09 Novembro 2021
"Disputas, dúvidas, licenças não anulam a força da resposta de Cristo à boca: 'O que você come é carne'. Isso permanece, conclui Al Kalak, 'o elemento constitutivo de uma religião que, dois mil anos depois de sua fundação, ainda não pode deixar de se alimentar de Deus'", escreve Marco Ventura, professor de Direito canônico e eclesiástico da Universidade de Siena, em artigo publicado por La Lettura, 06-11-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
“Diga-me, boca, o que você sente, / quando me tem entre os dentes?”. Em um madrigal do início do século XVII, Cristo se dirige assim à boca do fiel que recebeu a hóstia. “Sinto gosto de pão, / que nutre meu coração”, responde a boca. “Se crês que seja pão / estas tuas esperanças são em vão”, Jesus responde e proclama: “O que comes é carne; precisamente aquela / que no ventre formei, / e tomei de Maria, minha filha e serva; / Maria, minha mãe e esposa”.
Mangiare Dio. Una storia dell’eucarestia
Um milênio e meio após a vinda do Filho de Deus, os versos resumem a religião da encarnação, seu mistério, o paradoxo. Mais do que qualquer outro sacramento, a Eucaristia é o invisível no visível, o incorpóreo no corpóreo: “Só a hóstia está sujeita aos mecanismos fisiológicos do ser humano de forma tão radical, (...) o corpo de Deus é comido, vai para as vísceras, é digerido, é assimilado e, por assim dizer, é expelido”. Essas são as palavras de Matteo Al Kalak, o autor de Mangiare Dio. Una storia dell’eucarestia (Comer Deus. Uma história da Eucaristia, em tradução livre), o volume publicado pela Einaudi em que o historiador da Universidade de Modena e Reggio Emilia estuda a "corporeidade do sacramento" como símbolo decisivo do Cristianismo.
Nas 250 páginas do livro, Al Kalak propõe "uma história cultural" que é "uma" das muitas possíveis porque está livre das ilusões de completude, mas também é "uma" porque é capaz de reconduzir a uma unidade narrativa e conceitual épocas e lugares, episódios e temas. O percurso resultante, desde a modernidade até aos dias de hoje, sobretudo na península italiana, procura de fato o sentido dos dois milênios durante os quais "a carne de um homem-Deus" se reapresentou "todos os dias, em todo lugar" onde aquele rito era celebrado, "para fazer-se refeição e sacrifício para os fiéis".
É relembrado aquele depósito profundo, em outubro de 1972, nas geleiras dos Andes. Alguns sobreviventes do avião que caiu na fronteira entre Chile e Argentina, a 3.600 metros de altura, se salvaram comendo os companheiros mortos. O significado de seu canibalismo não escapa aos jogadores de rúgbi do Old Christians Club, time de uma escola católica de Montevidéu. “Tirar vida dos corpos de seus amigos falecidos”, lembram os que retornaram, é “como tirar energia espiritual do corpo de Cristo quando se toma a comunhão”.
Com o objetivo de apreender a "plasticidade do sacramento", Al Kalak investiga os conflitos de pensamento e ação que ele suscitou, na Corinto de Paulo, onde as refeições rituais dos novos cristãos são palco de embriaguez e gulodice, como no catolicismo global de hoje em que se discute sobre hóstias OGM e a substituição do vinho e do trigo eucarísticos por Coca-Cola, suco de groselha e pão de arroz ou mandioca. A questão, ressalta o autor, é que a Eucaristia é um "recurso", mas também um "escândalo": pode-se dizer que confere "poderes prodigiosos", mas também que nada mais é do que "uma mistura de água e farinha".
Num esforço de controle sempre insuficiente, a autoridade católica compromete-se, por conseguinte, a combater tanto os que negam o divino como os que o usam como magia. Assim, enquanto os lansquenetes na Roma de 1527 "faziam um círculo entre si, com o sopro jogavam para o alto, e quando a hóstia caia no chão, a pisavam com os pés", os ladrões de partículas da época especulavam sobre a crença de que beijar alguém enquanto tem a hóstia na boca era "um encantamento amoroso muito eficaz".
Cinco séculos depois, o conflito se renova. Para os adversários, o Papa Francisco é o antipapa que autoriza a comunhão self-service, como no McDonald's, e é o homem que na Praça São Pedro deserta, em 27 de março de 2020, empunha o ostensório contra a pandemia. Para o autor, a imagem encerra em si “a inesgotável centralidade da Eucaristia para a identidade da Igreja Católica”. Disputas, dúvidas, licenças não anulam a força da resposta de Cristo à boca: "O que você come é carne". Isso permanece, conclui Al Kalak, "o elemento constitutivo de uma religião que, dois mil anos depois de sua fundação, ainda não pode deixar de se alimentar de Deus".
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Uma refeição divina e discutida. Artigo de Marco Ventura - Instituto Humanitas Unisinos - IHU