutimos no Sínodo, ajuda muitíssimo.
Ainda um assunto de que Francisco fala: a nova pobreza, as novas desigualdades. Quanto elas são importantes?
A desigualdade cresce em todo o mundo, mas é preciso olhar com precisão e atenção para as situações dos diferentes países. E os poderes políticos devem reagir em nível nacional, europeu e mundial. Pense apenas no gigantesco problema do desemprego juvenil na Itália, Espanha ou França. Se nós não o resolvermos na Europa, a aceitação do atual sistema político de valores desaparecerá. Eu peço apaixonadamente que um modelo de economia social de mercado se torne modelo mundial e que a todos sejam abertas justas oportunidades de educação e de participação na prosperidade.
Quem tem medo de Francisco e da sua nova Igreja engagée?
Ninguém deve ter medo deste papa. Talvez possam temê-lo aqueles que desejam o fim da Igreja. Mas a grande maioria do gênero humano, às vezes sem saber, sente saudade e necessidade do Evangelho, que é a mais radical mensagem de amor que se possa imaginar.
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O Evangelho é mais-valia. Entrevista com Reinhard Marx - Instituto Humanitas Unisinos - IHU