29 Outubro 2021
"Esta convergência massiva de críticas a todas as formas de exclusão resultou, em contextos diferentes, avanços teóricos e, algumas vezes, consequências práticas. Mas a exclusão sempre manteve-se presente, persistentemente nas diversas possibilidades pelas quais preconceitos se materializam: preconceitos de gênero, raciais, étnicos, oriundos de doenças, de idade entre tantos outros existentes e a serem inventados", escreve Daniel Soczek, mestre e doutor em sociologia e professor no Colégio Estadual João Mazzarotto (PR).
O conceito de exclusão, por muito tempo, serviu para delimitar os limites do socialmente inaceitável. As religiões, invariavelmente, sempre consideraram como regra de ouro o “amor ao próximo” o que nada mais é do que inclusão. Do senso comum às diversas correntes filosóficas, em especial a partir da modernidade, o tema da igualdade (ainda que com muitas matizes interpretativas) sempre foi um norte-limiar reflexivo.
As correntes sociológicas como o estruturalismo, funcionalismo, marxismo, assim como as teorias acionalistas e interacionistas, também, cada uma ao seu modo, propuseram a negação da exclusão social como condição de melhoria da sociedade. Esta convergência massiva de críticas a todas as formas de exclusão resultou, em contextos diferentes, avanços teóricos e, algumas vezes, consequências práticas. Mas a exclusão sempre manteve-se presente, persistentemente nas diversas possibilidades pelas quais preconceitos se materializam: preconceitos de gênero, raciais, étnicos, oriundos de doenças, de idade, entre tantos outros existentes e a serem inventados. E, é claro, não podemos deixar de pensar a exclusão a partir da ordem político-econômica, arquitetada atualmente pelo neoliberalismo internacional e que se expressa na exploração das relações entre capital e trabalho, há muito explicadas e explicitadas por Marx.
As relações de exclusão são potencializadas quando conjugadas entre si: quando se associa exclusão econômica à de gênero, por exemplo. Daí a importância de repensar não apenas a questões de ordem cultural-simbólica mas também as relações de trabalho, as relações econômicas num sentido amplo, conexo, na tentativa de, ao menos, mitigar as desigualdades sociais, consequências das práticas e processos de exclusão social. Importa destacar que a exclusão se processa num campo de luta, luta por reconhecimento, como pontua Honneth. É uma oposição voltada para a negação do outro, na busca do aniquilamento do outro, no exercício da discriminação nos mais diversos graus e esferas dos espaços sociais, marcando indelevelmente a condição do outro. Mas o outro está ali.
Há um reconhecimento da existência do outro até porque há uma oposição e, para se ter uma oposição, é necessário estabelecer uma identidade, ainda que seja para desmerecê-la ou contraditá-la. Uma alteridade, digamos, negativa, mas presente. Numa democracia, todos estes excluídos lutam em diversas esferas, inclusive na esfera legal, no intuito de entrar e se manter na luta, principalmente contra seu apagamento social, o que significaria, em tese, seu aniquilamento identidário. E, se na esfera legal não existem dispositivos específicos para assegurar a luta por aquilo que é requerido como seu direito, a interpretação dos princípios constitucionais – aqueles dispostos no art 5, permitem a construção do direito (ainda) inexistente no universo da legalidade. E as batalhas por reconhecimento, infindas e sempre infinitas nos processos democráticos, recomeçam a cada amanhecer. Mas o fosso da desigualdade, cuja exclusão demarca sua extensa profundidade, se mostrou recentemente com possuidor de um “mais além”. No seu distante, escuro, sinistro fundo, encontra-se ainda um alçapão para um nível mais inferior: o abandono.
Do ponto de vista jurídico, no Brasil, o conceito de abandono circunscreve-se ao direito penal, relacionado à esfera familiar numa perspectiva individual: temos, assim, os crimes de abandono de recém-nascido, abandono afetivo, abandono intelectual, abandono material. Entretanto, as reflexões de Agamben sobre a relação homo sacer-vida nua nos levam a reconsiderar o humano que está “fora da lei” não apenas como a vida matável, mas aquele que à justiça não pode recorrer. Aquele cuja luta política está inviabilizada para o sujeito, tornando dependente, para defesa dos seus direitos, do interesse e ação de terceiros, num processo de negação radical da autonomia, uma hipossuficiência intransponível. A palavra abandonar origina-se do verbo inglês to ban (proscrever, impedir a entrada de alguém a um país).
Impedir alguém de entrar num país é negar qualquer direito – o estrangeiro não é cidadão sujeito de direitos. Nesse sentido, ser abandonado é pior que ser excluído porque existe a negação do conceito de identidade e, por isso, o opressor nem se digna a propor-se a lutar. Simplesmente ignora. Ser abandonado é, dessa forma, menos que ser excluído.
A realidade atual tem mostrado esta face da desigualdade social: a condição de abandono. Tomemos, como exemplo, a aplicação deste conceito à tecnologia: o abandono tecnológico. Nas escolas, tal conceito é evidente. Não se trata de exclusão tecnológica. A exclusão tecnológica pressupõe uma luta, a existência de alteridade, um objeto em disputa, nesse caso, um bem tecnológico. O abandono tecnológico é o desleixo completo das políticas educacionais, que se reflete nas escolas sem condições de propiciar aos estudantes nem o vislumbrar de práticas emancipadoras. É um silêncio cuja eloquência só é ouvida por terceiros. O analfabetismo digital não é, assim, simplesmente exclusão. É pior, é abandono. Esquecimento. Nenhum reconhecimento. Total desconsideração. Caminhamos para o abandono?
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Da exclusão ao abandono: seguindo ladeira abaixo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU